Resolução virtual de conflitos entre agentes econômicos: "o "eConciliar" como meio de efetivação do acesso à justiça em um incipiente sistema de múltiplas portas brasileiro"
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Resolução virtual de conflitos entre agentes econômicos - Vicente Martins Prata Braga
25.
1. ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL: OBSTÁCULOS AO DESENCOLVIMENTO
Neste capítulo, após uma breve constatação do atual panorama do Poder Judiciário brasileiro, por meio da análise dos dados divulgados pelo Relatório Justiça em Números de 2016, com base no ano de 2015, realizar-se-á um apanhado teórico da conceituação do termo acesso à justiça
, bem como da evolução de sua significação, do Estado Liberal ao Estado Social.
Após o estabelecimento do conceito de acesso à justiça a ser adotado neste trabalho, será demonstrada a relação entre acesso à justiça e desenvolvimento, e como a efetivação do primeiro influencia neste.
Depois de traçar a ligação entre acesso à justiça e desenvolvimento, listar-se-ão os principais obstáculos à efetivação do acesso à justiça no Brasil, nas várias classificações adotadas pelos estudiosos do tema. A partir da citação de tais obstáculos, os quais repercutem em uma baixa confiança da população no Poder Judiciário brasileiro, fato comprovado pela pesquisa "Índice de Confiança na Justiça do Brasil – ICJBrasil", realizada pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo – FGV/SP, as medidas necessárias à sua superação serão divididas em dois grupos, para uma melhor organização do presente trabalho: as medidas que não rompem com o modelo processual vigente e as que buscam adotar novos modelos e métodos de solução para as lides.
No final deste primeiro capítulo, serão abordadas, não exaustivamente, as medidas de superação dos obstáculos ao acesso à justiça que não ensejam o rompimento do modelo processual atual, em que as partes enxergam o juiz como soberano, único sujeito apto a resolver as lides que surgem no cotidiano. Desse modo, somente no próximo capítulo, de forma mais detalhada, serão analisadas algumas formas alternativas de solução de conflitos, as quais, conforme será demonstrado, têm o condão de promover o acesso à justiça de forma mais abrangente e irrestrita.
1.1 O atual contexto do Poder Judiciário
Conforme demonstra o Relatório Justiça em Números de 2016 (ano base 2015), elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, no final do ano de 2015, havia cerca de setenta e quatro milhões de processos judiciais ainda a serem baixados, conduzidos por mais de 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil) profissionais, cerca de 17.300 (dezessete mil e trezentos) magistrados, 278.000 (duzentos e setenta e oito mil) servidores efetivos e 155.000 (cento e cinquenta e cinco mil) trabalhadores auxiliares. O custo total em 2015 para a manutenção do Poder Judiciário foi de mais de 79,2 bilhões de reais, cerca de R$ 357,86 por habitante².
Considerando que apenas 39% deste valor foi pago com receitas arrecadas pelo próprio Poder Judiciário, conclui-se que mais de 41 bilhões de reais que poderiam efetivamente ser utilizados para outras finalidades foram direcionados para o andamento de processos judiciais.
Algumas informações positivas, todavia, foram divulgadas no referido relatório. Primeiramente, pela primeira vez, desde 2010, o número de novas ações ajuizadas regrediu em relação ao ano anterior. Em 2015, cerca de 27 milhões de ações judiciais ingressaram no Poder Judiciário, representando uma redução de 5,5% em comparação com 2014. Ademais, o Judiciário finalizou 28 milhões de processos ao longo de 2015, superando o número de novos casos.
Tendo em vista este último fenômeno, o CNJ desenvolveu um método de metrificação da eficiência do Poder Judiciário em um dado período, utilizando para tanto a denominada taxa de congestionamento, que leva em conta o total de novos casos ajuizados, de casos finalizados e de processos pendentes ao final do período anterior ao período base. O método utilizado consiste na verificação da proporção entre processos baixados e a soma da quantidade de processos novos e pendentes, verificando-se a existência de congestionamento caso não seja dada vazão
aos processos em trâmite. O próprio CNJ compara esta metodologia à análise de uma caixa d’água: quando não se dá vazão superior à quantidade de água existente somada à ingressante há um transbordamento.
Após analisar os dados do Poder Judiciário durante o ano de 2015, o CNJ chegou à conclusão de que a taxa de congestionamento do período foi 72,2%, isto significa que, de 100 processos que tramitaram em 2015, somente 28 foram finalizados definitivamente³.
Não obstante tão vasta estrutura e uma discreta melhora na produtividade do Judiciário, há, ainda, uma notória demora na tramitação de feitos judiciais, de que decorre um grande acúmulo na quantidade de processos tramitando concomitantemente, mais precisamente 73,9 milhões de ações ainda pendentes atualmente.
A partir dos dados supracitados, pode-se dizer que, mantido o ritmo de julgamento, se não fossem ajuizadas mais ações, o Poder Judiciário conseguiria baixar os processos ainda existentes em cerca de 2 anos e 8 meses, considerando todos os órgãos de tal Poder. Tal ponderação pode se mostrar animadora, no entanto é preciso ressaltar que tal dado é somente uma média, que engloba processos de fácil e difícil resolução.
Com isso, mesmo considerando um leve incremento na eficiência do Poder Judiciário brasileiro, vê-se que a sua atual estrutura ainda necessita de melhorias, ou alternativas, para que as demandas novas e as já existentes sejam solucionadas de forma mais célere.
1.2 A evolução do conceito de acesso à justiça
A partir da metade do século XX, Cappelletti se dedicou em pesquisar e estabelecer uma conceituação de acesso à justiça, como objetivo maior de garantia de tutela jurisdicional assegurada aos cidadãos. Em coautoria com Bryant Garth⁴, formulou os seguintes pensamentos, frequentemente reproduzidos quando se trata de estudos acerca da conceituação de acesso à justiça:
A expressão ‘acesso à Justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico - o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado
.
Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos
.
Cappelletti⁵ ainda destaca que a ideia de acesso à Justiça se desenvolveu concomitantemente à passagem da concepção liberal para a concepção social do Estado moderno.
Naquele tempo, as leis se limitavam a criar mecanismos de acesso à justiça, aqui como conceito estrito, definido como a possibilidade de ingressar em juízo buscando a efetivação de um direito do qual se é ou pretende ser titular. Nesse contexto, não existia a preocupação com a efetividade das normas que tutelavam o acesso à justiça, de modo que o direito processual não era reflexo e não sofria influências da realidade dos diferentes indivíduos da época.
A partir do século XX, entretanto, o legislador, influenciado pela evolução da concepção social do Estado, voltou-se à elaboração de leis que garantissem a efetivação dos direitos fundamentais, os quais anteriormente eram somente declarados, não possuindo, por muitas vezes, normas que os regulassem e os garantissem, como ressalta Humberto Theodoro Júnior:
No século XX, todavia, o coletivo ou social passou a ser a tônica da política governamental e legislativa em todos os países do mundo civilizado, mesmo naqueles em que a ideologia se rotulava de capitalista e liberal ou neoliberal. A política constitucional deixou, então, de atuar como simples tarefa de declarar direitos, tal como prevalecera nos séculos XVIII e XIX. As Cartas contemporâneas, refletindo a consciência social dominante, voltaram-se para a efetivação dos direitos fundamentais. Assumiu-se, dessa maneira, o encargo não só de defini-los e declará-los, mas também, e principalmente, de garanti-los, tornando-os efetivos e realmente acessíveis a todos. O Estado Social de Direito pôs-se a braços com a tarefa nova de criar mecanismos práticos de operação dos direitos fundamentais
⁶.
Fábio Konder Comparato⁷ destaca que o primeiro documento de alcance internacional a reconhecer o direito à efetiva e pronta prestação jurisdicional foi a Convenção Europeia de Direitos Humanos adotada pelo Conselho da Europa em 1950 e que entrou em vigor em 1953. O nome oficial da Convenção é Convenção para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais
. Como ressalta Juvêncio Borges Silva⁸, ela teve por objetivo proteger os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais, permitindo um controle judicial quanto ao respeito desses direitos individuais.
O artigo 6º, inciso I, da Convenção Europeia de Direitos Humanos dispõe que todo indivíduo tem direito a uma prestação jurisdicional em tempo razoável⁹, conclusão decorrente da interpretação da íntegra do seu texto, reproduzido a seguir:
Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida em que julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça
¹⁰.
Além da Convenção Europeia de Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em 1992, também consiste em um importante documento assegurador do acesso à justiça, que, em seu artigo 8º, inciso I, assim dispõe:
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza
.
Ademais, a própria Declaração Universal de Direitos Humanos proclama a garantia ao acesso à justiça¹¹, em seu art. 8º, assim comentando José Manuel Bandrés:
"O artigo 8º da Declaração Universal de Direitos Humanos, ao proclamar o direito de toda pessoa a um recurso efetivo ante os tribunais nacionais competentes, que a ampare contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela Lei, institui as garantias jurídicas procedimentais necessárias e imprescindíveis para salvaguardar no Direito interno os direitos humanos e as liberdades públicas.
O Direito a um recurso efetivo não se reconhece na Declaração Universal dos Direitos Humanos como um ius nudum, ao servir esta cláusula como contenção dos espaços de imunidade dos poderes públicos, ao permitir submeter qualquer ato lesivo dos direitos e liberdades dos cidadãos à fiscalização de um tribunal de Direitos.
Inscreve-se este preceito, junto ao artigo 10 que consagra o direito à justiça, entre os pilares que sustentam a arquitetura jurídica da Declaração Universal dos Direitos Humanos, já que, como se adverte entre fundamentos ideológicos da Declaração, esta não busca, não se limita a proclamar formalmente os direitos e liberdades como uma mera aspiração dos homens e povos livres, todavia se interessa pela garantia real e eficaz desses direitos e liberdades, cuja proteção somente se pode assegurar em um Estado de Direito"¹².
Desse modo, Humberto Theodoro Júnior¹³ destaca que, atualmente, o processo tem função política no Estado Social de Direito. Deve ser, portanto, organizado, entendido e aplicado como instrumento de efetivação de uma garantia constitucional, assegurando a todos o pleno acesso à tutela jurisdicional, que há de se manifestar sempre como atributo de uma tutela justa. Nesse sentido, o acesso à justiça deve estar atrelado à efetividade da prestação jurisdicional, para que ocorra a sua realização plena, conforme a sua ressignificação a partir da ascensão do Estado Social.
Destacando a nova significação conferida ao conceito