Estação infinita e outras estações
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Estação infinita e outras estações - Ruy Espinheira Filho
Do autor:
De Paixões e de Vampiros — uma História do Tempo da Era
Ruy Espinheira Filho
Estação Infinita
e outras estações
Poesia Reunida
(1966-2012)
2ª edição
Rio de Janeiro | 2013
Copyright © Ruy Espinheira Filho, 2012
Capa: Raul Fernandes
Imagem de capa: Michael Nelson
Editoração da versão impressa: FA Studio
Texto revisado segundo o novo
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
2013
Produzido no Brasil
Produced in Brazil
Cip-Brasil. Catalogação na fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
E76e
Espinheira Filho, Ruy, 1942-
Estação infinita e outras estações [recurso eletrônico]: poesia reunida (1966-2012) / Ruy Espinheira Filho. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.
recurso digital
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-85-286-1906-5 (recurso eletrônico)
1. Poesia brasileira. 2. Livros eletrônicos. I. Título.
13-06518
CDD — 869.91
CDU — 821.134.3(81)-1
Todos os direitos reservados pela:
EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.
Rua Argentina, 171 – 2º andar – São Cristóvão
20921-380 – Rio de Janeiro – RJ
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Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.
Atendimento e venda direta ao leitor:
mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Tempo inteiro, por Miguel Sanches Neto
HELÉBORO (1966-1973)
I — Longe de Sírius
Os objetos
O que ler no poema
O que ler na correspondência sentimental
Longe de Sírius
Tempo perdido
Marinha
O morto
Oferta
Púrpura e diamância
Circulação amorosa
Antielegia para Alberto Luís Baraúna
As distâncias
Fragmentos de uma viagem com Lemuel Gulliver
II — Música pretérita
Descoberta
A volta ao lar
Poções revisitado: algumas notas
A música recusada
JULGADO DO VENTO (1966-1976)
O rosto na chuva
Eurídice, Orfeu
Pêndulo
Os bens maiores
Memória
Notícia da casa
Revelação
As meninas
Improviso no Farol da Barra
Elegia
O avô
Rapto
Equívoco
Cristal
Mane, tecel, fares
Resto
Diante do herói
Voo cego
Bilhete a Mário Quintana
Dia de finados
Busca
Convite
AS SOMBRAS LUMINOSAS (1975-1980)
I — As sombras luminosas
Viagem
As janelas
Praça da liberdade
Nesta varanda
Poema para Matilde
Uma cidade
Inúmero
Canção da lua
Fuga
Aqui, antes da noite
O poema
Do amor
A inelutável canção
A sarça, o vento, a chama
As sombras luminosas
II — O inquilino do incêndio
No banco do jardim
Primeira elegia urbana
Segunda elegia urbana
Terceira elegia urbana
MORTE SECRETA E POESIA ANTERIOR (1976-1984)
I — A janela no espaço
Jardim
A janela no espaço
Poema de dezembro
Primeiro soneto da permanência
Destino e fuga
Aniversário
Soneto do corpo
Antes de tudo
Segundo soneto da permanência
Aqui estou eu, comigo
Soneto do amor e seus sóis
Carlos Anísio Melhor
Soneto da paixão
A carta
Canção da moça de dezembro
Soneto para Ângelo Roberto e Fred Souza Castro
Passionária
Essas coisas
Quando meu avô deixou a sua terra
Luz
Soneto de uma morte
Flor
Soneto do fantasma
Sem demora
II — O habitante do escuro
Agosto, ocaso
O habitante do escuro
A CANÇÃO DE BEATRIZ E OUTROS POEMAS (1985-1990)
I — Ulisses
Na noite alta, um assovio
Um poeta, uma vez
O inverno fere o outono
Mãos
Poema de novembro
Um baile da infância
Se agora me procurasses
Poema para Mario
Canção para Clarissa
Janeiro
Soneto do anjo de maio
Improviso na praia
Canção do ocaso
Soneto de julho
Campo de Eros
Ulisses
História
II — O pai
O pai
III — A canção de Beatriz
A canção de Beatriz
A GUERRA DO GATO (1987)
MEMÓRIA DA CHUVA (1990-1996)
Depois
Luar
Soneto do quintal
Um sonho
Enquanto
Soneto da justificação
Memória da chuva
Brisa
Tardes
Canção de depois de tanto
O poeta em sua varanda
Sempre
Outras quebradas do tempo
Canção de março
Plenitude
Soneto da triste fera
Canção
A chave de ouro
O luar, o rumor
Exumação
Visita do poeta Carlos Anísio Melhor
Lendo Plutarco
O rio
Blind Borges
A chuva, uma história
Soneto da tarde
Canção do pirata naufragado
Soneto do inelutável
Reflexão ao fim do nono círculo
Canção da permanência
Como um navio perdido
Ao luar
Caixa
Canção das cinzas da tarde
Esplendor
Noturno
Crepuscular
Anotações depois da chuva
Álbum
Às vezes
Canção de maio
Retorno
Mario, em seu bote inflável, no mar de Guarajuba (verão de 96)
Sonhos
Sobre a manhã
Sosígenes Costa
O prisioneiro Graciliano Ramos no porão do Manaus
Palavras do vento
Despedidas
A CIDADE E OS SONHOS (2003)
Epígrafe
1. Os mortos
2. A poetisa
3. Azul
4. Tamarindeiro
5. A musa
6. Mar
7. Manhã solene
8. Corpo
9. Tangos
10. Fulgor
11. A suicida
12. Crepúsculo
13. Afogados
14. Adormecida
15. Magias
16. Névoa
17. Vestidos
18. Casuarinas
19. Espumas
20. Cacimba
21. Circo
22. A menina e o anjo
23. Noite de junho
24. Fada
25. Despojos
26. Nome
27. Giuseppe
28. Milagre
29. Moringas
30. Elas
31. Açude
32. Naro
33. Dança
34. Saudades
35. Colombina
36. A avó
37. Xerazade
38. Sonhos
39. Outras magias
40. Leveza
41. Permanência
42. Sempre
Epílogo
ELEGIA DE AGOSTO E OUTROS POEMAS (1996-2004)
I — Herança
Noite de maio
Elegia de agosto (1987)
Antielegia de agosto (1902-1987)
Canção branca
Soneto dos incomparáveis joelhos
Canção matinal
Soneto da negra
Canção da moça e do sonho
Soneto da chuva e da voz
Bilhete a Maria
Anotações num dia de aniversário
Essa mulher
Herança
Soneto para Sandra
Segundo soneto para Sandra
Canção da lua de agosto
Modos
Flor de junho
Insônia
Esclarecimento
No silêncio
Este dia
A falta
Soneto da ressaca
Bilhete a Guido Guerra
O acossado
Árvores
Canção da alma meditativa
Na cidade de antes
Soneto da luz de maio
Canção do amor antigo
Casas (um sonho)
Poema para ser lido em junho passado
Soneto para Safira disparue
Outro dia
Canção da alma estagnada
Biografia
Perguntas na sombra
Canção dos chopes de maio
Soneto de um amor
Depois da chuva e do vento
Retrato
Soneto de Ano-Novo
Canção de casa e amor
Gestos: dois sonetos
De outra vida
Grácia
Soneto da lua antiga
31 de dezembro
Soneto a dez dias de completar 60 anos
Soneto do sono
Soneto no aeroporto de Lisboa (11 de junho de 2004)
Soneto do sábio ócio
Soneto do esquecimento
Melodia
Endereços
Adeuses
II — Alguns rapazes
Antonio Brasileiro
Paulo Micheli Meira
Affonso Manta
O testemunho
A vontade
Vândalos
História de léguas e éguas
O que pensa um defensor de Canudos enquanto aguarda
sua vez de ser degolado pelos soldados da República
(Bahia, 17 de outubro de 1897)
ROMANCE DO SAPO SECO: UMA HISTÓRIA DE ASSOMBROS (2005)
SOB O CÉU DE SAMARCANDA (2005-2009)
I — Sob o céu de Samarcanda
Canção do efêmero com passarinho e brisa
Soneto da perda
In angello cum libello
Reflexões ao crepúsculo
Epifania
Nuvens
Soneto noturno
Companhia
Ela
Canção de sonho e lembrança
Mulheres
Soneto de domingo e céu
Esse homem
Canção de inverno
Tarde
Preamar
De névoas e flamas
Os herdeiros
Canção da vida
Soneto dos olhos
Canção dos poderes insabidos
Carta
Visita
Arco-íris
Soneto do nome
Vinte anos
Soneto do sino e do tempo
Sombra
Estantes
Soneto de uma luz
Águas
História de amor e morte
Soneto de Uma
Anjos
Canção à boca da noite
Passeio
Mãe
Depois de certo tempo
Canção de uma brisa
Canção pluvial
Exílio
São Paulo, 2007
Bilhete a Manuel Bandeira
O avesso e o espesso
O que somos
O poeta e seu leitor
Canção do poeta em mudança para Busca Vida
Sob o céu de Samarcanda
Manuscrito encontrado entre os papéis do poeta, em envelope lacrado que ele, infelizmente, nunca chegou a abrir
Reconhecimento
Soneto dos jabutis
Dedicatória
Espelho
Números
Transe
Soneto da última dentição
Em tempo
Os mortos
Canção que eu gostaria de não ter escrito
Mais um
Soneto de velhice e almas
Outro aniversário
A morte e o bom-dia
Poema para Henrique Marques Samyn, que se impressionou com a tristeza e a morte em minha poesia
II — Sete poemas de outra era (1969-1975)
Graal
O possesso
Em Akdyr
Sobre o penhasco
Frio
Até que a vida nos separe
A ilha Maria
A CASA DOS NOVE PINHEIROS (2009-2012)
I — A casa dos nove pinheiros
A casa dos nove pinheiros
Condição
Canção de aniversário
Um de nós
Canção de juventude
Fugit irreparabile tempus
Dentro da noite
Celebração
De uma forma ou de outra
Pensamentos
Uma história
Nada
Conversa com Francisco Otaviano
Rosa
Outra vida
Encanto
Trovões
De súbito, do nada, uma carta
Soneto da tempestade
Passarinhos
Chuvas
Moradas
Voz
Alento
Talvez
Súbita canção da névoa
Soneto do sonho
Visitas
Passageiros
Varanda
Atores
II — Viagem
Plínio o Velho e a nuvem misteriosa segundo Plínio o Moço e uma análise de Umberto Eco com breves considerações finais de um poeta seguramente persona non grata
Pompeia
Atena
Auriga
Apolo
Pítia
Pã
Dádivas
Dr. Munthe
Veneza
Ele
Versailles
Louvre
Catacumba
Soneto helênico ou do infindável
Depois
ESTAÇÃO INFINITA (2012)
Uma visita em abril
70 anos
APRESENTAÇÃO
Tempo inteiro
Miguel Sanches Neto
A julgar por autores e obras com destaque, o que a contemporaneidade entende por poesia não passa daquilo que o crítico italiano Alfonso Berardinelli definiu como o kitsch do moderno, um conjunto desconectado de palavras, caracterizado por uma forma vazia e intercambiável. Para este intelectual, a poesia hegemônica no Ocidente é a que nega o autor, a que se despersonaliza ao extremo, numa reprodução constante de si mesma. Tratando não só da poesia, mas da literatura como um todo, Isaac Bashevis Singer lembrava em suas memórias (Amor e Exílio) que todas as inovações de linguagem em breve se tornam clichês
. Avesso a esse processo, alguns poetas produzem uma obra vinculada à própria circunstância.
Pertencendo a este grupo, o baiano Ruy Espinheira Filho (Salvador, 1942) publica agora Estação infinita e outras estações — poesia reunida, em que o leitor poderá acompanhar a trajetória de um dos mais importantes poetas líricos brasileiros da modernidade. É uma poesia com dimensão biográfica e histórica, contrária à ideia de que o universo poético deve ser uma realidade paralela, onde flutuem linguagens marcadas pelo vácuo semântico. Não existe linguagem sem o ser humano. E o ser humano enquanto linguagem é o que se chama de literatura.
Desde o início de sua vida editorial, em 1973, Ruy Espinheira se destaca como uma voz à parte, praticando a poesia contra a passagem do tempo. Ao poeta cabe uma atividade das mais difíceis, que é transformar os vazios existenciais em obra de arte, em uma tentativa de plenitude. Perdemos pessoas, paisagens, feições e por fim perdemos a nós mesmos, e é com estas perdas que ele erige o poema: Mais pleno é o perdido, pois o resto / ainda não se cumpriu
(p. 97). É no passado que ele encontra o tempo inteiro, conquistando uma ampla compreensão emocional. No presente, tudo é incompleto. E o futuro, mera ficção.
Habitam esta poesia os parentes, os amigos, as mulheres, os livros, as paisagens, ou seja, todo o contexto afetivo do poeta. Mas a figura central para Ruy Espinheira é o pai, de quem ele herda mais do que o nome, recebendo também uma visão generosa do mundo. Eis a fonte imorredoura de afeto. E embora haja belos tributos às paixões, a sua poesia é amorosa num sentido muito mais amplo, que inclui todas as coisas mudáveis do mundo. Há vários poemas falando de amigos, outros que lhes são dedicados, o que faz de sua poesia uma das mais belas celebrações da amizade em nossa língua.
Uma obra com tal função não pode optar pelo verbo agressivo, pelas dissonâncias, pelas inovações (que querem tornar o anterior obsoleto). O seu verbo é calmo, forjando uma voz melancólica mas estranhamente pacificadora, que nos leva a viver o perdido, a sofrer com ele, mas também a participar de sua redenção. Assim se cumpre a essência do literário, sem a qual ele perde todo o sentido, que é nos unir a uma trajetória, criando laços com outros seres; no caso da poesia, com o próprio poeta, com um eu que não se afasta daquilo que se afastou dele:
Isto o que ganhei: essas perdas. Isto
o que ficou: esse tesouro
de ausências.
Este tesouro nos forma e nos conforma diante do nosso próprio fim. Pela poesia, participamos de uma experiência individualizada, a do poeta, e também de uma genérica, a da natureza humana. É nesse sentido que a poesia é sempre verbo encarnado. Verbo que se faz gente. E não uma linguagem funcionando sozinha.
HELÉBORO
(1966-1973)
Para meus pais
e irmãos
Aos meus mortos
Antonio Carlos Leão
Nivaldo Rodrigues
Paulo Marques
Alberto Luís Baraúna
I — LONGE DE SÍRIUS
OS OBJETOS
Os objetos
permanecem claros.
Habita a moldura
uma mulher de faces
cor-de-rosa.
Sobre a mesa de mármore
um cavaleiro de porcelana
saúda as visitas.
A caneta ainda escreve
com a mesma tinta
de um azul levemente melancólico.
Na gaveta, dormindo
sob cartas e poemas,
o revólver aguarda.
O QUE LER NO POEMA
a Jacinto Prisco
O elfo insubmisso
em seu Grifo embruxado;
Pégaso nascendo
entre meninos cegos;
o vento soprando
janelas demolidas,
regendo uma orquestra
que ficou no mar;
o pássaro Sempre
inscrito no peito;
as tranças desfeitas
nos ombros curvados;
Lysis, a estrela,
ungindo a súplica
além da palavra;
a fonte secreta
perdida em si mesma,
como se perde a
areia na areia.
O QUE LER NA CORRESPONDÊNCIA SENTIMENTAL
Não o papel
pautado de azul;
não a escrita
traçada em azul.
A data, o
envelope: não.
Não: a mancha
do carimbo, a metáfora.
Mas o jeito
da mão escriba,
invisa, os
lagos dos olhos
e o vasto que o íntimo
faísca, deflágrima
num espaço mais amplo
que o pintado de azul.
LONGE DE SÍRIUS
a Antonio Brasileiro
O carro de bois
na planura verde
é como se um pássaro
me pousasse na mão.
Imagino (a distância
é de não se ver) o
carreiro na madorna
suave como um regato.
Só para isto estou
agora desperto. Brando,
pacificado, como se
adormecesse.
TEMPO PERDIDO
No tempo perdido
deslizo à sombra
da árvore, sobre a
música do rio.
No tempo perdido
tudo é cintilância:
no luar, nos copos,
nos teus lábios úmidos.
No tempo perdido
cantam as alviaves
e me amas na areia
de uma praia anônima.
Ó tempo perdido,
como em ti sou rico,
maduro de viagens
e multilustrado!
Só teu universo
feito do não feito
nos dá o melhor
que há no factível.
Tomando o teu barro
nossos dedos moldam
como angelizados
um mundo ideal.
(Na tua verdade
uma outra história:
nós temos as mãos
repletas mas puras.)
Assim, pairo à sombra
da árvore, sobre a
música do rio,
computando nuvens;
conversando flores,
seixos, reflexos;
logo esporeando
um galope mágico.
No tempo perdido
recupero, enfim,
tudo o que perdi
no meu tempo ganho.
MARINHA
Meus olhos testemunham
a invisibilidade das ondinas,
a lenta morte dos arrecifes
e os canhões de Amaralina.
Vou, a passo gnominado,
pisando a areia fina
da praia.
Pombas sobrevoam
os canhões de Amaralina.
Parece a vida estar completa
na paz que o azul ensina.
A brisa ilude a vigilância
dos canhões de Amaralina.
Nem tua ausência, amor, perturba
esta alegria matutina
onde só há o claro e o suave...
(E os canhões de Amaralina?).
Tudo está certo: mar, coqueiros,
aquela nuvem pequenina...
Mas — o que querem na paisagem
os canhões de Amaralina?
O MORTO
O morto vem no sonho
claro e completo.
Com seu jeito próprio
de lidar com crianças.
De beber.
Com o rosto
cheio de manhã.
Reconheço a praça
de onde ele me fita.
Mas a noite desce
e tudo se apaga.
Só ele continua
luminosamente
como se viesse da praia.
O ensolarado morto.
OFERTA
para Gylka
Este sangrar
em carne e palavra;
este sangrar
às vezes além
da carne, e mais forte
que toda palavra.
Este áureo tempo
conservado intato
em ternura, onde
sorri a criança
no chão em que há flores
de tamarindeiro,
e além do jardim
a casa paterna
como um farol.
Esta, às vezes,
obscura ânsia
ou perplexidade.
O amor aos homens,
bichos e coisas;
e o medo de amar
e o de não amar;
e o medo da morte
ainda menor
que o de ser eterno
(seja aqui, assim,
ou numa diversa
realidade, como
outra substância).
E estes remorsos
e tantos equívocos.
Sonhos que jamais
deixarão a sua
condição onírica.
Extintos gorjeios
em ramos há muito
mortos; companheiros
mortos; mortas noites,
tardes, auroras.
E esta esperança
tantas vezes rude,
impossível de
carregar, cumprir.
E o que não posso
(por falta de engenho
ou coragem) contar,
e frequentemente
mais que tudo conta.
Assim te oferto
o que tenho e sou
— e que hoje, agora,
vai passar também
a te pertencer
neste beijo de amor.
Ou de, não sei bem,
pura crueldade.
PÚRPURA E DIAMÂNCIA
1
Porque apontaste
a nudez do rei
estás nu na praça.
Mais que nu: teu gesto
despiu-te além da roupa:
abriu-te
a porta mais recôndita,
e o cofre
oculto por esta porta,
e,
no cofre,
revelou a tua essência mesma
de ser.
2
Ai que o rei ora te sabe
em claro sol!
A sua nudez, que indigitaste,
ninguém vê.
Há muito não se vê
senão o que indica
o soberano indicador;
faz tempo as gentes
acreditam somente
no que lhes conta o rei;
faz tempo só se vê
pelo olho do rei;
só se lê
pela escrita do rei;
só se existe
segundo o rei permite.
E em todas as consciências,
há muito, o rei
teleprojetou-se em púrpura e diamância.
3
Tu sabes
que ele está nu
e é disforme e flácido e enrugado
e grotesco e repugnante e tem
as partes podres, purulentas
— mas isso não importa
se ninguém pode ver
além de ti.
Se todos, ab initio, foram programados
para só detectar
púrpura e diamância.
Apenas uma nudez se fez visível
na ponta do teu gesto:
a tua,
que ao rei e aos seus poderes denuncia
um equívoco em ti
que subverte
o real ditado pelo rei.
4
Sim: o teu real
contraria o do rei.
Opõe-se ao de todos
que estão nesta praça.
Ah, nada aprendeste
do que te ensinaram!
Em que te distraías
— quando te mostravam
o que devias ver?
— quando gravavam
a púrpura nos olhos
e além dos olhos?
— quando te falavam
sobre a cintilância
do rei e seu séquito?
— quando repetiam
que o único real
é o do rei?
Em que te abismavas
— em que traição? —
quando trabalhavam
tua perfeição?
O que maquinavas
— que plano? que mal? —
quando te moldavam
súdito ideal?
Não sabemos. Sabemos que descumpriste
o teu dever de ver e de viver.
Principalmente o rei
sabe
(bem já te advertira o Eclesiastes...)
e com um gesto convoca a punição.
5
Então é fugir
em
tresloucura
doidespero.
Sob a batuta real
as gentes se unem,
formam paredões
contra essa fuga.
Perto,
mais perto
o arfar hediondo
dos perseguidores.
E foges
e rompes
e pisas
e saltas
e grimpas
a torre
de Babel,
a escada
de Jacó
velozpanicamente!
Foges e te ocultas
e mordes, exausto, a poeira
deste canto de muro que te guarda.
Exausto, exausto,
ofegas
colado à sombra, ao chão.
Um átimo apenas para sonhar
com força
violência
raiva
um lugar,
por mais mínimo,
sem o dever de ver e de viver
o real do rei.
E já
te fareja de novo a punição.
CIRCULAÇÃO AMOROSA
Cuidava que amor já se findara,
até vê-lo de face, recomposto
entre asfalto e edifício, nuns alindes
de tempo muito outrora merecido.
Cuidava que carpir só me restava,
diante de impassíveis formas neutras,
o meu próprio pretérito exilado
na mais interior e inacessível
ilha que me permito, enquanto a bruma
delia-me, no peito, a tatuagem
celebrante de ingênuos madrigais
compostos entre beijo, espada e rosa.
Cuidava me tornar, fonte exaurida,
um somente lugar no descaminho,
cemitério de seixos, sem o móbil
que cumpre o ser do rio e seu destino.
E nem mais matinava nos mundéus:
a espreita, o soslaio, o sutil
em que se guarda amor no anteminuto
de quando a nossa posse é consumada.
E onde nos consumimos. Ah, cuidava
ser a coisa maninha (alma ou carne)
tudo o que finalmente me compunha,
era eu-mesmo, repleto, concluído.
Como se, antese oculta, vindo amor
fosse momento em branco o onde se enflora
nosso endereço escrito no infinito.
ANTIELEGIA PARA ALBERTO LUÍS BARAÚNA
Impossível te contar.
Se antes já eras difícil
quando
palpável e civil
com idade horário óculos bigode
andar característico endereço
como
te contar agora que deslizas
no sem-limite
e
segundo um apenas desejar
auroras-te num cerne de noite
ou te anoiteces
numa centelha de manhã
com (imagino) um portulano feérico
aberto ante o teu trânsito embruxado?
Ah como
te contar
se mesmo
quando ainda o corpo te prendia
ao chão nosso de cada passo
às vezes cruzavas a cidade
pelos anéis de Saturno?
...e logo
múltiplo
passeavas
ventos marinheiros
carrosséis de antanho
tu
enselvado no amorável
jamais como um que perdeu
seu Unicórnio?
Mais que nunca
poeta
impossível te contar.
Vogas tão além do verso
quanto a extrema complexidade de certas coisas
simples
como hoje
por exemplo
quando despertei
e vi o sol nascendo e o céu azul
e o mar brilhando manso e a terra úmida
explodindo em verde
e tomei café e acendi um cigarro
e sentei-me diante da janela aberta
e
de repente
aquele riso
vindo da rua
um riso
assim
muito claro
vindo da rua.
AS DISTÂNCIAS
1
O cisne se faz amplo
para o voo.
Alviplana
sobre os nossos ombros desolados.
Não uma ave:
imagem
do que os deuses não nos concedem.
Sua leveza ainda mais afunda
nossos pés na areia, na pedra.
Mas quem pode dizer da chaga
em sua carne? do seu
cansaço? da fuga? do lago
perdido?
Do
ímpeto
na medula