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Estação infinita e outras estações
Estação infinita e outras estações
Estação infinita e outras estações
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Estação infinita e outras estações

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About this ebook

Em Estação infinita e outras estações, Ruy Espinheira Filho reúne poemas escritos a partir de 1966, que começaram a ser publicados em livro a partir de 1973. Uma obra que mostra a carreira admirável e ilustre de um grande poeta. Com este novo título, o autor completa 39 anos de publicações e 70 de idade. Mário de Andrade dizia que arte se faz com carne, sangue, espírito e tumulto de amor. Assim é feita a obra de Ruy Espinheira Filho, a qual Carlos Drummond de Andrade definiu como "poesia concentrada e de sutil expressão" ao ler o segundo livro do poeta, Heléboro, sua estreia em volume individual.
LanguagePortuguês
PublisherBertrand
Release dateDec 13, 2013
ISBN9788528619065
Estação infinita e outras estações

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    Estação infinita e outras estações - Ruy Espinheira Filho

    Do autor:

    De Paixões e de Vampiros — uma História do Tempo da Era

    Ruy Espinheira Filho

    Estação Infinita

    e outras estações

    Poesia Reunida

    (1966-2012)

    2ª edição

    Rio de Janeiro | 2013

    Copyright © Ruy Espinheira Filho, 2012

    Capa: Raul Fernandes

    Imagem de capa: Michael Nelson

    Editoração da versão impressa: FA Studio

    Texto revisado segundo o novo

    Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

    2013

    Produzido no Brasil

    Produced in Brazil

    Cip-Brasil. Catalogação na fonte

    Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    E76e

    Espinheira Filho, Ruy, 1942-

    Estação infinita e outras estações [recurso eletrônico]: poesia reunida (1966-2012) / Ruy Espinheira Filho. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.

    recurso digital

    Formato: ePub

    Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions

    Modo de acesso: World Wide Web

    ISBN 978-85-286-1906-5 (recurso eletrônico)

    1. Poesia brasileira. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

    13-06518

    CDD — 869.91

    CDU — 821.134.3(81)-1

    Todos os direitos reservados pela:

    EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.

    Rua Argentina, 171 – 2º andar – São Cristóvão

    20921-380 – Rio de Janeiro – RJ

    Tel.: (0xx21) 2585-2070 – Fax: (0xx21) 2585-2087

    Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

    Atendimento e venda direta ao leitor:

    mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002

    SUMÁRIO

    APRESENTAÇÃO

    Tempo inteiro, por Miguel Sanches Neto

    HELÉBORO (1966-1973)

    I — Longe de Sírius

    Os objetos

    O que ler no poema

    O que ler na correspondência sentimental

    Longe de Sírius

    Tempo perdido

    Marinha

    O morto

    Oferta

    Púrpura e diamância

    Circulação amorosa

    Antielegia para Alberto Luís Baraúna

    As distâncias

    Fragmentos de uma viagem com Lemuel Gulliver

    II — Música pretérita

    Descoberta

    A volta ao lar

    Poções revisitado: algumas notas

    A música recusada

    JULGADO DO VENTO (1966-1976)

    O rosto na chuva

    Eurídice, Orfeu

    Pêndulo

    Os bens maiores

    Memória

    Notícia da casa

    Revelação

    As meninas

    Improviso no Farol da Barra

    Elegia

    O avô

    Rapto

    Equívoco

    Cristal

    Mane, tecel, fares

    Resto

    Diante do herói

    Voo cego

    Bilhete a Mário Quintana

    Dia de finados

    Busca

    Convite

    AS SOMBRAS LUMINOSAS (1975-1980)

    I — As sombras luminosas

    Viagem

    As janelas

    Praça da liberdade

    Nesta varanda

    Poema para Matilde

    Uma cidade

    Inúmero

    Canção da lua

    Fuga

    Aqui, antes da noite

    O poema

    Do amor

    A inelutável canção

    A sarça, o vento, a chama

    As sombras luminosas

    II — O inquilino do incêndio

    No banco do jardim

    Primeira elegia urbana

    Segunda elegia urbana

    Terceira elegia urbana

    MORTE SECRETA E POESIA ANTERIOR (1976-1984)

    I — A janela no espaço

    Jardim

    A janela no espaço

    Poema de dezembro

    Primeiro soneto da permanência

    Destino e fuga

    Aniversário

    Soneto do corpo

    Antes de tudo

    Segundo soneto da permanência

    Aqui estou eu, comigo

    Soneto do amor e seus sóis

    Carlos Anísio Melhor

    Soneto da paixão

    A carta

    Canção da moça de dezembro

    Soneto para Ângelo Roberto e Fred Souza Castro

    Passionária

    Essas coisas

    Quando meu avô deixou a sua terra

    Luz

    Soneto de uma morte

    Flor

    Soneto do fantasma

    Sem demora

    II — O habitante do escuro

    Agosto, ocaso

    O habitante do escuro

    A CANÇÃO DE BEATRIZ E OUTROS POEMAS (1985-1990)

    I — Ulisses

    Na noite alta, um assovio

    Um poeta, uma vez

    O inverno fere o outono

    Mãos

    Poema de novembro

    Um baile da infância

    Se agora me procurasses

    Poema para Mario

    Canção para Clarissa

    Janeiro

    Soneto do anjo de maio

    Improviso na praia

    Canção do ocaso

    Soneto de julho

    Campo de Eros

    Ulisses

    História

    II — O pai

    O pai

    III — A canção de Beatriz

    A canção de Beatriz

    A GUERRA DO GATO (1987)

    MEMÓRIA DA CHUVA (1990-1996)

    Depois

    Luar

    Soneto do quintal

    Um sonho

    Enquanto

    Soneto da justificação

    Memória da chuva

    Brisa

    Tardes

    Canção de depois de tanto

    O poeta em sua varanda

    Sempre

    Outras quebradas do tempo

    Canção de março

    Plenitude

    Soneto da triste fera

    Canção

    A chave de ouro

    O luar, o rumor

    Exumação

    Visita do poeta Carlos Anísio Melhor

    Lendo Plutarco

    O rio

    Blind Borges

    A chuva, uma história

    Soneto da tarde

    Canção do pirata naufragado

    Soneto do inelutável

    Reflexão ao fim do nono círculo

    Canção da permanência

    Como um navio perdido

    Ao luar

    Caixa

    Canção das cinzas da tarde

    Esplendor

    Noturno

    Crepuscular

    Anotações depois da chuva

    Álbum

    Às vezes

    Canção de maio

    Retorno

    Mario, em seu bote inflável, no mar de Guarajuba (verão de 96)

    Sonhos

    Sobre a manhã

    Sosígenes Costa

    O prisioneiro Graciliano Ramos no porão do Manaus

    Palavras do vento

    Despedidas

    A CIDADE E OS SONHOS (2003)

    Epígrafe

    1. Os mortos

    2. A poetisa

    3. Azul

    4. Tamarindeiro

    5. A musa

    6. Mar

    7. Manhã solene

    8. Corpo

    9. Tangos

    10. Fulgor

    11. A suicida

    12. Crepúsculo

    13. Afogados

    14. Adormecida

    15. Magias

    16. Névoa

    17. Vestidos

    18. Casuarinas

    19. Espumas

    20. Cacimba

    21. Circo

    22. A menina e o anjo

    23. Noite de junho

    24. Fada

    25. Despojos

    26. Nome

    27. Giuseppe

    28. Milagre

    29. Moringas

    30. Elas

    31. Açude

    32. Naro

    33. Dança

    34. Saudades

    35. Colombina

    36. A avó

    37. Xerazade

    38. Sonhos

    39. Outras magias

    40. Leveza

    41. Permanência

    42. Sempre

    Epílogo

    ELEGIA DE AGOSTO E OUTROS POEMAS (1996-2004)

    I — Herança

    Noite de maio

    Elegia de agosto (1987)

    Antielegia de agosto (1902-1987)

    Canção branca

    Soneto dos incomparáveis joelhos

    Canção matinal

    Soneto da negra

    Canção da moça e do sonho

    Soneto da chuva e da voz

    Bilhete a Maria

    Anotações num dia de aniversário

    Essa mulher

    Herança

    Soneto para Sandra

    Segundo soneto para Sandra

    Canção da lua de agosto

    Modos

    Flor de junho

    Insônia

    Esclarecimento

    No silêncio

    Este dia

    A falta

    Soneto da ressaca

    Bilhete a Guido Guerra

    O acossado

    Árvores

    Canção da alma meditativa

    Na cidade de antes

    Soneto da luz de maio

    Canção do amor antigo

    Casas (um sonho)

    Poema para ser lido em junho passado

    Soneto para Safira disparue

    Outro dia

    Canção da alma estagnada

    Biografia

    Perguntas na sombra

    Canção dos chopes de maio

    Soneto de um amor

    Depois da chuva e do vento

    Retrato

    Soneto de Ano-Novo

    Canção de casa e amor

    Gestos: dois sonetos

    De outra vida

    Grácia

    Soneto da lua antiga

    31 de dezembro

    Soneto a dez dias de completar 60 anos

    Soneto do sono

    Soneto no aeroporto de Lisboa (11 de junho de 2004)

    Soneto do sábio ócio

    Soneto do esquecimento

    Melodia

    Endereços

    Adeuses

    II — Alguns rapazes

    Antonio Brasileiro

    Paulo Micheli Meira

    Affonso Manta

    O testemunho

    A vontade

    Vândalos

    História de léguas e éguas

    O que pensa um defensor de Canudos enquanto aguarda

    sua vez de ser degolado pelos soldados da República

    (Bahia, 17 de outubro de 1897)

    ROMANCE DO SAPO SECO: UMA HISTÓRIA DE ASSOMBROS (2005)

    SOB O CÉU DE SAMARCANDA (2005-2009)

    I — Sob o céu de Samarcanda

    Canção do efêmero com passarinho e brisa

    Soneto da perda

    In angello cum libello

    Reflexões ao crepúsculo

    Epifania

    Nuvens

    Soneto noturno

    Companhia

    Ela

    Canção de sonho e lembrança

    Mulheres

    Soneto de domingo e céu

    Esse homem

    Canção de inverno

    Tarde

    Preamar

    De névoas e flamas

    Os herdeiros

    Canção da vida

    Soneto dos olhos

    Canção dos poderes insabidos

    Carta

    Visita

    Arco-íris

    Soneto do nome

    Vinte anos

    Soneto do sino e do tempo

    Sombra

    Estantes

    Soneto de uma luz

    Águas

    História de amor e morte

    Soneto de Uma

    Anjos

    Canção à boca da noite

    Passeio

    Mãe

    Depois de certo tempo

    Canção de uma brisa

    Canção pluvial

    Exílio

    São Paulo, 2007

    Bilhete a Manuel Bandeira

    O avesso e o espesso

    O que somos

    O poeta e seu leitor

    Canção do poeta em mudança para Busca Vida

    Sob o céu de Samarcanda

    Manuscrito encontrado entre os papéis do poeta, em envelope lacrado que ele, infelizmente, nunca chegou a abrir

    Reconhecimento

    Soneto dos jabutis

    Dedicatória

    Espelho

    Números

    Transe

    Soneto da última dentição

    Em tempo

    Os mortos

    Canção que eu gostaria de não ter escrito

    Mais um

    Soneto de velhice e almas

    Outro aniversário

    A morte e o bom-dia

    Poema para Henrique Marques Samyn, que se impressionou com a tristeza e a morte em minha poesia

    II — Sete poemas de outra era (1969-1975)

    Graal

    O possesso

    Em Akdyr

    Sobre o penhasco

    Frio

    Até que a vida nos separe

    A ilha Maria

    A CASA DOS NOVE PINHEIROS (2009-2012)

    I — A casa dos nove pinheiros

    A casa dos nove pinheiros

    Condição

    Canção de aniversário

    Um de nós

    Canção de juventude

    Fugit irreparabile tempus

    Dentro da noite

    Celebração

    De uma forma ou de outra

    Pensamentos

    Uma história

    Nada

    Conversa com Francisco Otaviano

    Rosa

    Outra vida

    Encanto

    Trovões

    De súbito, do nada, uma carta

    Soneto da tempestade

    Passarinhos

    Chuvas

    Moradas

    Voz

    Alento

    Talvez

    Súbita canção da névoa

    Soneto do sonho

    Visitas

    Passageiros

    Varanda

    Atores

    II — Viagem

    Plínio o Velho e a nuvem misteriosa segundo Plínio o Moço e uma análise de Umberto Eco com breves considerações finais de um poeta seguramente persona non grata

    Pompeia

    Atena

    Auriga

    Apolo

    Pítia

    Dádivas

    Dr. Munthe

    Veneza

    Ele

    Versailles

    Louvre

    Catacumba

    Soneto helênico ou do infindável

    Depois

    ESTAÇÃO INFINITA (2012)

    Uma visita em abril

    70 anos

    APRESENTAÇÃO

    Tempo inteiro

    Miguel Sanches Neto

    A julgar por autores e obras com destaque, o que a contemporaneidade entende por poesia não passa daquilo que o crítico italiano Alfonso Berardinelli definiu como o kitsch do moderno, um conjunto desconectado de palavras, caracterizado por uma forma vazia e intercambiável. Para este intelectual, a poesia hegemônica no Ocidente é a que nega o autor, a que se despersonaliza ao extremo, numa reprodução constante de si mesma. Tratando não só da poesia, mas da literatura como um todo, Isaac Bashevis Singer lembrava em suas memórias (Amor e Exílio) que todas as inovações de linguagem em breve se tornam clichês. Avesso a esse processo, alguns poetas produzem uma obra vinculada à própria circunstância.

    Pertencendo a este grupo, o baiano Ruy Espinheira Filho (Salvador, 1942) publica agora Estação infinita e outras estações — poesia reunida, em que o leitor poderá acompanhar a trajetória de um dos mais importantes poetas líricos brasileiros da modernidade. É uma poesia com dimensão biográfica e histórica, contrária à ideia de que o universo poético deve ser uma realidade paralela, onde flutuem linguagens marcadas pelo vácuo semântico. Não existe linguagem sem o ser humano. E o ser humano enquanto linguagem é o que se chama de literatura.

    Desde o início de sua vida editorial, em 1973, Ruy Espinheira se destaca como uma voz à parte, praticando a poesia contra a passagem do tempo. Ao poeta cabe uma atividade das mais difíceis, que é transformar os vazios existenciais em obra de arte, em uma tentativa de plenitude. Perdemos pessoas, paisagens, feições e por fim perdemos a nós mesmos, e é com estas perdas que ele erige o poema: Mais pleno é o perdido, pois o resto / ainda não se cumpriu (p. 97). É no passado que ele encontra o tempo inteiro, conquistando uma ampla compreensão emocional. No presente, tudo é incompleto. E o futuro, mera ficção.

    Habitam esta poesia os parentes, os amigos, as mulheres, os livros, as paisagens, ou seja, todo o contexto afetivo do poeta. Mas a figura central para Ruy Espinheira é o pai, de quem ele herda mais do que o nome, recebendo também uma visão generosa do mundo. Eis a fonte imorredoura de afeto. E embora haja belos tributos às paixões, a sua poesia é amorosa num sentido muito mais amplo, que inclui todas as coisas mudáveis do mundo. Há vários poemas falando de amigos, outros que lhes são dedicados, o que faz de sua poesia uma das mais belas celebrações da amizade em nossa língua.

    Uma obra com tal função não pode optar pelo verbo agressivo, pelas dissonâncias, pelas inovações (que querem tornar o anterior obsoleto). O seu verbo é calmo, forjando uma voz melancólica mas estranhamente pacificadora, que nos leva a viver o perdido, a sofrer com ele, mas também a participar de sua redenção. Assim se cumpre a essência do literário, sem a qual ele perde todo o sentido, que é nos unir a uma trajetória, criando laços com outros seres; no caso da poesia, com o próprio poeta, com um eu que não se afasta daquilo que se afastou dele:

    Isto o que ganhei: essas perdas. Isto

    o que ficou: esse tesouro

    de ausências.

    Este tesouro nos forma e nos conforma diante do nosso próprio fim. Pela poesia, participamos de uma experiência individualizada, a do poeta, e também de uma genérica, a da natureza humana. É nesse sentido que a poesia é sempre verbo encarnado. Verbo que se faz gente. E não uma linguagem funcionando sozinha.

    HELÉBORO

    (1966-1973)

    Para meus pais
    e irmãos
    Aos meus mortos
    Antonio Carlos Leão
    Nivaldo Rodrigues
    Paulo Marques
    Alberto Luís Baraúna

    I — LONGE DE SÍRIUS

    OS OBJETOS

    Os objetos

    permanecem claros.

    Habita a moldura

    uma mulher de faces

    cor-de-rosa.

    Sobre a mesa de mármore

    um cavaleiro de porcelana

    saúda as visitas.

    A caneta ainda escreve

    com a mesma tinta

    de um azul levemente melancólico.

    Na gaveta, dormindo

    sob cartas e poemas,

    o revólver aguarda.

    O QUE LER NO POEMA

    a Jacinto Prisco

    O elfo insubmisso

    em seu Grifo embruxado;

    Pégaso nascendo

    entre meninos cegos;

    o vento soprando

    janelas demolidas,

    regendo uma orquestra

    que ficou no mar;

    o pássaro Sempre

    inscrito no peito;

    as tranças desfeitas

    nos ombros curvados;

    Lysis, a estrela,

    ungindo a súplica

    além da palavra;

    a fonte secreta

    perdida em si mesma,

    como se perde a

    areia na areia.

    O QUE LER NA CORRESPONDÊNCIA SENTIMENTAL

    Não o papel

    pautado de azul;

    não a escrita

    traçada em azul.

    A data, o

    envelope: não.

    Não: a mancha

    do carimbo, a metáfora.

    Mas o jeito

    da mão escriba,

    invisa, os

    lagos dos olhos

    e o vasto que o íntimo

    faísca, deflágrima

    num espaço mais amplo

    que o pintado de azul.

    LONGE DE SÍRIUS

    a Antonio Brasileiro

    O carro de bois

    na planura verde

    é como se um pássaro

    me pousasse na mão.

    Imagino (a distância

    é de não se ver) o

    carreiro na madorna

    suave como um regato.

    Só para isto estou

    agora desperto. Brando,

    pacificado, como se

    adormecesse.

    TEMPO PERDIDO

    No tempo perdido

    deslizo à sombra

    da árvore, sobre a

    música do rio.

    No tempo perdido

    tudo é cintilância:

    no luar, nos copos,

    nos teus lábios úmidos.

    No tempo perdido

    cantam as alviaves

    e me amas na areia

    de uma praia anônima.

    Ó tempo perdido,

    como em ti sou rico,

    maduro de viagens

    e multilustrado!

    Só teu universo

    feito do não feito

    nos dá o melhor

    que há no factível.

    Tomando o teu barro

    nossos dedos moldam

    como angelizados

    um mundo ideal.

    (Na tua verdade

    uma outra história:

    nós temos as mãos

    repletas mas puras.)

    Assim, pairo à sombra

    da árvore, sobre a

    música do rio,

    computando nuvens;

    conversando flores,

    seixos, reflexos;

    logo esporeando

    um galope mágico.

    No tempo perdido

    recupero, enfim,

    tudo o que perdi

    no meu tempo ganho.

    MARINHA

    Meus olhos testemunham

    a invisibilidade das ondinas,

    a lenta morte dos arrecifes

    e os canhões de Amaralina.

    Vou, a passo gnominado,

    pisando a areia fina

    da praia.

    Pombas sobrevoam

    os canhões de Amaralina.

    Parece a vida estar completa

    na paz que o azul ensina.

    A brisa ilude a vigilância

    dos canhões de Amaralina.

    Nem tua ausência, amor, perturba

    esta alegria matutina

    onde só há o claro e o suave...

    (E os canhões de Amaralina?).

    Tudo está certo: mar, coqueiros,

    aquela nuvem pequenina...

    Mas — o que querem na paisagem

    os canhões de Amaralina?

    O MORTO

    O morto vem no sonho

    claro e completo.

    Com seu jeito próprio

    de lidar com crianças.

    De beber.

    Com o rosto

    cheio de manhã.

    Reconheço a praça

    de onde ele me fita.

    Mas a noite desce

    e tudo se apaga.

    Só ele continua

    luminosamente

    como se viesse da praia.

    O ensolarado morto.

    OFERTA

    para Gylka

    Este sangrar

    em carne e palavra;

    este sangrar

    às vezes além

    da carne, e mais forte

    que toda palavra.

    Este áureo tempo

    conservado intato

    em ternura, onde

    sorri a criança

    no chão em que há flores

    de tamarindeiro,

    e além do jardim

    a casa paterna

    como um farol.

    Esta, às vezes,

    obscura ânsia

    ou perplexidade.

    O amor aos homens,

    bichos e coisas;

    e o medo de amar

    e o de não amar;

    e o medo da morte

    ainda menor

    que o de ser eterno

    (seja aqui, assim,

    ou numa diversa

    realidade, como

    outra substância).

    E estes remorsos

    e tantos equívocos.

    Sonhos que jamais

    deixarão a sua

    condição onírica.

    Extintos gorjeios

    em ramos há muito

    mortos; companheiros

    mortos; mortas noites,

    tardes, auroras.

    E esta esperança

    tantas vezes rude,

    impossível de

    carregar, cumprir.

    E o que não posso

    (por falta de engenho

    ou coragem) contar,

    e frequentemente

    mais que tudo conta.

    Assim te oferto

    o que tenho e sou

    — e que hoje, agora,

    vai passar também

    a te pertencer

    neste beijo de amor.

    Ou de, não sei bem,

    pura crueldade.

    PÚRPURA E DIAMÂNCIA

    1

    Porque apontaste

    a nudez do rei

    estás nu na praça.

    Mais que nu: teu gesto

    despiu-te além da roupa:

    abriu-te

    a porta mais recôndita,

    e o cofre

    oculto por esta porta,

    e,

    no cofre,

    revelou a tua essência mesma

    de ser.

    2

    Ai que o rei ora te sabe

    em claro sol!

    A sua nudez, que indigitaste,

    ninguém vê.

    Há muito não se vê

    senão o que indica

    o soberano indicador;

    faz tempo as gentes

    acreditam somente

    no que lhes conta o rei;

    faz tempo só se vê

    pelo olho do rei;

    só se lê

    pela escrita do rei;

    só se existe

    segundo o rei permite.

    E em todas as consciências,

    há muito, o rei

    teleprojetou-se em púrpura e diamância.

    3

    Tu sabes

    que ele está nu

    e é disforme e flácido e enrugado

    e grotesco e repugnante e tem

    as partes podres, purulentas

    — mas isso não importa

    se ninguém pode ver

    além de ti.

    Se todos, ab initio, foram programados

    para só detectar

    púrpura e diamância.

    Apenas uma nudez se fez visível

    na ponta do teu gesto:

    a tua,

    que ao rei e aos seus poderes denuncia

    um equívoco em ti

    que subverte

    o real ditado pelo rei.

    4

    Sim: o teu real

    contraria o do rei.

    Opõe-se ao de todos

    que estão nesta praça.

    Ah, nada aprendeste

    do que te ensinaram!

    Em que te distraías

    — quando te mostravam

    o que devias ver?

    — quando gravavam

    a púrpura nos olhos

    e além dos olhos?

    — quando te falavam

    sobre a cintilância

    do rei e seu séquito?

    — quando repetiam

    que o único real

    é o do rei?

    Em que te abismavas

    — em que traição? —

    quando trabalhavam

    tua perfeição?

    O que maquinavas

    — que plano? que mal? —

    quando te moldavam

    súdito ideal?

    Não sabemos. Sabemos que descumpriste

    o teu dever de ver e de viver.

    Principalmente o rei

    sabe

    (bem já te advertira o Eclesiastes...)

    e com um gesto convoca a punição.

    5

    Então é fugir

    em

    tresloucura

    doidespero.

    Sob a batuta real

    as gentes se unem,

    formam paredões

    contra essa fuga.

    Perto,

    mais perto

    o arfar hediondo

    dos perseguidores.

    E foges

    e rompes

    e pisas

    e saltas

    e grimpas

    a torre

    de Babel,

    a escada

    de Jacó

    velozpanicamente!

    Foges e te ocultas

    e mordes, exausto, a poeira

    deste canto de muro que te guarda.

    Exausto, exausto,

    ofegas

    colado à sombra, ao chão.

    Um átimo apenas para sonhar

    com força

    violência

    raiva

    um lugar,

    por mais mínimo,

    sem o dever de ver e de viver

    o real do rei.

    E já

    te fareja de novo a punição.

    CIRCULAÇÃO AMOROSA

    Cuidava que amor já se findara,

    até vê-lo de face, recomposto

    entre asfalto e edifício, nuns alindes

    de tempo muito outrora merecido.

    Cuidava que carpir só me restava,

    diante de impassíveis formas neutras,

    o meu próprio pretérito exilado

    na mais interior e inacessível

    ilha que me permito, enquanto a bruma

    delia-me, no peito, a tatuagem

    celebrante de ingênuos madrigais

    compostos entre beijo, espada e rosa.

    Cuidava me tornar, fonte exaurida,

    um somente lugar no descaminho,

    cemitério de seixos, sem o móbil

    que cumpre o ser do rio e seu destino.

    E nem mais matinava nos mundéus:

    a espreita, o soslaio, o sutil

    em que se guarda amor no anteminuto

    de quando a nossa posse é consumada.

    E onde nos consumimos. Ah, cuidava

    ser a coisa maninha (alma ou carne)

    tudo o que finalmente me compunha,

    era eu-mesmo, repleto, concluído.

    Como se, antese oculta, vindo amor

    fosse momento em branco o onde se enflora

    nosso endereço escrito no infinito.

    ANTIELEGIA PARA ALBERTO LUÍS BARAÚNA

    Impossível te contar.

    Se antes já eras difícil

    quando

    palpável e civil

    com idade horário óculos bigode

    andar característico endereço

    como

    te contar agora que deslizas

    no sem-limite

    e

    segundo um apenas desejar

    auroras-te num cerne de noite

    ou te anoiteces

    numa centelha de manhã

    com (imagino) um portulano feérico

    aberto ante o teu trânsito embruxado?

    Ah como

    te contar

    se mesmo

    quando ainda o corpo te prendia

    ao chão nosso de cada passo

    às vezes cruzavas a cidade

    pelos anéis de Saturno?

    ...e logo

    múltiplo

    passeavas

    ventos marinheiros

    carrosséis de antanho

    tu

    enselvado no amorável

    jamais como um que perdeu

    seu Unicórnio?

    Mais que nunca

    poeta

    impossível te contar.

    Vogas tão além do verso

    quanto a extrema complexidade de certas coisas

    simples

    como hoje

    por exemplo

    quando despertei

    e vi o sol nascendo e o céu azul

    e o mar brilhando manso e a terra úmida

    explodindo em verde

    e tomei café e acendi um cigarro

    e sentei-me diante da janela aberta

    e

    de repente

    aquele riso

    vindo da rua

    um riso

    assim

    muito claro

    vindo da rua.

    AS DISTÂNCIAS

    1

    O cisne se faz amplo

    para o voo.

    Alviplana

    sobre os nossos ombros desolados.

    Não uma ave:

    imagem

    do que os deuses não nos concedem.

    Sua leveza ainda mais afunda

    nossos pés na areia, na pedra.

    Mas quem pode dizer da chaga

    em sua carne? do seu

    cansaço? da fuga? do lago

    perdido?

    Do

    ímpeto

    na medula

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