Discover millions of ebooks, audiobooks, and so much more with a free trial

Only $11.99/month after trial. Cancel anytime.

Capítulos de história intelectual: Racismo, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil
Capítulos de história intelectual: Racismo, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil
Capítulos de história intelectual: Racismo, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil
Ebook571 pages33 hours

Capítulos de história intelectual: Racismo, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil

Rating: 0 out of 5 stars

()

Read preview

About this ebook

O texto que o leitor tem em mãos é um livro sobre livros, seus autores, seus tempos e suas circunstâncias, atento às historicidades e às durações. Composto por três unidades, o que há em comum é a natureza das fontes: textos impressos voltados ao público e, por isso mesmo, intervenções políticas no mundo dos vivos. Em comum ainda (ao autor e às suas fontes), a permanente reflexão sobre a formação brasileira sob diferentes ângulos, problemáticas e regiões.
A primeira unidade destes Capítulos de História Intelectual ocupa-se do Brasil de fins do século XIX princípio do XX, tempos de racismo científico, imigração e abolição, cujos dramas, tensões e diversidades saltam das páginas de Machado de Assis, Sílvio Romero e Euclides da Cunha.
Já a segunda unidade investe na compreensão das lutas pela memória de São Paulo, quer na historiografia quer nas artes, de fins do século XIX, até os anos 1940, permeados por múltiplos bandeirantes que emanam da historiografia de Afonso de Taunay ou compõem o discurso visual do Museu Paulista. Aqui aparecem ainda os sertanistas narrados pelos cronistas paulistas do século XVIII, Pedro Taques e Frei Gaspar da Madre de Deus, não por coincidência resgatados na primeira metade do século XX, quando São Paulo assumiu um protagonismo nacional que reinventou o passado colonial.
Por fim, a terceira e maior unidade do livro gira em torno de dois importantes intelectuais: o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre e o historiador britânico Charles Boxer. Em comum, ambos gastaram parte de suas vidas para pensar e narrar o passado colonial do Brasil e do Império português. Como não é possível olhar ao passado sem afetar-se do presente, ambos ofereceram respostas muito diferentes para a questão da raça e do racismo, nas décadas de 1950 e 1960, quando a politização do tema ocupou um lugar central no pensamento ocidental. Como que a refletir os novos tempos – de descolonização da África, dos movimentos civis protagonizados pelos negros norte-americanos, de novas intervenções intelectuais –, Freyre e Boxer, marcados pelas suas escolhas e circunstâncias, deram respostas distintas a um velho tema: a mestiçagem e o racismo.
Temas que, a sua maneira, já apareciam em Sílvio Romero e Euclides da Cunha (ou obliquamente em Machado de Assis), ou ainda em Afonso de Taunay e nos discursos bandeirantes. Como questão de fundo, sempre ele, o passado colonial, revisitado por cada novo presente.
LanguagePortuguês
Release dateDec 3, 2020
ISBN9786586081909
Capítulos de história intelectual: Racismo, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil

Related to Capítulos de história intelectual

Related ebooks

History For You

View More

Related articles

Reviews for Capítulos de história intelectual

Rating: 0 out of 5 stars
0 ratings

0 ratings0 reviews

What did you think?

Tap to rate

Review must be at least 10 words

    Book preview

    Capítulos de história intelectual - Alberto Luiz Schneider

    fronts

    Copyright © 2019 Alberto Luiz Schneider

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009

    Edição: Haroldo Ceravolo Sereza/ Joana Monteleone

    Editora assistente: Danielly de Jesus Teles

    Projeto gráfico, diagramação e capa: Danielly de Jesus Teles

    Assistente acadêmica: Bruna Marques

    Revisão: Alexandra Collontini

    Imagem da capa: Tinha que acontecer (cabeça de bandeirante), 2016. Bronze, 135 x 250 x 160 cm, de Flávio Cerqueira, Estação Pinacoteca. Exibido na mostra Metrópole: Experiência Paulistana, com curadoria de Tadeu Chiarelli (2017). Foto: Christina Rufatto

    CIP-BRA­SIL. CA­TA­LO­GA­ÇÃO-NA-FON­TE

    SIN­DI­CA­TO NA­CI­O­NAL DOS EDI­TO­RES DE LI­VROS, RJ

    ___________________________________________________________________________

    S385c

    Schneider, Alberto Luiz

      Capítulos de história intelectual [recurso eletrônico] : racismos, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil /  Alberto Luiz Schneider. - 1. ed. - São Paulo : Alameda, 2020.

    recurso digital 

    For­ma­to: ebo­ok

    Re­qui­si­tos dos sis­te­ma:

    Modo de aces­so: world wide web

    In­clui bi­bli­o­gra­fia e ín­di­ce

    ISBN 978-65-86081-90-9 (re­cur­so ele­trô­ni­co)

            1. Intelectuais - Brasil - História - Séc. XIX. 2. Intelectuais - Brasil - História - Séc. XX. 3. Brasil - Vida intelectual - Séc. XIX. 4. Brasil - Vida intelectual - Séc. XX. 5. Livros eletrônicos. I. Título.

    20-67828 CDD: 981.06

    CDU: 94(81)1880/1960

    ____________________________________________________________________________

    Conselho Editorial

    Ana Paula Torres Megiani

    Eunice Ostrensky

    Haroldo Ceravolo Sereza

    Joana Monteleone

    Maria Luiza Ferreira de Oliveira

    Ruy Braga

    Alameda Casa Editorial

    Rua Treze de Maio, 353 – Bela Vista

    CEP: 01327-000 – São Paulo – SP

    Tel.: (11) 3012-2403

    www.alamedaeditorial.com.br

    Sumário

    Prefácio

    Parte 1. Machado de Assis, Sílvio Romero e Euclides da Cunha: nas letras, os Brasis

    Machado de Assis e Sílvio Romero: tensões de um Brasil em tempos de racismo científico e abolicionismo

    Tensões do nacionalismo (I): Sílvio Romero e a invenção do futuro: o alemão do Sul como Outro

    Tensões do nacionalismo (II): Euclides da Cunha entre aciência europeia e a experiência brasileira: o sertanejo como Outro

    Parte 2. A invenção (da memória) de São Paulo: os múltiplos discursos bandeirantes

    As lutas pela memória de São Paulo (1890-1940)

    A luta pela memória da capitania de São Paulo vem de antes: Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques no século XVIII

    Parte 3. Gilberto Freyre e Charles Boxer: O Brasil a partir de uma perspectiva luso-afro-atlântica (décadas de 1930 a 1960): um debate sobre a questão racial

    Em torno da questão racial: o debate entre Charles Boxer e Gilberto Freyre (1950-1960)

    Gilberto Freyre e a tradição ibérica: mestiçagem, Brasil-centrismo e luso-tropicalismo

    O Império Português visto de fora: o itinerário historiográfico de Charles Boxer (1930-1960)

    Gilberto Freyre e os intelectuais alinhados a Salazar respondem ao livro de Charles Boxer: o que mudou?

    Referências bibliográficas

    Agradecimentos

    À memória de Antonio Candido, que partiu em 2017, quando este livro estava em obras. Símbolo de elegância, cultura e engajamento no país e na vida. Um dia o Brasil há de merecê-lo.

    Prefácio

    I

    Por que escrever esse livro?

    Não se trata de uma pergunta trivial. O fato é que, nos últimos tempos, tenho publicado com certa regularidade em revistas acadêmicas, avaliadas pelos pares. Do ponto de vista da pós-graduação, os artigos atingem o público acadêmico, de pesquisadores, professores e estudantes. Se, por um lado, os artigos publicados nessas revistas cumprem a sua função, considero um rebaixamento da vida intelectual reduzir o esforço de pesquisa e reflexão a indexadores quantitativos como plataformas Lattes, Sucupira, etc. Reconheço a importância e a legitimidade desses instrumentos, mas não deixo de apontar os limites desse processo. Penso também que os saberes precisam circular para além dos muros. Um certo descompromisso da universidade com o grande público é um problema que a comunidade de pesquisadores precisa enfrentar. Bem ou mal, a universidade brasileira tem sido capaz de produzir pesquisa e ensino, mas tem dificuldade na extensão. Abrir-se para o diálogo com públicos mais amplos é necessário, fugindo das zonas de conforto, dos jargões especializados e do intelectualismo. Este livro pretende aceitar o desafio de escrever com clareza, sem hermetismos desnecessários.

    Publicar pesquisas em forma de livro tem inconvenientes, é certo. O principal deles é o próprio suporte físico, o custo e a acessibilidade. Mas também tem vantagens. Os artigos acadêmicos, justamente por serem submetidos à avaliação dos pares, reduzem a dimensão autoral das publicações, em benefício de discursos e formas convencionais em vigor. Há ainda outras limitações, como o tamanho dos textos; as normas das revistas, muitas vezes hostis a leitores e autores; a linguagem academicista, às vezes apenas para afetar distinção; o capricho ou desleixo dos pareceristas; os enquadramentos teóricos, não raros estreitos e paroquiais. Na forma de livro – quando os editores dão abertura, e este foi o caso – o autor dispõe de mais liberdade para pensar e narrar.

    Vazar o pensamento na forma de livro, esse objeto táctil que desperta paixões, pulsões e filias (e fobias, vide o anti-intelectualismo dos movimentos afascistados contemporâneos) é uma forma de expressão longamente consagrada na cultura, além de constituir-se num desejo comunicacional clássico. E os desejos são sempre fugidios, incompletos e atormentados. Menos do que escrever, tormentoso tem sido concluir o livro, pela vontade permanente de cortar, de agregar, de reescrever, como Sísifo, condenado pelos deuses a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso, obrigado a começar de novo e de novo. Ou ainda acometido pela síndrome de Estocolmo, apaixonado pela prisão de nunca terminar.

    A paixão pelo livro – inclusive pela sua forma física, o papel, o cheiro, a vontade de violar a página em branco, com lápis, na vã esperança de captar a alma do texto – também é minha. E, como todas as paixões, é pessoal e gratuita. Gosto de ter livros, mais do que eu posso ler. Gosto de rabiscar livros, com certo sadismo, sedento pela vontade de corromper a limpeza da brochura. Gosto de alimentar a fantasia que, se tudo der errado, sempre terei eles, os livros, para me resgatar da solidão. Em outras palavras, escrever este livro vem menos do âmago do pesquisador em história intelectual, em que os livros e os textos são as próprias fontes de pesquisa, e mais da vontade de expressar de modo mais autoral e mais pessoal. Quis, com essas páginas, retomar os textos que venho publicando nos últimos tempos; agregar pesquisa e dar tratamento mais livre, emendá-los e subtrai-los, agregá-los de novas leituras e percepções em benefício de um texto mais fiel a mim mesmo, sem deixar de ser rigoroso e acadêmico, pois a universidade é o lugar de onde falo, mas não é o único. Essas páginas, quero crer, revelam filias e fobias, adesões e resistências, compromissos e liberdades.

    O modo como construí minha carreira e formei meu repertório de interesses me cobrou um preço alto. Os historiadores, meus colegas de geração, filhos da cultura universitária contemporânea, tendem a ser sólidos especialistas, seja em um recorte temporal específico, em um enquadramento teórico determinado ou na filiação a uma linha teórica, etc. A densa especialização, com focos restritos, tem vantagens e desvantagens. Por um lado, concentra energias e saberes, verticalizando a pesquisa, fazendo-a avançar. Por outro, reduz a perspectiva e absolutiza determinada percepção como aquele que, ao focar na árvore, perde a floresta.

    Esse é um livro sobre livros, seus autores e leitores, seus tempos e suas circunstâncias, atento às historicidades e às durações. Composto por três unidades, o que há em comum é a natureza das fontes. Por isso, o método é o da história intelectual. Outro traço comum é a reflexão sobre a formação brasileira sob diferentes ângulos, problemáticas e regiões, mas sempre o país e seus traumas.

    A primeira unidade é dedicada ao Brasil de fins do século XIX e começo do XX, em torno do fenômeno literário e das noções de raça, nação e modernidade (ou seu avesso). O maior capítulo da unidade – Machado de Assis e Sílvio Romero: tensões de um Brasil em tempos de racismo científico e abolicionismo – trata das profundas diferenças entre o literato e o crítico quanto ao estilo e a linguagem, mas também os engajamentos políticos e éticos.¹ Os outros capítulos da unidade são "Tensões do nacionalismo (I): Sílvio Romero e a invenção do futuro: o ‘alemão do Sul’ como Outro e Tensões do nacionalismo (II): Euclides da Cunha entre a ciência europeia e a experiência brasileira: o sertanejo como Outro!"² Nos textos, alimentados pelo nacionalismo brasileiro da virada do século XIX para o XX, pelos olhos de Sílvio Romero e Euclides da Cunha, aparecem leituras sobre diferentes grupos sociais e culturais, habitando diversos espaços do país, como os sertanejos do interior do Nordeste e os imigrantes alemães do sul do Brasil e seus descendentes.

    Se os textos da primeira unidade refletem pesquisas que derivam de antigas preocupações, já presentes no meu doutorado, a segunda unidade é a mais recente das minhas agendas e remete à invenção da identidade paulista, entre 1890 e 1940, em que comparecem múltiplos bandeirantes criados por intelectuais ou artistas paulistas e não paulistas. Entre muitos bandeirantes estão os que povoavam a obra de historiadores como Capistrano de Abreu e Affonso de Taunay, ou pintores como Henrique Bernardelli e Benedito Calixto, ou mesmo um poeta como Olavo Bilac. A historiografia, a pintura e os monumentos não formam paisagens culturais divorciadas, mas convivem e interpenetram-se. É sobre isso que trata As lutas pela memória de São Paulo (1890-1940). O outro capítulo desta unidade – A luta pela memória da capitania de São Paulo vem de antes: frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques em fins do século XVIII – dá um salto para fins do período colonial, quando a memória da capitania de São Paulo também estava em disputa e já aparecia um esforço em positivar os antigos moradores do planalto paulista.³ Não é por outra razão que toda arquitetura historiográfica produzida por Affonso de Taunay, na segunda década do século XX, partiu destes antigos cronistas coloniais.

    A terceira e maior unidade deste livro remete ao debate envolvendo o historiador inglês Charles Boxer e o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre. Mas é mais do que isso. No primeiro capítulo – intitulado Em torno da questão racial: o debate entre Charles Boxer e Gilberto Freyre (1950-1960) – busca-se traçar um panorama da controvérsia intelectual e política em fins da década de 1950 e princípio de 1960, quando o movimento de descolonização da África e a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos marcaram uma intensa politização da categoria raça. As condições do presente, nos anos 60, marcaram uma profunda reavaliação do passado colonial português, ferindo de morte a noção de um colonialismo católico e lusitano não racista. O segundo capítulo desta unidade – Gilberto Freyre e a tradição Ibérica: mestiçagem, brasil-centrismo e luso-tropicalismo – visa compreender a força do argumento freyreano, fortemente marcado pela defesa da positividade da tradição ibérica, perspectiva que viria culminar no luso-tropicalismo, em aliança com a ditadura colonialista de António de Oliveira Salazar em Portugal.⁴ Se o segundo capítulo verticaliza na obra de Freyre, o terceiro – O Império Português visto de fora: o itinerário historiográfico de Charles Boxer (1930-1960) – trata de reconstruir o percurso que culminaria na publicação, em 1963, de Race Relations in the Portuguese Colonial Empire, 1415-1825, um livro importante para o debate intelectual brasileiro, pois nele Boxer questionou de modo erudito e documentado as teses de Gilberto Freyre, comprometendo os fundamentos históricos do mito da democracia racial.⁵ No capítulo busca-se tanto evitar a noção impressionista de um historiador que enfrenta o racismo português, quanto apresentar a historicidade do mundo e da obra de Boxer, já afetada por um contexto de politização da raça que marcou a produção intelectual e a vida política do pós-guerra. No quarto e último capítulo – Gilberto Freyre e os intelectuais alinhados a Salazar respondem ao livro de Charles Boxer: o que mudou? – busca-se captar a historicidade do processo, em que a obra de Freyre está claramente alinhada ao campo conservador, em um momento de acentuada polarização política. Em 1964, quando Freyre – e Armando Cortesão, um importante intelectual salazarista – responde ao livro de Boxer, o autor que há 30 anos escrevera Casa-grande & Senzala aderia ao golpe militar recém instalado. A politização da raça – na África, nos Estados Unidos ou no Brasil – está contida nos marcos políticos e culturais dos confrontos que marcaram aqueles anos.

    II

    Além do Brasil, das discussões identitárias e seus avessos, da noção de raça e de racismo, o que dá unidade a este livro? A resposta está no próprio título: a história intelectual como método de investigação histórica. As fontes destas pesquisas – não confundir com a bibliografia – são textos escritos e publicados por intelectuais: sobretudo escritores e historiadores que, a sua maneira, valeram-se da publicação de livros como uma forma de intervenção no mundo social, em especial na vida política e cultural.

    Uma questão se impõe desde o início: o que é um intelectual? O termo aparece na Europa Ocidental do século XIX, em particular na França. Não há uma unidade em torno dos modernos intelectuais oitocentistas. Eles podem ser conservadores, liberais, nacionalistas ou socialistas, etc. O que os une é o fato de utilizarem da escrita, do texto, enfim, do ato de fala, para se posicionarem frente à vida pública, seja mediado por linguagens específicas, como a literatura ou a ciência histórica, seja por meio de manifestações abertamente políticas. Para que os intelectuais possam se expressar é preciso um público alfabetizado, sistemas de publicação e distribuição de livros (editores, livreiros e consumidores), um grupo de pessoas dispostos a se apropriar de ideias, jornais para divulgar e animar a crítica, etc.

    Um momento de afirmação dos intelectuais se deu em torno do caso Dreyfus, quando um oficial das forças armadas francesas, Alfred Dreyfus, um judeu francês, foi injustamente acusado, em 1894, de traição à pátria por ter, supostamente, passado informações confidenciais aos alemães, gerando uma onda de antissemitismo e xenofobia. Quando a farsa que o levou a condenação ficou clara, um conjunto de jornalistas, professores, artistas e escritores publicaram em 14 de janeiro de 1898, no jornal L’Aurore, liderados por Émile Zola, o Manifesto dos Intelectuais. A publicação mobilizou a opinião pública francesa, dividida entre conservadores, contra Dreyfus, e progressistas, favoráveis a ele.⁶ A partir do caso consolidou-se o papel do moderno intelectual, bem como sua imagem pública: o termo intelectual passou a significar não apenas um profissional que vivia de ler, escrever e pesquisar, mas também um sujeito supostamente livre, que se posicionava politicamente frente às grandes questões de seu tempo⁷. Os intelectuais, nota Norberto Bobbio, passaram a ser identificados como uma espécie de porta-vozes da opinião pública, fossem eles progressistas ou conservadores, radicais ou reacionários, libertários ou autoritários, liberais ou socialistas, céticos ou dogmáticos, laicos ou clericais (...).⁸

    Pierre Bourdieu, ao abordar os intelectuais, sugere a existência de um microcosmo, regido por uma lógica específica, com regras próprias. Até certo ponto, a perspectiva de relativa autonomia do campo intelectual ajuda a compreender o funcionamento e a simbologia das disputas e alianças. No entanto, observa Claudia Wasserman, essa perspectiva também remete, de um lado, à noção de um mundo com regras próprias, sem relação necessária com outros âmbitos da vida humana. De outra parte, recupera-se a noção do intelectual em sua ‘torre de marfim’, como um sujeito isolado que contempla o mundo exterior, adotando uma atitude de indiferença e de distanciamento, com rejeição ao compromisso social.⁹ Em concordância com a autora, é válido insistir que os intelectuais estão conectados com as questões amplas da vida social.

    Nas três unidades deste livro são documentadas a intervenção dos intelectuais no mundo social e político por meio do texto. Apenas à guisa de exemplo: na segunda unidade, ao mapearmos o debate entre Sílvio Romero e Machado de Assis em torno do racismo científico e do abolicionismo, é justamente este o assunto: o engajamento dos intelectuais na vida do país e a multiplicidade de posições, leituras e linguagens.

    Ao fazer história usando como fonte a produção dos intelectuais, uma questão se impõe: quem escreve, lê. Assim como o enraizamento temporal, as opções políticas, os interesses, os pertencimentos institucionais e uma série de outras questões também repercutem no texto, inclusive a recepção que uns intelectuais fazem dos outros. Em termos metodológicos, esse trabalho recusa a noção de influência. É preciso reconhecer que a relação entre um autor e outro é sempre definida não pelo influenciador, mas sim pelo influenciado. Logo, o polo ativo está no influenciado, pois é ele quem define as condições de uso do influenciador. Nesse aspecto as contribuições da chamada Escola de Cambridge, em particular Quentin Skinner¹⁰ e John Pocock, são importantes.

    Desse modo, é fundamental para o historiador se atentar às inovações que um autor faz ao utilizar outro. Logo, há muito mais uma concepção ativa de quem se apropria, em função do contexto e da historicidade do processo. Para Pocock: todo e qualquer ato de fala que o texto tenha efetuado pode ser reefetuado pelo leitor de maneiras não idênticas às que o autor pretendeu.¹¹ Em outras palavras, as ideias e perspectivas interpretativas são mais dinâmicas, pois portadas de um complexo sistema de interpretação, apropriação e recepção. Apenas como exemplo, na terceira unidade deste livro, ao se afirmar a herança dos autores iberistas como Miguel de Unamuno e Ángel Ganivet na obra de Gilberto Freyre, o polo ativo é Freyre, que se apropria daqueles autores, em função de suas próprias perspectivas interpretativas.

    Roger Chartier também destaca a historicidade não só da escrita, mas também da leitura. As considerações do historiador francês, em torno da análise da história da leitura e das múltiplas maneiras de apreender um texto, se constituem em úteis instrumentos acerca da compreensão e da difusão dos textos. Chartier insiste que a historicidade e o sentido da apreensão de um texto não ocorre da mesma maneira entre diferentes leitores – e diferentes leitores em diferentes lugares e tempos. Logo, a historicidade não está apenas na escrita, mas também na leitura. O autor destaca que um livro se transforma justamente pelo fato de não mudar, uma vez que o mundo e os tempos mudam, transformando os significados dos textos.¹² Essa observação é particularmente importante na terceira unidade deste livro ao tratarmos da obra de Gilberto Freyre. O significado e as implicações do suporte interpretativo de Casa-grande e senzala, nos anos de 1960 eram inteiramente diversos dos anos de 1930.

    Em termos metodológicos, ao estudarmos os intelectuais, é importante observarmos o que Jean-François Sirinelli chamou de estruturas de sociabilidade, ou seja, os ambientes nos quais circulam os intelectuais, como os departamentos universitários, as revistas, os centros de estudos e pesquisas, os jornais, as associações científicas, as conferências, etc. Os lugares de formação e difusão de ideias, ou mesmo a formação de uma rede de alianças e confrontos, é importante para compreender a maneira como os intelectuais organizam uma estrutura de sociabilidade, com suas hierarquias e disputas.¹³

    O historiador Charles Boxer, quando atacou as concepções salazaristas em torno do suposto não racismo do colonialismo português no começo dos anos de 1960, como será explorado na já referida terceira unidade, o fez a partir de uma universidade norte-americana, ambiente em que se vivia uma intensa politização da raça. Questionado, Boxer usou a Revista de História da Universidade de São Paulo (USP), que vivia uma ambientação intelectual e política anti Gilberto Freyre (um autor que, naquele momento, como se verá, havia construído uma ponte com o salazarismo). Boxer tinha, na USP, amigos muito próximos, como Sérgio Buarque de Holanda.

    A atenção às estruturas de sociabilidade, permeadas por suas redes, atravessadas por interesses, amizades e afinidades (inclusive políticas e teóricas, mas não apenas) geram vínculos e oportunidades que unem (ou separam) os intelectuais em torno de determinadas causas. Quando se aborda uma rede de intelectuais é preciso observar que seus integrantes não se resumem aos grandes autores, mas também é formada por nomes periféricos, mas importantes na consolidação das hierarquias e dos grupos. No cume destas, estão os nomes reputados como autoridades culturais, portadores de uma dimensão pública e moral. Já na base estão as figuras menores ou ainda os jovens aspirantes, em luta pelo reconhecimento dos pares, embora suas atuações sejam importantes para reafirmar ou desbancar hierarquias estabelecidas.¹⁴

    Ainda outros aspectos são importantes, como a noção de geração, marcada menos pela coincidência de idade e mais pela acumulação de vivências e experiências históricas compartilhadas em determinado espaço físico, institucional e temporal comuns, não raro animado por determinados engajamentos políticos, estéticos e teóricos. A dimensão política é muito sensível ao mundo dos intelectuais. Nos momentos de crise política ou econômica, guerra ou agitações populares, aumenta a repercussão e a audiência de suas falas. É preciso lembrar que a comunidade dos intelectuais é plural e polissêmica, logo, nas grandes questões públicas de uma época, existem nomes nas mais variadas posições.¹⁵

    Com a consolidação da modernidade oitocentista, sobretudo a partir da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, desde finais do século XVIII, é possível identificar uma aceleração da história, envolvendo um crescente número de pessoas, via ampliação da cidadania, da alfabetização e da valorização da ciência e dos saberes laicos. Esse processo tornou a intervenção pública dos intelectuais no mundo ocidental – por meio de diversos suportes impressos, como jornais, revistas e livros – profundamente associada às noções de projeção de futuro e progresso. A consciência de que o mundo pode ser transformado numa direção ou noutra deu aos chamados homens de cultura projeção até então inédita, tornando o engajamento político dos intelectuais particularmente importante, de modo que a história dos intelectuais é uma abordagem relevante na construção de um olhar para sociedades contemporâneas.

    III

    Em termos teóricos, uma referência importante para este trabalho é Michel de Certeau, pois ele ajuda a compreender a história como um gênero escrito que busca dar conta da ruptura entre o passado e o presente. O passado é o Outro do presente. A historiografia (sempre marcada pelo presente) também tem seu Outro: o real, apenas acessível por meio da linguagem. Logo, a existência do Outro é indissociável da operação historiográfica, pois ela é marcada por um corte entre um passado, que é seu objeto, e um presente, que é o lugar de sua prática.¹⁶ O historiador, ao pesquisar e narrar o passado, está carregado pelas implicações do presente no qual vive. Na segunda unidade deste livro, ao pesquisarmos as construções imagéticas de múltiplos bandeirantes, está contido de algum modo o passado colonial, no qual os sertanistas viveram, mas também, e sobretudo, o tempo de Benedito Calixto ou de Affonso de Taunay, ou seja, a primeira metade do século XX. Na historiografia, o passado é representado como uma "diferença", que é o Outro reconstruído, no presente, por meio de um inventário dos restos.

    Do ponto de vista da história intelectual, aparentada da história da historiografia, a obra de Michel de Certeau serve para refletir sobre a relação entre a linguagem e o que poderíamos chamar de realidade. Por um lado, a Escola de Cambridge, partidária do chamado contextualismo linguístico, ajuda na apreensão da visceral historicidade de todas as coisas, inclusive dos textos, ao propor recortes precisos a fim de reconstituir a multiplicidade do vocabulário político e cultural de uma época, precavendo-se dos riscos do anacronismo. Por outro lado, as abordagens que tratam o texto como autônomo do mundo concreto nos parecem perigosos e equivocados.

    Se é verdade que as ideias não são expressões naturais e automáticas da realidade material, não nos parece menos verdade que a dimensão concreta do mundo, dos interesses, de classe, raça, gênero, região, religião afetam a leitura do real. Recusar as perspectivas mais dogmáticas do narrativismo, associadas ao linguistic turn,¹⁷ não nos impede de compreender que não há como apreender o mundo senão por meio de narrativas. Um autor, seja ele qual for, está inserido numa perspectiva discursiva, vivendo em um mundo historicamente condicionado, expressando-se por meio das linguagens historicamente formadas. Mas nem tudo se reduz à linguagem e ao texto. Para Antonio Candido, o texto de um literato (ou de um historiador), apesar de possuir protocolos próprios, é simultaneamente reflexo e reflexão sobre o real. O texto é ao mesmo tempo um testemunho e uma linguagem da vida social.¹⁸ Como Candido, a compreensão de nossas fontes passa por articular as questões internas (textos) e externas (o mundo e suas circunstâncias).

    Não resta dúvida que o pensamento histórico, em particular a história dos intelectuais, foi enriquecido pela incorporação de procedimentos da teoria literária, tais como estilo, metáfora e forma, entendidos como instâncias cognitivas e não apenas estéticas. Da maneira como entendemos, Paul Ricoeur foi quem melhor respondeu à problemática em torno das relações acerca do real e da narrativa. Para ele, observa Jaques Revel, a narrativa permanece a forma irredutível da experiência humana do tempo, pois o tempo se torna tempo humano na medida em que está articulado de forma narrativa.¹⁹

    Para Ricoeur, um procedimento hermenêutico é um expediente central na formulação (e na compreensão) do texto do historiador, do sociólogo ou do literato, sem o qual não se pode atingir o conhecimento do Outro.²⁰ Para o filósofo, é possível conhecer o Outro, embora ele reconheça a sua dificuldade. Ricoeur recusa o cogito cartesiano, exaltado e autoconfiante, assim como recusa o cogito humilhado de Nietzsche, marcado pela impossibilidade de compreender o Outro.²¹ Logo, o conhecimento histórico é portador de uma singularidade irredutível, capaz de articular a objetividade e a subjetividade, ou para dizer nos termos de Ricoeur, a história contém a compreensão (como nas artes e na literatura) e a explicação (como nos saberes empíricos).²²

    A questão teórica que o autor apresenta aos historiadores não é a da impossibilidade do sujeito cognoscente (o pesquisador) decifrar o objeto cognoscível (as fontes), mas, sim, a dificuldade/necessidade que o historiador encontra em traduzir o mundo do Outro nos seus próprios termos. Trata-se, portanto, de um complexo diálogo narrativo e hermenêutico. Em Tempo e Narrativa, Ricoeur afirma que o tempo vivido deve ser narrado, estabelecendo-se uma relação entre a experiência e a consciência.²³ O historiador, portanto, assume uma intenção de verdade, consciente que o produto de sua obra, o texto, é sempre uma trama narrativa vazada a partir dos recursos disponíveis na língua e na linguagem. A intriga conduzida pelo historiador (o texto) jamais é uma espécie de verdade revelada, mas uma mimese (uma imitação, sempre humana e falível) da experiência vivida pelo Outro.²⁴

    Paul Ricoeur foi um leitor atento de Hayden White e de outros historiadores e pensadores identificados com a chamada linguistic turn, mas Ricoeur não se limita ao mundo do texto, como se o real fosse por definição inatingível. Ao contrário, ele considera o esforço empírico do historiador fundamental, ainda que insuficiente, aceitando a intenção de objetividade, por parte do pesquisador, como um elo necessário da operação historiográfica. François Dosse enfatiza que Paul Ricoeur recusa a enxergar a história e a ficção como indistintas, à maneira dos narrativistas, como Hayden White:

    Malgrado com sua proximidade [com os narrativistas] subsiste um corte epistemológico baseado no regime de verdade próprio ao contrato do historiador com o passado. Essa evocação do contrato de verdade que liga o historiador ao seu objeto desde Tucídides é de primeira importância para que sejam combatidas todas as formas de falsificação e de manipulação do passado.²⁵

    Michel de Certeau define a escrita da história como um (...) equivalente escriturário da sepultura.²⁶ Logo, a história pode ser entendida como a prática do luto pela perda do passado, cuja narrativa não representa uma nostalgia pelo passado extinto, mas uma ação sobre o presente. Nesse sentido, a operação historiográfica é uma ação que procura reconhecer a existência do Outro. A narrativa da história, construída mediante criteriosa operação historiográfica, não tem o poder de ressuscitar os mortos, mas reconhecer sua complexa existência como partes de nós mesmos.²⁷

    IV

    O que chamamos de história intelectual, ou história dos intelectuais, pode proporcionar fecundas reflexões sobre a formação das sociedades contemporâneas. Nem melhor nem pior que outros campos de investigação histórica, a história intelectual é uma via de acesso às sociedades modernas, nesse caso à brasileira, objeto de interesse deste livro.

    Um objeto de reflexão atravessa todo o livro: as noções de raça e a existência do racismo. Do período colonial até os nossos dias formaram-se naquilo que podemos chamar de Brasil muitas camadas de história, com diferentes durações. A multiplicidade étnica, suas hierarquias e violências sempre acompanharam a formação do país, e suas estruturas de poder ainda estão vivas e atuantes, como um passado que não terminou de passar, tal como já disse Walter Benjamin.²⁸

    Este livro é uma acumulação de 20 anos de trabalho, que me acompanha desde o início do mestrado, na PUC/SP, em 1997, passando pelo doutorado na Unicamp, concluído em 2005, até os pós-doutorados no King’s College London (2008) e no departamento de História da USP (2011-2012). O esforço em condensar e organizar o que fiz de melhor, por modesto que seja, é necessidade pessoal para me libertar de velhos fantasmas. Emancipados deles, estou pronto para novas fobias e filias.

    São Paulo, 5 de março de 2019


    1 Machado de Assis e Sílvio Romero já compareceram no meu doutorado, defendido em 2005, na Unicamp, publicado naquele ano. (SCHNEIDER, Alberto Luiz. Sílvio Romero, hermeneuta do Brasil. 1. ed. São Paulo: Annablume, 2005. v. 1. 259p). Continuei amadurecendo as reflexões, difíceis e complexas, em torno de Machado de Assis e Sílvio Romero, sobretudo Machado. O conteúdo do capítulo em questão foi parcialmente publicado nos artigos abaixo citados: SCHNEIDER, Alberto Luiz. Sílvio Romero e Machado de Assis: leituras e dissensos do fim do Oitocentos. Intelligere, v. 2, p. 49-67, 2016. SCHNEIDER, Alberto Luiz. Machado de Assis e Sílvio Romero: escravismo, ‘raça’ e cientificismo em tempos de campanha abolicionista (década de 1880). Almanack [online], 2018, n. 18, p. 451-488.

    2 As pesquisas que geram este capítulo já aparecem: SCHNEIDER, Alberto Luiz. "Pensamento Social n’Os Sertões de Euclides da Cunha: entre a ciência europeia e a experiência sertaneja". Cadernos de História da Ciência, v. 1, 2014.

    3 As pesquisas que geram este capítulo já foram esboçadas em: SCHNEIDER, Alberto Luiz. Os paulistas e os outros: fama e infâmia na representação dos moradores da capitania de São Paulo nas letras dos séculos XVII e XVIII. Projeto História. Revista do Programa De Estudos Pós-Graduados de História, v. 57, p. 84-107, 2016.

    4 Embora a discussão tenha ganhado qualidade, densidade e volume, já esbocei a questão, ainda que em termos bastante sumários, em SCHNEIDER, Alberto Luiz. Iberismo e luso-tropicalismo na obra de Gilberto Freyre. História da Historiografia, p. 75-93, 2012.

    5 Ainda que a discussão seja aqui mais complexa e elaborada, o assunto está esboçado em SCHNEIDER, Alberto Luiz. Charles Boxer (contra Gilberto Freyre): raça e racismo no Império Português ou a erudição histórica contra o regime salazarista. Estudos Históricos. Fundação Getúlio Vargas, v. 26, p. 253-273, 2013.

    6 Sobre o assunto, ver: BEGLEY, Louis. O Caso Dreyfus: Ilha do Diabo, Guantánamo e o pesadelo da história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Sobre as questões históricas envolvidas, destaco o segundo capítulo: O passado nunca está morto, p. 57-89.

    7 Sobre o assunto, ver: MARLETTI, Carlo. Intelectuais. In BOBBIO, Norberto & Outros. Dicionário de Política. Volume 1. Brasília: Universidade de Brasília, 1998.

    8 BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora da UNESP, 1997, p. 116.

    9 WASSERMAN, Claudia. História intelectual: origem e abordagens. Tempos Históricos, Vol. 19, 1º semestre de 2015, p. 69.

    10 SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas. History and Theory, 8, 1969.

    11 POCOCK, John G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003, p. 45.

    12 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 131.

    13 Sobre o assunto, ver: SIRINELLI, Jean-François. Os Intelectuais. In RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Editora FGV, 2003.

    14 WASSERMAN, Claudia, Op. Cit., 2015, p. 72.

    15 BOBBIO, Norberto, Op. Cit., 1997. p. 92.

    16 CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2002, p. 58

    17 A chamada virada linguística nasceu no pós–guerra, fundamentada nas reflexões de filósofos da linguagem, como Ludwig Wittgenstein e Bertrand Russel, mas também pela ontologia hermenêutica de Georg Gadamer e Martin Heidegger. Essas concepções questionaram as bases epistemológicas tradicionais da história, assentadas no paradigma empirista e pelo conceito de verdade, herdado da tradição platônica. No campo da história, Hayden White, em Meta-História (1973), é quem leva mais longe a concepção narrativista. Ver: ANKERSMIT, Frank. A escrita da história: a natureza da representação histórica. Londrina: Eduel, 2012; VASCONCELOS, José Antonio. Quem tem medo da Teoria? A ameaça do pós-modernismo na historiografia americana. São Paulo: Annablume, 2005.

    18 CANDIDO, Antonio. Primeira parte. In: Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre o Azul, 2011, p. 13-81.

    19 REVEL, Jacques. História e historiografia: exercícios críticos. Curitiba: Editora da UFPR, 2010, p. 225.

    20 RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. [1ª Ed. original: 1990].

    21 Para Ricoeur é possível conhecer o Outro, embora reconheça a dificuldade ao formular a percepção do cogito ferido. Sobre o assunto, ver: GAGNEBIN, Jeanne Marie. "Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur". Estudos Avançados. Vol.11, No.30. Mai/Ago. 1997.

    22 A oposição entre compreensão e explicação é antiga. Dilthey, em fins do século XIX, afirma que as Ciências Exatas explicam, objetivamente, por meio de comprovação verificável. Já as Ciências do Espírito (Humanas), compreendem, por meio de argumentação atravessada por uma dimensão interior, que o sujeito que pesquisa interpreta o objeto pesquisado.

    23 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Papirus, 1994. Volume 1.

    24 Para um interessante balanço sobre a questão, ver: REIS, José Carlos. "Tempo, História e compreensão narrativa em Paul Ricoeur. Locus: Revista de História, v. 12, 2006.

    25 DOSSE, François. Paul Ricoeur: um filósofo em seu tempo. Rio de Janeiro: FVG Editora, 2017. [1ª ed. 2012].

    26 CERTEAU, Michel de, Op. Cit., 2002, p. 165

    27 Sobre o conceito de Alteridade e as contribuições de Michel de Certeau e Paul Ricouer, ver: SCHNEIDER, Alberto Luiz; TORRÃO FILHO, Amílcar. "Alteridade e História: escritura e narrativa como uma ética do Outro. FRONTEIRAZ, p. 22-37, 2018.

    28 WALTER, Benjamin. Sobre o conceito de História. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 222-232.

    Parte 1

    Machado de Assis, Sílvio Romero e Euclides da Cunha: nas letras, os Brasis

    Machado de Assis e Sílvio Romero: tensões de um Brasil em tempos de racismo científico e abolicionismo

    A experiência do tempo é marcada por uma historicidade particular – caracterizada por determinada maneira de ler o passado, experimentar o presente e vivenciar as expectativas de futuro.¹ É possível captar e reconhecer traços dessa historicidade nos debates intelectuais de uma época e nos dissensos que os autores produzem. O que se quer, neste texto, é vislumbrar aspectos do debate intelectual e político do Brasil de fins do Oitocentos, por meio das profundas divergências havidas entre Sílvio Romero² – autor da História da literatura brasileira³ (1888) e o Machado de Assis⁴ da segunda fase – autor de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), O Alienista (1882), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899), entre outras obras.⁵

    Os textos de Romero e Machado serão abordados não apenas como meros reflexos de um tempo – e de um lugar –, ou como simples documento de uma época, mas também como reflexão sobre o Brasil de fins do século XIX. Reflexo e reflexão em permanente tensão. O ponto de partida está no livro que Sílvio Romero dedicou a Machado de Assis em 1897, o que implica em um duplo esforço: compreender o sentido mais geral da obra de Machado das décadas de 1880 e 1890 e a consequente crítica romeriana. O conjunto dos textos permite vislumbrar a heterogeneidade, as fissuras e os dissensos na vida intelectual do que Antonio Candido chamou de geração modernista de 1870,⁶ um tempo de grandes transformações não apenas intelectuais e mentais, mas também políticas e sociais, como o esgotamento da escravidão e do Império (1822-1889), bem como a chegada maciça de imigrantes ao Brasil.

    A partir da década de 1870 outro país começou a despontar. O fim do tráfico negreiro (1850) e o lento declínio do consenso escravocrata, bem como a traumática experiência da Guerra do Paraguai afetaram a estabilidade imperial. Nas letras, a geração de 1870 – na sua diversidade e multiplicidade –, assumiu discursos modernizadores.⁷ Na definição do próprio Sílvio Romero, um bando de ideias novas povoou as cabeças intelectualizadas que então despontavam. Vivia-se um fascínio pelas últimas conquistas da civilização moderna, em que as ideias e as sensibilidades identificadas com a Segunda Revolução Industrial – em particular, a Ciência – emergiram como um instrumento explicativo da vida.⁸

    Era um tempo de intensa crítica ao Romantismo. Tobias Barreto (1839-1889) e Sílvio Romero – egressos da Escola do Recife – assumiram uma eloquente defesa da Ciência, de onde deveriam partir as novas explicações da vida brasileira. Ferozes críticos do Indianismo, esses intelectuais avaliaram o que lhes pareciam ser as estruturas arcaicas do país. O engajamento em novos paradigmas mentais deveria servir como arma crítica a fim de subsidiar as necessárias intervenções políticas e sociais, no intuito de superar a escravidão e o Império, bem como o indianismo romântico e o catolicismo, identificados como causa do atraso, palavra que entrou no vocabulário político dos modernizadores. Por ocasião da recepção de Euclides da Cunha (1866-1909) à Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1906, Sílvio Romero rememorou a novidade representada pelo bando de ideias novas, compreendido como uma aposta no futuro, o que exigia um rompimento com o velho e o atrasado: a Monarquia, a escravidão e, no plano das letras, o Romantismo indianista.

    Até 1868 o catolicismo reinante não tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a filosofia espiritualista, católica, eclética a mais insignificante oposição; a autoridade das instituições monárquicas o menor ataque sério por qualquer classe do povo; a instituição servil e os direitos tradicionais do aristocratismo prático dos grandes proprietários a mais indireta opugnação; o romantismo, com seus doces, enganosos e encantadores cismares, a mais apagada desavença. [...]

    Um bando de ideias novas esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte. [...] Positivismo, evolucionismo, cientificismo na poesia e no romance, folk-lore, novos processos de crítica e história literária, transformação da instituição do direito e da política, tudo então se agitou e o brado de alarma partiu da escola do Recife.

    Não se trata aqui de aprofundar os meandros da geração de 1870, mas de reconhecer a desagregação das estruturas políticas e mentais herdadas do Império, num momento de laicização, modernização e urbanização da vida brasileira em que as noções de centro e periferia, ou de atraso e modernidade, entraram na agenda nacional. A crise culminou no fim da escravidão e da Monarquia. Os novos repertórios – republicanos, abolicionistas, imigrantistas, realistas e naturalistas, nacionalistas e cientificistas – geraram a necessidade de expurgar, seletivamente, determinadas ideias europeias, como a Monarquia e o Romantismo, em troca de outras, não menos

    Enjoying the preview?
    Page 1 of 1