Linguagem, surdez e educação
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Linguagem, surdez e educação - Maria Cecília Rafael de Góes
1995
Capítulo um
O SURDO NA ESCOLA:
A ESCRITA, A FALA E OS SINAIS
Estudos sugerem que pessoas surdas, mesmo depois de terem passado por longo período de escolarização, apresentam dificuldades no uso da linguagem escrita. Na verdade, as limitações nessa esfera não são exclusivas das experiências escolares de surdos, nem inerentes à condição de surdez: um dos principais problemas está nas mediações sociais dessa aprendizagem, mais especificamente, nas práticas pedagógicas que fracassam também na alfabetização de ouvintes. Entretanto, ocorre que a essa questão mais geral sobrepõe-se, muitas vezes, o fato de o aluno surdo enfrentar complexas demandas adicionais, por apresentar uso restrito da língua implicada nas atividades de leitura e escritura.
Várias contruções atípicas são constatadas em estudos sobre a produção escrita de surdos. Gesueli (l988), ao relatar uma experiência de alfabetização inicial, destaca algumas características dos textos elaborados por crianças surdas: entre outras peculiaridades, suas construções apresentam uma sequência de palavras que tende a desrespeitar a ordem convencional da língua portuguesa, e os enunciados são compostos com predomínio de nomes que, por vezes, substituem verbos.
Também no exame da produção escrita em etapas posteriores, autores sugerem que o desempenho de alunos surdos mostra-se inferior ao de ouvintes, em relação a indicadores de caráter sintático e semântico ou de amplitude lexical, revelando uma tendência a restringir o texto à informação simplificada (por exemplo, Yoshinaga-Itano e Snyder, l985). Focalizando a escrita de adultos que apresentam surdez congênita, Fernandes (l989) realizou uma avaliação por meio de um conjunto de provas, que abrangia solicitações para completar frases, inserir preposições em frases, redigir bilhetes, reproduzir textos lidos e responder a pequenos questionários. Os resultados mostram boa incorporação da ortografia, decorrente do refinamento da capacidade visual no surdo, exceto nas questões de acentuação (por esta depender, em grande parte, do domínio da tonicidade de palavras faladas). Porém, o desempenho nas provas revela diversas dificuldades, tais como limitação do léxico; impropriedade no uso de preposições e na inserção de advérbios; uso inadequado de verbos; domínio pobre das estruturas de coordenação e subordinação; e limitação de recursos para atender a modalidades de registro do discurso.
Outra pesquisa que traz indicações nessa área é a de Rampelotto (1993), que abordou a dimensão proposicional na elaboração de paráfrases escritas de narrativas, elaboradas por adolescentes surdos. Entre os aspectos examinados, ficou evidenciada uma baixa capacidade para recuperar proposições na atividade de recontar, diante de histórias simples e complexas. Adicionalmente, os modos de construção do texto escrito sugerem que os sujeitos não demonstravam haver internalizado plenamente a própria estrutura narrativa.
Problemas são registrados também em relação à leitura e compreensão de textos. Por exemplo, Souza e Mendes (1987) analisaram os níveis de leitura e de produção escrita alcançados por um grupo de alunos surdos, com idade entre 13 e 20 anos, de diferentes instituições educacionais. Constataram que apenas uma pequena porcentagem do grupo conseguia ler livros infantis ou juvenis; mais da metade interpretava somente textos curtos (parágrafo de cinco ou seis linhas, com frases coordenadas simples); e outros apresentavam possibilidades ainda mais limitadas de interpretação.
Esse conjunto de constatações remete, entre outros problemas, à qualidade das experiências escolares oferecidas ao surdo. Análises de práticas correntes no trabalho pedagógico dessa área indicam que a história escolar do aluno tende a ser constituída por experiências bastante restritas, que configuram condições de produção de conhecimento pouco propícias ao domínio da língua portuguesa. Em geral, as aprendizagens são pobres e envolvem escasso uso efetivo da linguagem escrita, sobretudo nas séries iniciais. Mesmo posteriormente, as atividades de escritura e leitura são limitadas a textos simples
e curtos. Fernandez (1993) apresenta uma análise crítica de tais características das propostas educacionais para o surdo, lembrando que o trabalho pedagógico é pautado por investimentos numa ‘linguagem filtrada’ e por uma ênfase em regras gramaticais, que afinal não são dominadas. Apontamentos críticos semelhantes são apresentados por Gesuelli (1988), Morato e Coudry (1989) e Trenche (1995).
O interesse por tais questões levou-me a realizar um estudo sobre a linguagem escrita de surdos, com o propósito de efetuar uma caracterização de seus textos e uma análise de suas construções atípicas. Nesse estudo e nos que dele se desdobraram, as análises tiveram como referência principal as teses da abordagem histórico-cultural em psicologia, mais especificamente, aquelas formuladas por Vygotsky (1978, 1987, 1993). Dessa perspectiva, procurei explorar condições sociais de constituição dos processos abordados, o que exigiu a expansão da pesquisa para outros temas, relacionados às experiências de linguagem do surdo, focalizando os pontos de vista do aluno e do professor.
Considerando a necessidade de contribuir para a compreensão da história do fracasso escolar, tão comum em casos de surdez, orientei a investigação para o âmbito do ensino supletivo, em que geralmente os grupos de alunos já passaram por longa experiência em salas de aula. Além disso, optei por focalizar contextos em que o trabalho pedagógico tenta superar visões tradicionais de ensino, baseadas no uso exclusivo da língua falada nas interações professor-aluno. Assim, na realização do estudo, foram envolvidas classes em que os professores procuravam seguir as diretrizes da comunicação total.
A corrente de comunicação total propõe o uso de múltiplos meios comunicativos, por meio de recursos linguísticos e não linguísticos, combinando sinais, oralização, leitura orofacial, gestos, linguagem escrita, datilologia (soletração manual), pantomima, desenho etc (EVANS, 1982; CICCONE, 1990; MOURA, 1993). É recomendado que esses recursos sejam ajustados às necessidades e possibilidades do aluno. Também se insere, nessas propostas, uma intenção de valorizar as línguas de sinais utilizadas pelas comunidades de pessoas surdas. Frequentemente, na implementação das diretrizes da comunicação total, o trabalho pedagógico envolve interlocuções em sala de aula centradas em práticas bimodais, compostas a partir de elementos das línguas falada e de sinais (em nossa realidade, da língua portuguesa e da língua brasileira de sinais (LIBRAS)). Trata-se de práticas de comunicação em que estão envolvidas duas modalidades, fala e sinais, usadas concomitantemente; também podem incluir outros recursos tais como a soletração manual¹.
O estudo que realizei da caracterização da produção escrita foi desenvolvido com alunos do ensino fundamental, que frequentavam duas classes de supletivo, sendo uma da rede pública municipal e outra da estadual². A faixa de idade estava entre 14 e 26 anos. As interações em sala de aula baseavam-se em práticas de comunicação bimodal. Ao longo de vários meses, coletei conjuntos de textos para análise e fiz observações em sala de aula, relativas às atividades focalizadas e à dinâmica do trabalho pedagógico nas diferentes áreas curriculares. Todos os textos analisados foram produzidos em atividade coletiva, e os alunos podiam recorrer à ajuda da professora, da pesquisadora ou de estagiárias que estavam eventualmente presentes.
Inicio o relato desse estudo com uma breve apresentação das características dos textos dos alunos e abordo, posteriormente, questões relativas ao trabalho pedagógico com surdos.
Problemas identificados nos textos de alunos surdos
Na análise preliminar dos textos recolhidos, diversos desvios das regras de construção do português puderam ser notados: uso inadequado ou omissão de preposições; terminação verbal não correspondente à pessoa do verbo; inconsistência de tempo e modo verbal (sobretudo alternância inadequada de presente e passado e terminação incorreta para tempo e pessoa do verbo); flexão inadequada de gênero em adjetivos e artigos; uso incorreto do pronome pessoal do caso oblíquo etc. Porém, foram relativamente pouco frequentes os erros de ortografia, confirmando pesquisas anteriores (como a de Fernandes, 1989).
Apesar de ser importante localizar esses tipos de problema nos textos, a perspectiva de análise que orientou as indagações iniciais, bem como outros desdobramentos do estudo, vinculava-se a uma concepção de escrita como trabalho que envolve ações com e sobre a linguagem, em que alguém diz algo para alguém, por meio de certas estratégias de dizer (GERALDI, 1991).
Não pretendi abranger toda a complexidade desse processo no estudo de caraterização dos textos. Entretanto, tomando a escrita como instância de dialogia, interessava-me examinar o quanto as pistas possibilitavam a construção de sentidos pelo leitor, identificando principalmente as características que colocavam obstáculos ao seu esforço de interpretação.
Do conjunto de resultados, pretendo destacar a identificação de problemas relativos a aspectos de coesão, concernentes à referencialidade ou à progressão temática, que tendem a resultar em prejuízos à coerência do texto. Os critérios de análise apoiaram-se, parcialmente, em descrições de procedimentos textuais apresentadas por Koch e Travaglia (1990) e Koch (1991). As considerações desses autores foram um ponto de partida bastante útil, mas quero ressaltar a dificuldade em considerar critérios usuais num exame das construções atípicas encontradas neste estudo, as quais apresentam muitas peculiaridades em comparação à escrita de ouvintes.
A caracterização dos textos foi pensada como ponto de partida para uma discussão sobre o modo pelo qual o surdo relaciona-se com a linguagem escrita; assim, a intenção não era efetuar uma classificação exaustiva de problemas, nem sugerir critérios de avaliação generalizáveis.
A identificação dos problemas envolvia, naturalmente, o exame do texto como um todo e da ocorrência da atividade em sala de aula. Entretanto, para permitir economia de apresentação, são expostos, de início, exemplos de enunciados isolados, com uma breve indicação de seu contexto temático. Textos integrais serão oportunamente comentados; além disso, no Anexo A, encontram-se algumas produções que contêm várias das características a serem ressaltadas. Apresento, a seguir, os problemas identificados.
O primeiro tipo de problema diz respeito a instâncias de referencialidade ambígua, que são devidas ao modo de inserção de nomes e pronomes (pessoais e possessivos) no enunciado, gerando prejuízo para a interpretação do referente. São exemplos de segmentos com referencialidade ambígua:
– O menino falou: Seu nome é Lulu da cachorra.
(Paráfrase de história sobre um menino e sua cachorra)
– Minha família está contente porque minha filha vai estudar aprendimento futuro e outro lugar é escola especial.
(Texto sobre experiência escolar na infância, em que a aluna menciona o que seus pais disseram à professora da classe especial)
– O Saci queria matar a galinha porque eu não gosto a galinha.
(Texto elaborado a partir de uma sequência de gravuras que mostram o Saci perseguindo uma galinha)
O segundo tipo de prejuízo para a interpretação dos enunciados é decorrente de uma escolha lexical indevida, que consiste na inclusão de palavras com significado não convencional ou de palavras criadas
. Por exemplo:
– O homem está sabendo ficar em dúvida.
(Paráfrase de história sobre um homem que enterra seu tesouro, e que é secretamente observado por outra pessoa)
– A minha irmã me cooperou os cadernos, livros, biblia etc.
(Texto sobre a família do aluno)
– Você deve rogir minha filhinha.
(Paráfrase de crônica, em que um