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O Controle de Constitucionalidade das Leis Municipais
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O Controle de Constitucionalidade das Leis Municipais

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A obra, partindo do Princípio da Supremacia Constitucional, aborda o controle de constitucionalidade, com ênfase na previsão trazida com a Constituição de 1988, atentando-se para as peculiaridades do controle concreto e do controle abstrato, tanto da norma federal, como da norma estadual. Após se discorrer sobre o Estado Federal brasileiro, estuda-se as formas de controle previstos pelo Constituinte Federal e Estadual para a verificação da compatibilidade da norma municipal frente a Lei Orgânica, frente a Constituição do Estado-membro e frente a Constituição Federal. Analisa-se as particularidades do controle difuso, quando envolvida lei ou ato normativo municipal e todos os processos em que a norma local pode ter sua constitucionalidade enfrentada pela via concentrada. Enfrenta-se a problemática da lacuna constitucional que deixa sem controle concentrado a lei ou ato normativo municipal quando confrontado com a Constituição da República, bem como o problema da norma de repetição obrigatória de dispositivo da Constituição Federal pela Constituição Estadual e o papel da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental para o controle abstrato da lei local.
LanguagePortuguês
Release dateMar 2, 2021
ISBN9786558779247
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    O Controle de Constitucionalidade das Leis Municipais - Célio Armando Janczeski

    Brasileiro.

    CAPÍTULO I. A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO

    1.1 CONSTITUIÇÃO – CONCEITO

    O termo Constituição, atualmente de uso corriqueiro para significar a lei fundamental e suprema do Estado, na antiguidade era desconhecido. O vocábulo constitutio, utilizado pelos romanos, designava providências legislativas, sem relação com o sentido atual. As cartas, surgidas na idade média, também se caracterizam como antecessoras do termo, destacando-se na Inglaterra a Magna Carta de 1215 e o Instrument of Government de 1654 ou a Regeringsform sueca de 1634. Mesmo durante o século XVIII, persistiu a noção de constituição como ‘compleição’, como estrutura ou regime político, até a constituição francesa que se seguiu a Déclaration des droits de setembro de 1791. E foi a aura da cultura francesa, gozando então de um prestígio internacional que se diria absoluto, que se deu à noção liberal-burguesa de Constituição, como Constituição escrita, um sentido abstrato e universal, aceito e recebido dentro da aceitação e da recepção do próprio classicismo francês como classicismo tout court.¹

    A primeira Constituição escrita no sentido contemporâneo, é a dos Estados Unidos da América, promulgada em 1787, que corporificou tendências latentes e deu vigência à ideias e conceitos que vinham sendo mantidos ou elaborados desde longa data, objetivando garantir uma estrutura estável e louvando as intenções populares, ao mesmo tempo que servisse de delimitadora do uso do poder. Aponta-se como fonte política da ideia de superioridade de hierarquia constitucional, os exemplos do contratualismo e da fundamental law advinda da Europa e a ideia de confederação oriunda da Holanda e da Suíça, que influenciaram o modelo corporativo adotado pelos norte-americanos.

    Rolando Tamayo Y Salmorán relata que a idade moderna apresenta um novo significado de Constituição em resultado de alguns acontecimentos principais: a) aparición de los conceptos de ‘comunidad’ y ‘Estado’; b) la protección judicial de los pactos y el nacimiento de los civil rights; c) la aparición de las Cartas de las colonias inglesas de Norteamérica; d) el auge de la doctrina moderna del derecho natural.²

    A compreensão da conceituação de Constituição, envolve tanto à Teoria da Constituição quanto à Doutrina da Constituição. Konrad Hesse assevera:

    Que é Constituição? A direção, na qual essa questão deve apontar, depende da tarefa que deve ser resolvida com o conceito a ser obtido; ela pode, por causa disso, para a Teoria da Constituição ser uma e ser outra para a Doutrina do Direito Constitucional. A questão sobre um conceito de constituição abstrato, no qual deve ser compreendido o comum de todas as constituições ou, então, de numerosas constituições históricas sob descuido de particularidades temporais e especiais, pode ser conveniente para a Teoria da Constituição. Para a Doutrina do Direito Constitucional, um tal conceito seria inadequado para fundamentar uma compreensão que estivesse em condições de dirigir o vencimento de problemas jurídico-constitucionais práticos, colocados hic et nunc. Como a normatividade da constituição vigente é a de uma ordem histórico-concreta, e a vida, que ela deve ordenar, é vida histórico-concreta, pode, no quando da tarefa de uma exposição dos elementos fundamentais do Direito Constitucional vigente, somente ser perguntado pela Constituição atual, individual-concreta³.

    Segundo o mestre alemão, a Constituição é a ordem jurídica fundamental da sociedade, cujos princípios levam a implementação da unidade política, além de determinar as tarefas e a atuação do Estado. Constitui-se no plano estrutural central, apontado a princípios de sentido para a conformação jurídica de uma sociedade. Formação da unidade política não significa a produção de um estado harmônico de concordância geral, de todo, não a abolição de diferenciações sociais, políticas ou organizacional-institucionais por unificação total. Ela não pode ser pensada sem a existência e o significado de conflitos para a convivência humana.

    Para Loewenstein, a Constituição deve servir para a limitação e a vedação da utilização abusiva do poder, cujo controle é pressuposto de uma sociedade justa, que respeita e garante os direitos fundamentais:

    La clasificación de un sistema político como democrático constitucional depende de la existencia o carencia de instituciones efectivas por medio de las cuales el ejercicio del poder político esté distribuido entre los detentadores del poder, y por medio de las cuales los detentadores del poder estén sometidos al control de los destinatarios del poder, constituidos en detentadores supremos del poder. Siendo la naturaleza humana como es, no cabe esperar que el detentador o los detentadores del poder sean capaces, por autolimitación voluntaria, de liberar a los destinatarios del poder y a sí mismos del trágico abuso del poder. Instituciones para controlar el poder no nacen ni operan por sí solas, sino que deberían ser creadas ordenadamente e incorporadas conscientemente en el proceso del poder. Han pasado muchos siglos hasta que el hombre político ha aprendido que la sociedad justa, que le otorga y garantiza sus derechos individuales, depende de la existencia de límites impuestos a los detentadores del poder en el ejercicio de su poder, independientemente de si la legitimación de su dominio tiene fundamentos fácticos, religiosos o jurídicos. Con el tiempo se ha ido reconociendo que la mejor manera de alcanzar este objetivo será haciendo constar los frenos que la sociedad desea imponer a los detentadores del poder en forma de un sistema de reglas fijas - ‘la constitución’ - destinadas a limitar el ejercicio del poder político. La constitución se convirtió así en el dispositivo fundamental para control del proceso del poder.

    A concepção de Kelsen, ao tratar da hierarquia constitucional superior, utiliza a pirâmide para explicar os diferentes níveis normativos, inserindo a Constituição como o escalão mais elevado do direito positivo, ou seja, para uma norma ser válida é preciso que busque seu fundamento de validade em uma norma superior, e assim por diante, de tal forma que todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. Kelsen, explica José Renato Martins⁵, toma a palavra Constituição em dois sentidos: no lógico-jurídico e no jurídico-positivo; de acordo com o primeiro, Constituição significa norma fundamental hipotética, cuja função é servir de fundamento lógico transcendental da validade da Constituição jurídico-positiva. Esta, por sua vez, equivale à norma positiva suprema, conjunto de normas que regula a criação de outras normas, lei nacional no seu mais alto grau, fornecedora da moldura definitiva e possível a todas as demais normas, que lhe devem obediência.

    Ao idealizar a estrutura piramidal do ordenamento jurídico, situando a Constituição no topo da pirâmide imaginária, Kelsen atesta que é a Lei Maior que outorga a validade a todas as leis e aos atos que inevitavelmente estarão hierarquicamente subordinados à Carta e que serão necessariamente compatíveis com ela. Neste escalonamento, cada norma é o fundamento de validade daquela situada hierarquicamente abaixo dela, desde que haja compatibilidade entre elas. Na escala inferior, situam-se os demais atos.⁶ A Constituição, portanto, ocupa o nível mais alto no âmbito normativo estatal⁷. E, nesse âmbito, é ela que regula a produção das normas jurídicas estatais, servindo assim de parâmetro superior da existência (pertinência) e validade das demais normas de determinado ordenamento jurídico.⁸ José Afonso da Silva não discrepa:

    [...] a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É enfim, a lei suprema do Estado, pois, é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais do Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas.

    O constitucionalismo contemporâneo implica na compreensão da relação existente em Constituição e jurisdição constitucional¹⁰, eis que como afirma Lenio Luiz Streck, isto significa que enquanto a Constituição é o fundamento de validade superior do ordenamento e consubstanciadora da própria atividade político-estatal, a jurisdição constitucional passa a ser a condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito, tida numa sociedade pluralista e complexa de poderes contidos, como moderadora de conflitos:

    [...] o significado de Constituição depende do processo hermenêutico que desvendará o conteúdo do seu texto, a partir dos novos paradigmas exsurgentes da prática dos tribunais encarregados da justiça constitucional. Com isso, conceitos como soberania popular, separação de poderes e maiorias parlamentárias cedem lugar à legitimidade constitucional, instituidora de um constituir da sociedade. Do modelo constituição formal, no interior da qual o Direito assumia um papel de ordenação, passa-se à revalorização do Direito, que passa a ter um papel de transformação da realidade da sociedade, superando, inclusive, o modelo do Estado Social.¹¹

    1.2 DIMENSÕES POLÍTICO-IDEOLÓGICAS SUBJACENTES AOS MODELOS DE CONSTITUIÇÃO

    A Constituição, apesar de trazer em seu bojo os principais princípios que regem os poderes e suas ligações com os governados, como toda ordem jurídica, tem um suporte fático que reflete-se na realidade, impondo disposições realizáveis, sob pena de inobservância tácita e desprestígio de seu texto, deixando de ser uma realidade viva para a massa dos destinatários do poder. Há sempre uma relação de causalidade entre os fatos sociais e o direito. Destoante da realidade, a norma será inoperante. A norma jurídica incide sobre fatos que ordena e coordena, incide sobre relações sociais, a que imprime um cunho de normatividade. Nunca é possível menosprezar a realidade sociológica e econômica influenciando o sistema normativo do direito.¹² Essa influência entrelaça a realidade com o mundo normativo, dando origem a modelos de Constituição diferentes de acordo com a vivência político-ideológica do Estado em que a mesma foi gerada.

    Os princípios jurídicos garantidos pela Constituição devem ser absorvidos pela realidade social e econômica subjacente e devem corresponder aos valores da sociedade na qual será aplicada, refletindo as ideias e uma ideologia, mesmo quando se tratar de norma programática, normalmente acompanhada de conceitos indeterminados, cuja eficácia dependa da vontade discricionária do legislador a quem é dirigida. A ideologia constitucional expressa no conceito material de Constituição, ao mesmo tempo que visa estabilizar a organização da sociedade, busca, igualmente, adaptar-se a novos valores e até mesmo servir como instrumento de transformação social. ¹³ Manuel Aragon, citado por Ivo Dantas, referindo-se à ideologia constitucional, doutrina:

    [...] el establecimiento de una Constitución no es sino la consecuencia de una forma muy concreta de entender el orden político y supone, ello, un intento de racionalizarlo, esto es, de organizar un tipo de Estado congruente con ese orden que se considera modélico o, al menos, preferible. De ahí la impropiedad de expresiones tales como las de ‘Constitución real’ o ‘Constitución sociológica’, expresiones que suelen encerrar en la mayoría de los casos, además de una cierta confusión entre el orden social y el orden político, una contradictoria concepción según la cual el orden político y jurídico es simple emanación del orden social y, a su vez, el orden social objeto a garantizar con un determinado orden político y jurídico. Con ellos se olvida, por un lado, la vacación transformadora del orden social que la Constitución tiene y, por otro, su inevitable carácter paradójico, pues, debido a su indudable significación simbólica, la Constitución no sólo suele ser el reflejo de un orden sino también un instrumento para intentar degitima-lo, con lo que a veces el segundo cometido prevalece sobre el primero aunque de manera muy distinta a la imaginada por el pretendido ‘realismo’. Ello ocurre cuando la Constitución, siendo ficticia desde el punto de vista sociológico, es ‘real’ desde el punto de vista político¹⁴.

    Em excelente trabalho a respeito, Oswaldo Luiz Palu¹⁵, ancorado na classificação proposta por J.J. Gomes Canotilho, lista as principais variantes político-ideológicas: modelo constitucional do Estado liberal, modelo constitucional do Estado social e modelo constitucional do Estado socialista:

    1.2.1 O modelo constitucional do Estado liberal

    Onde:

    a) o referente da Constituição é o Estado; b) o arquétipo de estado é o liberal, caracterizado pelos princípios: (I) da subsidiariedade (o Estado somente intervém onde a sociedade não consegue solucionar os problemas), (II) do Estado mínimo (são reduzidas as tarefas e as despesas do Estado) e (III) da neutralidade, onde o Estado deve abster-se de intervenções econômico-sociais, não devendo dirigir ou mudar situações existentes (leave them as you find them); c) o objetivo da Constituição liberal é racionalizar e limitar o poder; d) a força normativa da Constituição traduz-se pela sua pretensão de organizar os órgãos do Estado; e) a estrutura da Constituição é essencialmente negativa por conformar a sociedade negativamente, estabelecendo limites ao poder estatal e consagrando liberdades e direitos ao cidadão oponíveis contra o Estado; f) a verdade da Constituição procura-se no seu expresso e no contexto (oculto) ou seja, embora seja um ato estatal, a Constituição pressupõe um modelo econômico-social existente (economia privada, economia de mercado, valores fundamentais do individualismo etc.)

    1.2.2 O modelo constitucional do Estado social

    Onde:

    a) o referente é o Estado e a sociedade; b) o arquétipo é o estado social caracterizado pelos princípios: (I) do compromisso conformador, cabendo ao Estado intervir na sociedade para melhor assegurar a existência social, (II) da democratização da sociedade, que obriga a intervenções de caráter econômico e social tendentes a atingir a igualdade e (III) do Estado de direito formal, limitador das medidas intervencionistas (princípio da liberdade); c) o objetivo da Constituição social-democrática é a conciliação da racionalização dos limites ao poder estatal com as exigências da sociedade e democracia; d)a força normativa da Constituição exprime-se através da eficácia conformadora de suas normas; e) a estrutura da Constituição social é positiva, posto conformar a sociedade através da eleição de finalidades e consagrar, ao lado dos direitos negativos, direitos fundamentais positivos, ou seja, direitos através do estado (participação, prestações); f) a verdade da Constituição encontra-se no texto e no contexto descodificados, pois a Constituição não esconde sua mensagem social, econômica, cultural, formulando explicitamente objetivos e fins sociais e econômicos, sem destruir as relações econômicas do capitalismo.

    1.2.3 O modelo constitucional do Estado socialista

    Onde:

    a) o referente da Constituição é o Estado e a sociedade; b) o arquétipo do Estado é o socialista, caracterizado pelo (I) caráter classista do Estado, (II) princípio do Estado máximo, que exige o controle e propriedade pelo Poder Público dos principais meios de produção, e (III) princípio da não neutralidade, impondo-se tarefas de transformação econômica, social e cultural; c) o objetivo da Constituição é a conformação socialista do poder e a definição programática de suas tarefas; d) a força normativa traduz-se na pretensão de servir de programa a transformações econômicas, sociais e culturais através o Estado; e) a estrutura da Constituição é essencialmente positiva porque estabelece e conforma um aparelho estatal ao qual se confiam tarefas transformadoras, consagra fundamentalmente direitos positivos, econômicos, sociais, culturais; f) a verdade da Constituição socialista revela-se pela sua estratégia, ou seja, é um texto ideologicamente identificado e caracterizado a servir de programa e de balanço para conquistas consideradas revolucionárias.

    No Estado Liberal prevalece a lei, independente de seu conteúdo, em relação a quem submete-se a soberania estatal e cujo cumprimento legitimaria o Estado de Direito que neste modelo se confunde com o Estado Legal. A separação rígida dos poderes, bem como a separação entre Estado e Sociedade Civil procedida pelo Direito, tem na previsão da norma jurídica a garantia dos indivíduos-cidadãos frente à eventual atuação do Estado, impeditiva ou constrangedora de sua atuação cotidiana.¹⁶

    Como evolução do Estado Liberal de Direito, o Estado Social não se contenta com a simples existência da lei, exigindo que ela busque a realização da justiça social à população e garanta a concretização dos chamados direitos sociais. O Estado, ao invés de apenas regular o mercado, viabilizando o desenvolvimento livre das relações sociais, também intervém, assumindo deveres antes restritos a iniciativa privada, sempre perseguindo a minimização das desigualdades sociais e o direito a uma vida digna aos cidadãos, pela via da efetividade mínima dos direitos humanos e fundamentais.

    Há que se citar ainda, o Estado Democrático de Direito, que o art. 1º, da Constituição Federal de 1988 expressamente afirma. Neste modelo, a lei além de refletir a realidade social, de ter sido legitimada pela participação da população na eleição do legislador e de objetivar sempre a garantia da dignidade da pessoa humana, é instrumento de transformação social. A realização dos direitos fundamentais é inseparável da noção do Estado Democrático de Direito, que busca nas relações sociais concretas o atendimento às exigências da maioria da população.

    Manifestando-se sobre os três modelos – Liberal, Social e Democrático de Direito – Lenio Streck e José Bolzan de Morais concluem:

    Como liberal, o Estado de Direito sustenta juridicamente o conteúdo próprio do liberalismo, referendando a limitação da ação estatal e tendo a lei como ordem geral e abstrata. Por outro lado, a efetividade da normatividade é garantida, genericamente, através da imposição de uma sanção diante da desconformidade do ato praticado com a hipótese normativa. Transmutado em social, o Estado de Direito acrescenta à juridicidade liberal um conteúdo social, conectando aquela restrição à atividade estatal a prestações implementadas pelo Estado. A lei passa a ser, privilegiadamente, um instrumento de ação concreta do Estado, tendo como método assecuratório de sua efetividade a promoção de determinadas ações pretendidas pela ordem jurídica. Em ambas as situações, todavia, o fim ultimado é a adaptação à ordem estabelecida. Quando assume o feitio democrático, o Estado de Direito tem como objetivo a igualdade e, assim, não lhe basta limitação ou a promoção da atuação estatal, mas referenda a pretensão à transformação do status quo. A lei aparece como instrumento de transformação da sociedade não estando mais atrelada inelutavelmente à sanção ou à promoção. O fim a que pretende é a constante reestruturação das próprias relações sociais.¹⁷

    1.3 CONSTITUIÇÃO EM SENTIDO FORMAL E MATERIAL

    Ensina Canotilho¹⁸, estudando a Constituição material, que são duas as dimensões que devem ser enfatizadas. Uma, objetiva, consistente no conjunto de fins e valores constitutivos do princípio efetivo da unidade e permanência de um ordenamento jurídico e outra, subjetiva, consistente no conjunto de forças políticas e sociais que exprimem esses fins ou valores, assegurando a estes a respectiva prossecução e concretização. Para se tornar mais inteligível o conceito, convém partir das seguintes distinções: a) Constituição real (material), entendida como o conjunto de forças políticas, ideológicas e econômicas, operantes na comunidade e decisivamente condicionadoras de todo o ordenamento jurídico; b) Constituição material (normativo-material) como o conjunto de normas que regulam as estruturas do Estado e da sociedade nos seus aspectos fundamentais, independentemente das fontes formais donde estas normas são oriundas e c) Constituição formal, que refere-se à constituição como ato escrito e solene que, como fonte de direito, cria normas jurídicas hierarquicamente superiores.

    Ignácio de Otto, estabelecendo um paralelo entre as Constituições em sentido formal (hierarquia - força superior frente às demais normas) e em sentido material (conteúdo preeminente eleito pelo constituinte), consigna:

    La expresión Constitución en sentido formal’ alude a la Constitución escrita, a textos que se diferencian de las restantes leyes y por su nombre y, en su caso, porque su aprobación y reforma están sujetos a especiales requisitos. La expresión ‘Constitución en sentido material’ alude, en cambio, al conjunto de las normas cuyo objeto es la organización del Estado, los poderes de sus órganos, las relaciones de estos entre si y sus relaciones con los ciudadanos; en pocas palabras: las normas que regulan la creación de normas por los órganos superiores del Estado, no en el sentido indicado antes, sino en el que la tienen por objeto. A partir de esa diferencia es posible decir que algunas normas son sólo formalmente constitucionales, porque están en la Constitución escrita pero su objeto no son los órganos superiores del Estado, la materia constitucional; y que otras son sólo materialmente constitucionales, porque tienen ese objeto pero no están incluidas en la Constitución escrita.¹⁹

    Desde o final do século XIX a doutrina alemã difundia distinção entre Constituição em sentido material e formal, entendendo a primeira como certas normas jurídicas que versam sobre os governantes e a forma de governo, enquanto que a segunda era entendida como a lei constitucional escrita (Verfassungssurkunde). Nas palavras de Jorge Xifra Heras:

    [...] si las normas que regulan el orden jurídico-político fundamental forman, en su conjunto, la Constitución material, la formalización de estas normas en uno o más textos legales, a los que se reconoce rango jerárquico superior, se traduce en la Constitución formal. Aquélla se define por su contenido; ésta por la técnica jurídica de su elaboración y de su reforma. La Constitución formal es, por tanto, el documento (o documentos) legal elaborado por el órgano que ejerce la potestad constituyente con arreglo al procedimiento adecuado, que reúne sistemáticamente las normas fundamentales del regime político²⁰.

    Se de um lado, o estudo da Constituição no sentido material ocupa-se com o conteúdo da mesma, o estudo da Constituição no sentido formal, ocupa-se com os problemas técnicos de sua elaboração por um poder de natureza essencialmente pré-jurídica ou político-sociológica; com os mecanismos de sua defesa e guarda através do controle da constitucionalidade de atos e leis e finalmente, com a positivação de procedimentos para reforma e revisões da própria Constituição, os quais ela mesma consagra.²¹ No tocante a Constituição no sentido material, há preocupação com os limites das relações entre o Poder Público e os cidadãos, seu regime político, sua forma de governo e sua forma de Estado. A Constituição no sentido formal, no entanto, se preocupa essencialmente com o processo de sua elaboração, revisão, como a mesma se apresenta e sua extensão.

    Desta feita, na observação de Luís Roberto Barroso, "ocorrerá inconstitucionalidade formal quando um ato legislativo tenha sido produzido em desconformidade com as normas de competência ou com o procedimento estabelecido para seu ingresso no mundo jurídico. A inconstitucionalidade será material quando o conteúdo do ato infraconstitucional estiver em contrariedade com alguma norma substantiva prevista na Constituição, seja uma regra ou um princípio".²²

    1.4 CONSTITUIÇÃO RÍGIDA, FLEXÍVEL E SEMIRRÍGIDA

    A Constituição rígida pressupõe um nível hierárquico das normas constitucionais em patamares superiores, só alteráveis por processos e solenidades especiais, reclamando a previsão de um controle de constitucionalidade das demais espécies normativas, as quais não possuem força para alterá-la. A forma de alteração do texto constitucional é sempre mais complexa e difícil que os de formação das leis ordinárias ou complementares.

    A Constituição flexível é marcada pela possibilidade de alteração pelo processo legislativo ordinário, que quando aprovado, modifica automaticamente a norma constitucional que estiver em desconformidade com a reforma. A Constituição flexível perdeu importância, por não responder à necessidade de supremacia e segurança que o texto constitucional, deve oferecer aos cidadãos, em relação às garantias de seus direitos fundamentais e a organização do Estado²³.

    A Constituição semirrígida se caracteriza pela existência de disposições rígidas (que exigem um procedimento solene para modificação) e disposições flexíveis (que podem ser alterados pelo processo legislativo ordinário).

    A supremacia da Constituição é mais evidente quando a Constituição é rígida, impedindo que as demais espécies normativas se apresentem contrário ao estipulado na norma constitucional. A lei afrontosa à Constituição não prevalece no mundo jurídico. É que, conforme ensina Marcelo Caetano, ao tratar do tema de inconstitucionalidade:

    [...] sendo a lei constitucional superior às ordinárias, a conclusão lógica é que estas não podem contrariar aquela, aduzindo que ‘a Constituição é o assento fundamental da ordem jurídica do Estado, a norma de todas as outras normas, o fundamento da autoridade de todos os poderes constituídos’, para concluir que uma lei que não respeita a Constituição carece de força obrigatória, eis que sem validade, sendo a inconstitucionalidade o vício das leis que provenham de órgãos que a Constituição não considera competente, ou que não tenham sido elaboradas de acordo com o processo prescrito na Constituição ou contenham normas opostas às constitucionalmente consagradas.²⁴

    José Afonso da Silva, após ressaltar que é da rigidez que emana, como primordial consequência, o princípio da Supremacia da Constituição, trata da experiência brasileira, expondo:

    Nossa Constituição é rígida. Em conseqüência só nela encontra fundamento e só ela confere poderes e competências governamentais. Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem os dos Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas daquela lei fundamental. Exercem suas atribuições nos termos nela estabelecidos. Por outro lado, todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se conformarem com as normas da Constituição Federal.²⁵

    A matéria também é conhecida do Supremo Tribunal Federal, que ao enaltecer a supremacia constitucional, potencializa a estabilidade institucional, garantindo respeito aos dispositivos e princípios constitucionais pelas demais leis e atos normativos:

    Sabemos que a supremacia da ordem constitucional traduz princípio essencial que deriva, em nosso sistema de direito positivo, do caráter eminentemente rígido de que se revestem as normas inscritas no estatuto fundamental. Nesse contexto, em que a autoridade normativa da Constituição assume decisivo poder de ordenação e de conformação da atividade estatal – que nela passa a ter o fundamento de sua própria existência, validade e eficácia -, nenhum ato de Governo (Legislativo, Executivo e Judiciário) poderá contrariar-lhe os princípios ou transgredir os preceitos, sob pena de o comportamento dos órgãos do Estado incidir em absoluta desvalia jurídica.²⁶

    Apesar da íntima ligação que existe entre a rigidez do texto constitucional e o prestígio do Princípio da Supremacia Constitucional, mesmo naquelas Cartas reconhecidamente rígidas, com exceção de algumas matérias intocáveis, tidas como o sustentáculo do sistema jurídico regulado e por isso denominadas cláusulas pétreas (adiante explicitadas), todas as Constituições preconizam procedimentos de alteração, eis que a estabilidade a ser perseguida, não pode ser confundida com imutabilidade do texto frente a realidade social. German Bidart, a respeito, doutrina que:

    La movilidad de los procesos, el dinamismo de la vida, no pueden soportar muchas veces la cristalización de las previsiones normativas, que tienen, sin duda alguna, la intención de establecer un orden fundamentalmente duradero, en opinión de Stier-Somlo. El mismo cambio del mundo en el sentido orteguiano, por la sucesión de las generaciones, va suscitando oportunidades y posibilidades nuevas, distintas, opuestas a las existentes o a las conocidas anteriormente. La individualidad histórica del estado se abre ante horizontes sucesivos. Por eso, las leyes que se dictan en un momento determinado, por solemmes que sean, no resisten la influencia de la vida que las retoca, las pule, la transforma, y también las abroga.²⁷

    1.5 O FUNDAMENTO MORAL E O PODER CONSTITUINTE

    1.5.1 Fundamento moral

    Tratando do direito e da moral, Kelsen²⁸ consignava que as normas jurídicas positivas não dependem do fato de corresponderem à ordem moral, podendo ser consideradas válidas ainda que contrarie a ordem moral. A moral se situaria como regulamentação da conduta interior, como ordem positiva sem caráter coercitivo. A moral não é coercitiva pela força, mas pela reprovação da sociedade. A norma moral estatui a conduta de um homem em face de outro, além de regular a conduta do próprio indivíduo. Tanto o direito, como a moral, prescreve normas de conduta. Para o referido autor, a moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções, pois as suas sanções consistem na aprovação da conduta conforme a reprovação social. O direito fazendo parte da moral, que varia de um determinado grupo ou camada social para outro, é igual ao justo.

    Ao contrário do que defende Kelsen, é de se observar, como já aduziu Kant²⁹, que a moral influenciando o direito, tem a ver com repercussões de ordem da justiça, direitos humanos e da dignidade humana, sem as limitações da pirâmide a que alude o autor austríaco.

    Gustav Radbruch reconhece que não é pelo fato de o direito fortalecer os deveres morais com uma sanção jurídica que poderíamos considerá-lo um servidor da moral, para ajudar ao cumprimento dos deveres desta. Entende o autor outrossim, que "só a moral é capaz de servir de fundamento à força obrigatória do direito. Com efeito, dos preceitos jurídicos, considerados como imperativos ou manifestações de vontade, pode talvez fazer-se derivar, quando muito, um ter-de-ser, isto é, um müssen; nunca, porém, um dever-ser, um sollen. Só pode rigorosamente falar-se de normas jurídicas, dum dever-ser jurídico, duma validade jurídica, e portanto de deveres jurídicos, quando o imperativo jurídico for dotado pela própria consciência dos indivíduos com a força obrigatória ou vinculante do dever moral".³⁰ Haveria dependência da aprovação da consciência dos indivíduos, levando a justiça ao próprio Direito e proporcionando uma naturalização do dever jurídico dentro do reino da moral.

    O direito influenciado pela moral é anterior ao direito positivo, fulcrado inclusive no direito natural. É o direito fundado na moralidade, mesmo com regras não jurídicas. Hart aduz:

    Em todas as sociedades que desenvolveram um sistema jurídico há, entre as suas regras não-jurídicas, algumas a que a atribui suprema importância e que, apesar de diferenças cruciais, têm muitas semelhanças com o seu direito. Muitas vezes o vocabulário de direitos, obrigações e deveres usado para expressar as exigências das regras jurídicas é utilizado com o aditamento do adjetivo moral, para expressar os atos ou omissões exigidos por estas regras. Em qualquer comunidade há uma sobreposição parcial de conteúdo entre a obrigação jurídica e a moral; embora as exigências das regras jurídicas sejam mais específicas e estejam rodeadas por exceções mais detalhadas do que as correspondentes regras morais.³¹

    É neste contexto que o Poder Constituinte recebe os fundamentos da moral. Um Poder Constituinte que não tenha fundamento na moral pode virar direito positivado, mas estará afastado da legitimidade, por não levar em conta a discussão do justo e do injusto³², do bem ou do mau, do certo ou do errado, da dignidade ou de sua ausência.

    Não se pode olvidar, na advertência de Radbruch, que o direito é apenas a possibilidade da moral e por isso mesmo também a possibilidade da imoralidade. Ele torna possível a moral. Não a torna forçosamente necessária, porque o ato moral, por natureza do seu próprio conceito, não pode ser senão um ato de liberdade. Mas porque o direito apenas torna possível a moral, por isso mesmo deve também tornar possível a negação da moral.³³

    O Poder Constituinte que não tenha em suas raízes a preocupação com a moral poderá gerar uma Constituição, cuja observância obrigatória prevalecerá pela força de suas disposições, mas esta Constituição, por não contar com a aprovação da sociedade, já que despreocupada com a moral, terá como sanção, a falta de legitimidade, dificuldades de governabilidade respaldada e esquecimentos dos princípios do Estado Democrático de Direito e da Dignidade Humana.

    Como acentua Hart, quer o direito, quer a moral, incluem regras que regem o comportamento de indivíduos em situações constantemente repetidas no decurso da vida, mais do que em atividades ou ocasiões especiais, e, embora ambos possam incluir muito do que é específico em relação às necessidades reais ou imaginadas de uma sociedade concreta, um e outra fazem exigências que devem evidentemente ser satisfeitas por qualquer grupo de seres humanos que pretenda conseguir viver em comum.³⁴

    Apesar do direito e da moral poder se caracterizar como um conjunto de normas, o primeiro de normas coercitivas e a segunda de não coercitivas, o primeiro não exclui a segunda. Elas se complementam. O sistema jurídico tem na moral o embasamento que coíbe que a manifestação de vontade política se trate de uma manifestação autoritária.

    1.5.2 Poder Constituinte

    A legitimidade do Poder Constituinte não se resume na outorga democrática da condição de elaborar uma nova ordem jurídica superior, a obrigar toda a população de um País. A legitimidade do poder de criar uma nova Constituição, também tem a ver com a concordância do constituinte com os ideais de justiça daquela comunidade, sempre pluralista e com várias pretensões ao estabelecimento de verdades morais, regulando-as de forma que uma verdade moral não exclua outra e que a linha invisível do pensamento social seja intrinsecamente justa. Oscar Vilhena Vieira leciona:

    Como não há possibilidade, ao menos no nível da política, de estabelecer um mecanismo que sempre produza resultados justos, necessário se faz utilizar os princípios da justiça, não apenas para que se desenhe um procedimento o mais justo possível mas, também, para corrigir resultados eventualmente não substantivamente justos decorrentes do procedimento adotado. Assim, a partir dos princípios da justiça seria estabelecida uma Constituição que albergaria procedimentos justos para a tomada de decisão e elementos substantivos para o controle de eventuais resultados injustos decorrentes de seus procedimentos.³⁵

    Quando do nascimento do conceito de Pouvoir Constituant, no seio da revolução francesa e sua concepção de separação dos poderes revelados por Montesquieu, o poder constituinte foi reconhecido como situado em patamar acima da Constituição, ligado ao conceito de soberania popular. A titularidade do poder de fazer a Constituição é fruto da vontade geral (onipotente e infalível), a que alude Rousseau. E como obra popular, originária da nação, deve ser obedecida pela nação que a criou. É a

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