Função Social da Sucessão: tutela e limites à autonomia privada na sucessão causa mortis
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Função Social da Sucessão - Ricardo Alves de Lima
privada.
1. O FENÔMENO SUCESSÓRIO
1.1 DIREITO DE HERANÇA E SEUS FUNDAMENTOS JURÍDICOS
O tratamento da sucessão parte do evento morte, ou seja, se inicia pelo fim da vida. E, em que pese o fato de ser a morte uma questão delicada¹, justamente por escapar ao controle humano, a regulamentação das suas consequências é levada a cabo pelo Direito². Ajusta-se, assim, desde o primeiro parágrafo deste livro, o enfoque do debate ao direito sucessório, todo ele dedicado àquela transmissão que se dá em razão da morte, e não àquela que se opera entre pessoas vivas. De fato, Clóvis Beviláqua, desde o início dos seus comentários ao último livro do Código Civil de 1916, já fizera esse mesmo ajuste, esclarecendo, no entanto, que a ideia de sucessão não é exclusiva do direito hereditário
³.
Assim, as sucessões que se referem a outros ramos do próprio Direito Civil ocorrem entre pessoas vivas. Essa hipótese se faz presente na transmissão da propriedade por meio contratual – em sede de compra e venda, doação, cessão etc. – de modo que um sujeito sucede o outro na propriedade daquele determinado bem em vida. Já a sucessão causa mortis demonstra a continuidade das relações jurídicas em decorrência da morte do seu titular⁴.
É esta última o objeto de interesse do direito das sucessões e que o estrutura como disciplina autônoma, sendo definido por Clóvis Beviláqua como o complexo de princípios, segundo os quais se realiza a transmissão do patrimônio de alguém que deixa de existir
⁵. Francisco José Cahali traz conceito tributário àquele de Clóvis: conjunto de regras e complexo de princípios jurídicos pertinentes à passagem da titularidade do patrimônio de alguém que deixa de existir aos seus sucessores
.⁶
Por sua vez, Arnaldo Rizzardo parte da ideia da finitude da vida humana em um plano corporal ao qual o patrimônio é ligado, de forma que é necessário que outras pessoas venham e assumam a titularidade, de modo a se recompor a ordem ou a estabilidade no patrimônio
⁷.
Percebe-se, nesta perspectiva, que o direito sucessório se presta à regulamentação do destino das relações jurídicas transmissíveis do autor da herança, no que não se pode olvidar do que estabelece a Constituição. O direito à sucessão, consagrado – e não há palavra melhor do que essa – no art. 5º, XXX⁸ da Constituição Federal de 1988, se eleva à categoria de direito fundamental e, ainda, por força do que estabelece o art. 60, § 4º, à categoria de cláusula pétrea.
Partindo dessa diretriz, deve-se investigar os fundamentos do direito de herança. Para tanto, recorre-se ao seu enquadramento em um contexto, o que se faz inobstante o fato de não ser o direito uma ciência taxionômica⁹, mas pelo costume didático das classificações. Assim, o direito de herança se regula no campo do Direito Civil, mais especificamente em seu último livro da parte especial, o do direito das sucessões, com repercussões também de natureza administrativa e tributária.
Inserida predominantemente nesse campo do Direito Privado, a normativa sucessória se inspira, inevitavelmente, naqueles mesmos valores que influenciaram a evolução e a transformação desta área, mas parece resistir ainda às últimas ressignificações do civilismo, o que contrasta com o fundamento maior dos direitos fundamentais: a dignidade da pessoa humana. Para a sustentação dessa afirmação devem ser lançados seus arrimos.
Primeiramente, deve-se afirmar a dignidade como fundamento. Nessa tarefa é possível que se lance mão, inclusive, do próprio texto constitucional, mais especificamente o art. 1º, em seu inciso III. Assim, constitucionalmente, a dignidade da pessoa humana é fundamento da República. Esse fundamento se torna o centro em torno do qual gravitam todos os direitos fundamentais e, entre eles, o direito de herança.
A dignidade humana, no entanto, tem fundamentos históricos e filosóficos próprios, como será demonstrado.
1.1.1 O fundamento da dignidade da pessoa humana
Em observação marcada pelo cuidado técnico, Ana Paula de Barcellos afirma que [u]m dos poucos consensos teóricos do mundo contemporâneo diz respeito ao valor essencial do ser humano
¹⁰. De fato, esse valor essencial é o núcleo estruturante do fundamento aqui debatido.
Luiz Edson Fachin¹¹ define a dignidade da pessoa humana como imperativo ético existencial, além de princípio e regra inserida na Constituição como fundamento da República. Salienta, ainda, que em virtude desse enquadramento – como fundamento –, a dignidade perpassa toda a racionalidade da ordem jurídica por meio de sua força normativa.
Ingo Wolfgang Sarlet¹², por sua vez, a define como qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade
. Dessa significação, o autor aponta como desdobramento uma série de direitos e deveres fundamentais para proteção da pessoa contra atos degradantes e desumanos, e ainda para a garantia das mínimas condições existenciais para uma vida saudável.
Os fundamentos históricos, por sua vez, são indicados por Ana Paula de Barcellos¹³ em quatro momentos fundamentais: o Cristianismo; o Iluminismo-humanista; a obra de Immanuel Kant e os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial. A esta tese interessam as bases históricas da dignidade humana com especial atenção à função da historiografia jurídica, o que vai muito além de construir uma espécie de retrospectiva capaz de apresentar o momento presente como um ponto de chegada inevitável, segundo assevera Ricardo Marcelo Fonseca¹⁴, a história do Direito passa a ter uma função crítica, desmistificadora do formalismo jurídico que busca sempre ‘isolar’ o Direito de seu tempo, funcionando desse modo como ‘consciência crítica’ dos demais juristas
.
Nesse sentido, o destaque ao Cristianismo se deve à originalidade da valorização do indivíduo nessa doutrina. Ora, a salvação se anuncia como um projeto individual, decorrente de uma decisão pessoal. No entanto, além dessa noção individual, a mensagem de Cristo contém aspectos de valorização do outro, sobretudo aquele plasmado no segundo mandamento (Amarás o teu próximo como a ti mesmo). Apesar desse consenso e dessa originalidade revolucionária da mensagem de Cristo, há divergências teóricas fundamentais entre a doutrina jurídica e a doutrina social da Igreja. O ponto principal dessa divergência é, sem dúvida, o fundamento último da dignidade¹⁵.
É justamente essa compreensão centrada na religião que é combatida pelo pensamento iluminista, profundamente baseado na razão humana. O desenvolvimento teórico do humanismo acabará por redundar em um conjunto de consequências relevantes para o desenvolvimento da ideia de dignidade humana, como a preocupação com os direitos individuais do homem
¹⁶.
A terceira base histórica, por sua vez, é, também, a base filosófica apontada como raiz do pensamento sobre a dignidade da pessoa. É o pensamento kantiano, centrado na ideia de que o homem é um fim em si mesmo, ou seja, a pessoa não pode ser tomada como um meio. Desse pensamento, ainda, destaca-se:
No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se, em vez dela, qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade¹⁷.
As coisas têm, assim, uma medida de valor que pode ser dada por um preço, enquanto as pessoas têm, na verdade, dignidade.
A quarta e última base histórica do fundamento da dignidade é, também, a que mais profundamente marcou e chocou a humanidade. Com o desenrolar dos conflitos da Segunda Guerra e o início da derrocada das forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), os horrores dos campos de concentração e de extermínio foram revelados ao