Dosimetria e Discricionariedade: a fixação da pena no tráfico privilegiado
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A análise se inicia com uma breve contextualização do pensamento criminal na doutrina, considerando a sociedade de risco e suas influências na formação da decisão judicial. Trata-se em seguida das bases garantistas do direito penal constitucional moderno, com Luigi Ferrajoli e se refuta o poder dispositivo do juiz na dosimetria da pena, mediante o recurso frequente à discricionariedade judicial, que não raro leva o quantum final a ser estabelecido por meio de considerações subjetivas ou em escolhas judiciais sobre a ordem e a vez de se utilizar os critérios legais, contrárias ao sistema trifásico de dosimetria.
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Dosimetria e Discricionariedade - Louise Vilela Leite Filgueiras Borer
consumo.
1.
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A POLÊMICA DAS DOUTRINAS PENAIS DA PÓS-MODERNIDADE
Introduzimos aqui algumas breves considerações sobre as discussões doutrinárias que tem sido travadas na atualidade pelos grandes teóricos do Direito Penal, as correntes que ao longo do tempo se delineiam, adquirindo contornos mais definidos e as tensões existentes.
Na verdade, pretendemos traçar um pequeno esboço desse panorama para evidenciar quais as influências mais notáveis no pensamento atual do jurista, que determinam, muitas vezes a opção por uma ou outra interpretação da norma jurídica.
Entendemos, com apoio em Claus Roxin, Winfried Hassemer e Jesus-Maria Silva-Sánchez, que a pretensão de eficiência não deve servir de subterfúgio para se fazer tábula rasa das garantias individuais, o que de um lado, tornaria a decisão judicial ilegítima do ponto de vista constitucional e de outro, ineficiente sob o aspecto do custo-benefício social da supressão de direitos e garantias individuais.
1.1 A SOCIEDADE DE RISCO, A PRETENSÃO DE EFICIÊNCIA DO DIREITO PENAL E O CONTEXTO DE SURGIMENTO DO FUNCIONALISMO
Segundo Ulrich Beck, a pós-modernidade, ou modernidade tardia tem, socialmente, a característica de produzir riscos: aos problemas e conflitos distributivos da escassez sobrepõem-se os problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição de riscos científico- tecnologicamente produzidos
.⁶
Ulrich Beck diferencia os riscos pessoais assumidos nas eras pré-industriais daqueles inevitavelmente surgidos das complexas interações da era pós-industrialização, que envolvem o outro, que não assumiu o risco, mas arca com ele involuntariamente. As situações de ameaça se distribuem de forma difusa na sociedade fazendo com que convivamos com um sentimento constante de insegurança, pelo que o contraprojeto normativo da sociedade de risco, que lhe fornece a base e o impulso passa a ser a segurança.⁷
Winfried Hassemer, em sua Crítica ao direito penal de hoje
nos mostra que através dos meios de comunicação, é potencializada, por difusão, essa sensação de risco e de insegurança, que por sua vez contamina os rumos da política criminal. Segundo ele, os meios de comunicação, que atribuem um alto valor à violência e divulgam-na sistematicamente de forma seletiva, isto é, de modo a causar o maior impacto possível, influenciam negativamente o sentimento de insegurança da população e torna a ameaça de violência, seja real, seja meramente suposta, um regulador, mediante o qual se fomenta a política criminal, tipicamente restauradora da estabilidade social. A partir disso, aquilo que vale como bem jurídico penal passa a se decidir por um acordo social produzido, constituído, pelas sensações de ameaça da população.⁸
Sobre os reflexos na seara criminal desses fenômenos sociais é interessante a análise de Herivelton Rezende de Figueiredo, conectando-os às origens da doutrina funcionalista, ao afirmar que a pós-modernidade pôs em questão a isenção ideológica da dogmática penal finalista, em busca da eficiência do direito penal para o atendimento de suas funções.⁹
A dogmática funcionalista, em sua vertente estrutural, é formulada por Claus Roxin, que contesta a neutralidade dogmática do finalismo, admitindo a influência da política criminal no direito penal: o direito penal é bem mais a forma em que as finalidades político-criminais se transformam em módulos de vigência jurídica
. ¹⁰
Essa vertente é seguida, em suas linhas gerais, pela escola de Frankfurt. O funcionalismo possui, porém, uma vertente mais radical, da qual é representante Günther Jakobs, cuja proposta é bastante diversa. Günther Jakobs vê o direito penal como um instrumento de estabilização do sistema social, o que se daria através da reafirmação da norma jurídica penal através da sanção penal, adotando como fundamento de sua tese a teoria dos sistemas de Luhmann.¹¹
Segundo Herivelton Rezende de Figueiredo¹², os tempos pós-modernos, que levam a essas mudanças na dogmática penal, são identificados com as alterações ocorridas principalmente após 1970, posterior ao período chamado por Eric Hobsbawm de era de ouro
em que vigorou a política do Welfare State nos EUA e que corresponde ao período que medeia o início da Guerra Fria e a crise do petróleo em 1973.¹³
A partir daí surge um ciclo de depressão econômica que gera um crescimento das ideias neoliberais e a retração da ideia de intervenção do Estado de Bem-Estar Social. Ganham relevo as ideias de defesa do laissez-faire de Friedrich von Hayek e Milton Friedman que defendiam o abandono da política intervencionista keynesiana para um retorno ao liberalismo econômico de Adam Smith, segundo o qual a mão oculta do mercado seria a solução para a estabilização natural das relações econômicas.¹⁴
Com a nova política, a insegurança dá o tom ao mercado, já que o Estado passa a não ter o dever de promover o pleno emprego nem mesmo se lhe atribui o dever de garantia plena de alguns direitos fundamentais como a assistência à saúde, à educação e à moradia, típicos direitos fundamentais assegurados em maior ou menor grau pelo Estado, na ideologia do Welfare State. O medo do desemprego, a concentração de renda e a exclusão social fomentam a violência e a sensação de insegurança. A mídia incentiva comportamentos antissociais e o consumo desenfreado, aumentando a sensação de exclusão e de insatisfação¹⁵.
Ao mencionarmos o termo pós-modernidade, somos diretamente remetidos à ideia de sociedade de risco contemporânea. Palavras como meio- ambiente, internet e globalização vêm imediatamente ao pensamento, por serem de uso corrente. Na seara penal temos o incremento do estudo e da busca de novos e eficientes meios de repressão nessas áreas, de criminalidade ambiental, cibernética, econômica, além do terrorismo e do tráfico de drogas, criminalidade que tem feitio eminentemente transnacional e, muitas vezes, geradora de resultados que ultrapassam as fronteiras do Estado e que podem ser inclusive indetermináveis.
Nas palavras de Ulrich Beck:
Na modernidade tardia¹⁶, a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos, consequentemente, aos problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição de riscos científico-tecnológicos produzidos.
Essa passagem da lógica da distribuição de riqueza na sociedade da escassez para a lógica da distribuição de riscos na modernidade tardia está ligada historicamente a (pelo menos) duas condições. Ela consuma-se, em primeiro lugar – como se pode reconhecer atualmente – , quando e na medida em que, através do nível alcançado pelas forças produtivas humanas e tecnológicas, assim como pelas garantias e regras jurídicas e do estado social, é objetivamente reduzida e socialmente isolada a autêntica carência material. Em segundo lugar, essa mudança categorial deve-se simultaneamente ao fato de que, a reboque das forças produtivas exponencialmente crescentes no processo de modernização, são desencadeados riscos e potenciais de autoameaça numa medida até então desconhecida.¹⁷ (grifos do autor).
Na proporção do aumento dos riscos em sociedade, cresce a criminalização de condutas de perigo abstrato, tendo em vista a necessidade de se evitar o resultado pela eliminação do próprio risco em seu nascedouro, dada a magnitude e a indeterminação das consequências danosas presumidamente decorrentes de certos atos. Segundo Bernd Schünemann,
Se se busca o traço característico dominante da sociedade atual, na realidade há que se falar com maior razão de uma sociedade de desperdício, de mal gasto e dissipação, já que o volume de exposição a perigo de recursos é essencialmente inferior ao da destruição de recursos. Portanto, há que se considerar que da perspectiva do direito penal de risco a peculiaridade da sociedade industrial atual se apoia unicamente no extraordinário incremento das interconexões causais. Pois devido a extremadamente densa rede de industrialização existente, em muitos âmbitos resulta impossível explicar, por exemplo, a produção de danos à saúde dos habitantes de uma determinada zona através de uma só relação de causalidade, com base na qual se possa identificar, por exemplo, a emissão de substâncias tóxicas por parte de uma determinada fábrica como causa.¹⁸
Assim, o direito penal, superando a doutrina finalista de Welzel¹⁹, criada na década de 1930, em contraposição à doutrina clássica causalista e que ganhou força nos anos 1950 pela ideia de que o direito penal deve atender principalmente ao fim social de estabilização e pacificação a que se dirige por meio de uma dogmática acrítica²⁰, vive hoje a clara tendência ao funcionalismo, dividido entre a tensão entre um funcionalismo estrutural, de Claus Roxin que defende a ideia de reaproximação do direito penal da política criminal o que resulta na recepção por sua doutrina de princípios como os da adequação social²¹, intervenção mínima²², proporcionalidade²³, insignificância²⁴, culpabilidade²⁵, autorresponsabilidade²⁶, ofensividade²⁷, confiança²⁸ e da proteção de bens jurídicos²⁹ e a tendência à maximização do direito penalppermitida pelo funcionalismo radical de Günther Jakobs, que se preconiza a função preventivo-positiva- fundamentadora da norma penal, baseando-se na ideia de função de reafirmação da normatividade penal para a estabilização do sistema, o que Günther Jakobs extrai da teoria de Luhmann.
Do lado extremo oposto à teoria de Günther Jakobs identificamos, na visão de Bernd Schünemann, a tradicional escola de Frankfurt, de Winfried Hassemer e seus discípulos, defensora de um individualismo-monista que reafirma a ideia de finalidade de proteção de bens jurídicos pelo direito penal, rechaça por completo a formulação de crimes de perigo abstrato, defendendo que as condutas criminalizadas devem ser apenas aquelas de resultado, na linha do direito penal mínimo e que pugna pela necessidade de formalização do direito processual penal e a separação entre atividade jurisdicional e policial, como forma essencial para a garantia dos direitos individuais do acusado.³⁰
1.2 FUNCIONALISMO ESTRUTURAL DE CLAUS ROXIN
Para Claus Roxin, o direito penal é uma instituição social de muita importância, que assegura a paz social e com isso garante aos indivíduos uma distribuição de bens minimamente justa, além de garantir o livre desenvolvimento de sua personalidade, o que conforme afirma, se insere nas tarefas de um Estado Social de