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A revolução protestante: Uma provocante história do protestantismo contada desde o século 16 até os dias de hoje
A revolução protestante: Uma provocante história do protestantismo contada desde o século 16 até os dias de hoje
A revolução protestante: Uma provocante história do protestantismo contada desde o século 16 até os dias de hoje
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A revolução protestante: Uma provocante história do protestantismo contada desde o século 16 até os dias de hoje

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Revolução protestante é uma provocante história do protestantismo contada desde o século 16 até os dias de hoje. Um estudioso de fama mundial oferece uma nova interpretação do protestantismo e de seu impacto no mundo. A ideia radical de que os indivíduos podiam interpretar a Bíblia por si mesmos gerou uma revolução que ainda acontece no palco do mundo atual. Essa inovação repousa no cerne da notável instabilidade e adaptabilidade do protestantismo. A primeira parte de A Revolução Protestante apresenta um passeio cronológico através da história, a segunda foca as características distintivas da fé e da prática protestante, e a terceira é uma visão provocativa do futuro global do protestantismo. A abordagem singular do autor derrama uma nova luz fascinante nos personagens e nos movimentos que continuam a inspirar debate a divisão através de todo espectro das igrejas e comunidades protestantes em todo o mundo.
LanguagePortuguês
Release dateMar 18, 2021
ISBN9786589767145
A revolução protestante: Uma provocante história do protestantismo contada desde o século 16 até os dias de hoje

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    A revolução protestante - Alister McGrath

    2006

    PARTE UM

    ORIGEM

    Papa Leão X com os cardeais Giulio de Médici (depois, papa Clemente VII) e Luigi de Rossi, pintado por Rafael (Rafael Sanzio, 1483-1520).

    1

    A TEMPESTADE SE AVIZINHA

    Poucos têm a habilidade de enxergar além do próprio horizonte na história. Quem imaginaria que, no apogeu da gentil e ensolarada Inglaterra eduardiana, a mais cruel e devastadora guerra que já afligiu a raça humana estava a menos de uma década de distância? Na época, havia pouca percepção de que uma tempestade se avizinhava, da permanência à beira de um precipício cataclísmico. A observação em retrospecto é invariavelmente infalível, permitindo que os observadores posteriores possam discernir as falhas geológicas, as tensões, as mudanças nas placas tectônicas da história, que pressagiam as ondas gigantescas que engolfariam nações e culturas. Contudo, na época, com frequência, essas coisas passam despercebidas; a importância delas só é avaliada depois do dilúvio.

    O tumulto da Reforma podia ser previsto? Podia ser adiado, talvez até mesmo desviado por meio de alguma tática habilidosa por parte da hierarquia da igreja? O que teria acontecido se o filho de Hans e Margarette Lutero tivesse morrido pouco depois de seu nascimento em novembro de 1483? Essas perguntas, embora ilustrativas e nada provocativas, não podem ser respondidas com segurança. No entanto, a história pode esperar alcançar, pelo menos, algum grau de entendimento e avaliação do que realmente aconteceu e, acima de tudo, de discernir por que o protesto aparentemente trivial de um acadêmico alemão desconhecido de uma das universidades mais insignificantes da Europa comprovou ser a faísca que provocou a conflagração que engolfou boa parte da igreja ocidental.

    A IGREJA E A ESTRUTURA SOCIAL DA EUROPA OCIDENTAL

    O impacto social, cultural e intelectual da Reforma protestante só pode ser totalmente apreendido por meio da avaliação do lugar ocupado pela igreja na Europa do final do período medieval. A igreja era um importante participante na política internacional e nos assuntos internos das regiões e estimulava um sentido de identidade na esfera das comunidades locais, além de fornecer aos indivíduos um senso de localização e de propósito no panorama abrangente das coisas.¹

    A igreja sempre teve um papel internacional importante na sociedade europeia. A Europa medieval tem pouca relação com sua contraparte moderna composta de nações-Estados individuais bem definidos.² Na Idade Média, a Europa consistia do agrupamento de geralmente pequenos principados, cidades-Estados e regiões, com frequência, definidos e compartilhando algum senso de identidade mais pela língua e pelos fatores históricos do que por algum senso comum de identidade política. No início do século 14, por exemplo, a Itália era pouco mais que uma colcha de retalhos de cidades-Estados independentes e pequenos principados. Estes foram consolidados em seis unidades políticas principais durante o século 15: os reinos de Nápoles e da Sicília, o Estado papal e as três principais cidades-Estados de Florença, Veneza e Milão. A moderna nação-Estado da Itália foi uma invenção do século 19. De forma bastante semelhante, a Alemanha, destinada a ter um papel particularmente relevante nos eventos da época, consistia de vários pequenos territórios.³ Até o século 19 ainda existiam 32 estados e territórios alemães que só foram finalmente reunidos no Império Alemão sob o governo de Otto von Bismarck (1815-98).

    A igreja era a única agência internacional a possuir alguma credibilidade ou influência relevante durante toda a Idade Média e na época do Renascimento. Ela tinha papel decisivo na resolução de disputas internacionais.⁴ Sob o comando de Inocêncio III (papa de 1198 a 1216), o papado medieval alcançou um grau de autoridade política na Europa Ocidental sem precedentes até aquela época.⁵ Foi dada justificação teológica a essa autoridade no decreto Sicut universitatis conditor, lançado em outubro de 1198, no qual Inocêncio III estabeleceu o princípio da subordinação do Estado à Igreja. O argumento dele para isso? Da mesma forma como Deus estabeleceu luminares maiores e menores no céu para governar o dia e a noite – referência ao sol e à lua – também Deus ordenou que o poder do papa excedesse o de qualquer monarca. "Da mesma maneira que a lua retira sua luz do sol, sendo inferior a ele em tamanho e qualidade, também o poder real deriva sua dignidade da autoridade pontifícia". Essa autoridade, com frequência, era reconhecida com grande relutância; todavia, não havia outra instituição na Europa Ocidental que chegasse remotamente perto da influência exercida pela Igreja.

    O poder tende a corromper as pessoas, como observou lorde Acton. Na época, muitos na igreja estavam preocupados com o grande poder e influência do papado e tentavam evitar que isso ficasse fora de controle. O movimento Conciliarista defendia que o poder eclesiástico devia ser descentralizado; em vez de estar concentrado nas mãos de um único indivíduo, o poder eclesiástico deveria ser distribuído no corpo da igreja como um todo e confiado a um grupo mais representativo ao qual tivesse obrigação de prestar contas – a saber, concílios gerais.⁶ Esse movimento atingiu o auge de sua influência nos séculos 14 e 15. Seu momento parecia ter chegado, quando surgiu uma crise no papado durante o século 14.

    Perto do final do século 14, os que acreditavam que a identidade da igreja era salvaguardada pela autoridade do papa viram-se em um dilema. Clemente V, irritado pelas tensões provocadas pelo partidarismo e pelas brigas internas entre algumas das importantes famílias romanas, decidiu mudar a corte papal de Roma para a cidade de Avignon, no sul da França. De 1309 a 1378, o papado sofreu esse exílio de Roma autoimposto – período ao qual o grande poeta Petrarca referiu-se como cativeiro babilônio do papado.⁷ Contudo, diversos fatores – incluindo a crescente interferência da política francesa nos assuntos papais e as tensões na Itália em consequência da ausência papal – levaram Gregório XI a decidir retornar a Roma em 1377.

    Entretanto, Gregório morreu pouco depois disso. Urbano VI, seu sucessor (1378-89), era impopular entre os cardeais franceses, que retornaram a Avignon e elegeram um papa rival, Clemente VII. Por mais de quatorze anos, houve dois pretendentes ao título papal na Europa, situação que causou confusão e enfraqueceu seriamente a autoridade da Igreja. A Inglaterra, a Alemanha, a Hungria, a maior parte da Itália, a Polônia e os países escandinavos apoiavam Urbano VI, em Roma; a França, a Escócia, a Espanha e o sul da Itália apoiavam o antipapa Clemente VII, em Avignon.

    Muitos personagens graduados da igreja chegaram serenamente à conclusão de que essas tensões não podiam continuar sem causar dano permanente para a igreja. O cisma foi finalmente resolvido pelo Concílio de Pisa (1409) e de Constança (1414-18). Em vista de haver três sérios candidatos ao papado e de não haver um meio alternativo óbvio de resolver a questão, o Concílio de Constança elegeu Martinho V para papa em 1417. Terminara assim o Grande Cisma. Desse ponto em diante, haveria apenas um papa localizado em Roma. Todavia, o papel do Concílio de eleger o novo papa e de terminar com o cisma introduziu novas incertezas na compreensão católica medieval de autoridade na igreja. Isso não queria dizer que os Concílios tinham autoridade sobre o papa? Parecia que as regras do jogo tinham mudado.

    Todavia, em décadas, o equilíbrio do poder tinha mudado mais uma vez em direção ao papado. O Conciliarismo pode ter permanecido uma aspiração de muitos no início do século 16, mas já não era visto como uma opção política séria.⁸ Embora o Conciliarismo possa ser interpretado como uma evidência da crise de autoridade – e, por conseguinte, de enfraquecimento – na igreja do final do período medieval, pode igualmente ser visto como verificação das opções de reforma que tendiam a fortalecer a igreja quando emergiu do período transicional de dificuldade após o Grande Cisma.

    Na esfera local, a igreja fornecia um foco de identidade social e desempenhava a função de cuidado pastoral. O sacerdote local, com frequência, era a única pessoa com alguma instrução na vizinhança. Muitas igrejas eram adornadas com afrescos, ilustrando episódios-chave da vida de Cristo ou oferecendo visões do céu ou do julgamento para lembrar ao fiel de sua prestação de contas final. A igreja local fornecia estabilidade social ao mesmo tempo em que capacitava os indivíduos a se localizarem em termos da grande narrativa da criação, da queda, da redenção e do julgamento final que repousam no cerne da fé cristã. Os rituais de batismo, de casamento e de funeral eram todos sinalizadores ao longo da jornada de vida aos quais a igreja ligava a vida, as esperanças e os temores de seus membros.

    Em toda a Europa medieval era dada séria atenção para garantir que as ideias e ritos centrais da igreja estivessem ligados com as pessoas comuns. O famoso ciclo de York de peças de mistério pode ser entendido como um instrumento deliberado de educação religiosa por parte de uma instituição clerical pró-ativa durante o período de 1360 a 1420.⁹ Sociólogos do conhecimento argumentam que em toda sociedade humana há o que Peter Berger chama de estrutura de plausibilidade, ou seja, uma estrutura de suposições e práticas, reforçada pelas instituições e ações, que determina que as crenças são convincentes. Isso não deve ser confundido com o puro idealismo de uma visão de mundo. Berger está se referindo a uma estrutura que é construída socialmente, mediada e apoiada pelas estruturas sociais.¹⁰ Na Idade Média, a mais importante realidade social era a igreja e seus ritos, do batismo ao casamento e ao funeral, a igreja mediava e afirmava uma percepção de realidade.

    A igreja não era uma noção teológica abstrata nem uma instituição social periférica; ela esteve no centro da vida social, espiritual e intelectual da Europa Ocidental por toda a Idade Média e na época do Renascimento. A antiga perspectiva, que via o Renascimento como um intervalo entre a era de fé medieval e as incontroláveis paixões religiosas desencadeadas pela Reforma, nunca fez de fato muito sentido e é dolorosamente difícil de sustentar com base na evidência.¹¹ A esperança de salvação do indivíduo repousava em ser parte da comunidade de santos, cuja expressão visível era a instituição da igreja. A igreja não podia ser ignorada nem marginalizada em nenhum relato de redenção; conforme Cipriano de Cartago argumentou de forma tão convincente no século 3, não havia salvação fora da igreja. Esse era um ponto expresso de forma tangível e reforçado na arquitetura das igrejas.

    Uma excelente ilustração desse ponto é a igreja de St. Marcel les Sauzes do convento beneditino francês, fundada em 985 e extensivamente desenvolvida durante o século 20.¹² Acima da porta principal há uma inscrição com os seguintes dizeres: Você que está entrando, que vem chorar por seus pecados me atravesse, uma vez que sou a porta da vida. Você que está passando, vocês que estão chegando para chorar pelos seus pecados, passem por mim, pois eu sou a porta da vida. Os que buscavam o consolo do céu ou o perdão dos pecados não podiam garantir esses benefícios sem a intervenção e a interposição da instituição da igreja e de seus ministros autorizados.¹³ A salvação fora institucionalizada.

    TENSÕES E ANSIEDADES NO CRISTIANISMO OCIDENTAL

    Por volta do final do século 15, para muitos, a posição da igreja na sociedade ocidental parecia uma estrutura permanente em um mundo estável. Contudo, todo esse modo de ver o mundo estava para sofrer uma mudança radical. Novas forças sociais e intelectuais começaram a desestabilizar suas fundações e a oferecer alternativas. Aumentou a pressão por reforma. Em parte, isso refletia o abuso e a corrupção na igreja, em parte, refletia também uma confiança cada vez maior por parte do clero – e de modo crescente dos leigos – de expressar suas queixas e ser ouvido.

    Não é difícil enumerar os muitos abusos e corrupções que nublavam a história da igreja no final do período medieval. Havia muito a criticar, do papa ao membro mais humilde do clero. O papado renascentista foi muitíssimo criticado por seus excessos financeiros e preocupação com posição social e poder político. O papa Alexandre VI, membro da família Bórgia (talvez lembrado principalmente por seu banquete letal), conseguiu comprar sua vitória para o papado em 1492 a despeito de ser fato conhecido de todos que ele tinha diversas amantes e, pelo menos, sete filhos ilegítimos.¹⁴ Nicolau Maquiavel, grande teorista do poder absoluto, atribui a imoralidade de sua época ao escandaloso exemplo do papado.

    É fácil encontrar muito o que criticar entre os clérigos graduados da época cuja designação, com frequência, devia-se à influência da família, à fortuna e ao poder, e não a algum mérito por parte deles. Em 1451, o duque Amadeu VIII de Savoia garantiu a designação de seu filho para a posição de bispo da cidade de Genebra, mencionada mais tarde por sua associação com João Calvino. A designação não foi um grande sucesso. Mas o que se poderia esperar de um menino de oito anos? Em muitas regiões da França, os clérigos graduados eram geralmente nobres estrangeiros, com frequência, impostos à diocese por apadrinhamento real. Esses clérigos, raramente residentes dentro de sua diocese, encaravam suas obrigações espirituais e temporais como pouco mais que uma fonte de renda imerecida, útil para favorecer suas ambições políticas em outros lugares. Na França, Antoine du Prat (1463-1535), arcebispo de Sens, estava tão preocupado com os negócios públicos que só encontrou tempo para comparecer a um culto em sua catedral. Este, bastante apropriado, foi o seu funeral.

    O baixo clero, com frequência, era alvo de duras críticas.¹⁵ Os monastérios eram normalmente descritos como antros infestados de atividade homossexual. A baixa qualidade do clero paroquial refletia basicamente a baixa posição social dos clérigos: no início do século 16, os capelães de Milão recebiam menos do que trabalhadores não qualificados. Muitos recorriam ao comércio de cavalo e gado a fim de complementar sua renda. O analfabetismo predominava entre os clérigos. Como muitos deles decoravam as palavras latinas usadas na missa ensinadas por colegas mais velhos, eles eram conhecidos por cometer erros conforme o tempo passava e a memória falhava. À medida que o grau de leigos alfabetizados aumentava no final do século 15, os leigos tornaram-se cada vez mais críticos de seus clérigos. Um proprietário de terras inglês do início do século 16 reclamou que ouviu distintamente seu sacerdote local usar o caso acusativo quando estava evidente que a frase exigia o ablativo. Muitos leigos instruídos ressentiam-se com a distinção entre a ordem sagrada e a secular, um indício de que os clérigos desfrutavam de um relacionamento mais próximo com Deus do que eles.

    Como era de se esperar, parte da hostilidade em relação ao clero era reflexo da incompetência deles, e parte, dos privilégios que eles desfrutavam. A redução do imposto da qual o clero desfrutava era fonte de particular irritação, em especial em épocas de dificuldades econômicas. Na diocese francesa de Meaux, que se tornaria um centro das atividades reformistas no período de 1521 a 1546, o clero era isento de todas as formas de taxação, provocando considerável ressentimento nos habitantes. Na diocese de Rouen, houve clamor popular contra o lucro repentino apurado pela igreja com a venda de grãos em um período de severa escassez.

    No entanto, é importante não exagerar a extensão desse anticlericalismo. Embora tenha havido áreas em que, sem dúvida, essa hostilidade era particularmente acentuada – nas cidades, por exemplo – o clero, com frequência, era valorizado e respeitado. Nas áreas rurais, em que o número de leigos alfabetizados era baixo, os clérigos permaneciam os membros mais instruídos da comunidade local. Mais importante é que muitos dos monastérios da Europa eram respeitados por conta de seu envolvimento social e de suas relevantes contribuições para a economia local. Não obstante, quando tudo isso é levado em consideração, permanecia um murmúrio de descontentamento, muitas vezes expresso no que é conhecido como literatura de insatisfação.

    Subjacente a essa crítica estava acontecendo uma relevante mudança entre os leigos. Embora o século 15 fosse visto como um período de degeneração religiosa por uma geração anterior de historiadores, uma pesquisa mais recente derrubou decididamente esse veredicto.¹⁶ No final desse período, às vésperas da Reforma, talvez a religião estivesse mais firmemente enraizada na experiência e na vida das pessoas comuns que em qualquer outra época do passado. O início do cristianismo medieval era principalmente monástico, cujo foco era a vida, a adoração e os escritos dos monastérios e conventos europeus. No final do século 15, floresceram os programas de construção de igrejas, bem como as peregrinações e a moda de colecionar relíquias. Este século é mencionado como o período de ascensão da literatura mística, refletindo o aumento do interesse popular pela religião. O século 15 testemunhou a expansão da aprovação do povo das crenças e práticas religiosas, nem sempre em formas ortodoxas.

    O fenômeno da religião popular, com frequência, carrega uma relação tangencial com as mais precisas, porém abstratas, afirmações da doutrina cristã que a igreja prefere – mas que muitos consideram ininteligíveis ou não atrativas. Em partes da Europa, surgiu algo próximo de cultos da fertilidade ligados e emaranhados com os padrões e as preocupações da vida diária.¹⁷ As atividades agrárias das comunidades rurais – como produção de feno e colheita – estavam firmemente associadas com a religião popular. Por isso, no início do século 16, na diocese de Meaux, os santos eram regularmente invocados a fim de impedir doenças em animais e crianças, pragas e problemas na vista, além de assegurar que as jovens arrumassem marido apropriado. A ligação direta entre a religião e a vida diária era tomada como garantida. O espiritual e o material estavam interligados em todas as esferas.

    Esse crescente interesse popular na religião levou à crítica secular da igreja institucional a qual, conforme se percebia, ficava aquém de suas obrigações. Não obstante, essa crítica refletia um novo interesse na religião, interesse esse fruto de reflexão, ao passo que, no passado, a laicidade fora um tanto acrítica. Os cristãos tornaram-se insatisfeitos com a abordagem de sua fé, que enfatizava seus aspectos puramente exteriores – como apenas ir à igreja. Eles exigiam uma forma de cristianismo que fosse relevante para a experiência pessoal deles e seu mundo privado, capaz de ser adaptado ou controlado para satisfazer suas necessidades pessoais. Se fosse algo, a adaptação, e não a reforma, parecia ser a principal preocupação do leigo articulado. Não só as pessoas estavam mais interessadas em sua fé, mas também a quantidade de leigos alfabetizados aumentou, capacitando-os a ser mais críticos e a estar mais bem informados a respeito do que acreditavam e do que esperavam de seus clérigos. Estudos de inventários de bibliotecas pessoais da época mostram um crescente apetite por leitura espiritual. Com o advento da impressão, os livros ficaram mais disponíveis e, agora, tornaram-se acessíveis a uma classe média economicamente habilitada. Livros devocionais, coletâneas de sermões, o tradicional livro das horas e o Novo Testamento aparecem com proeminência nesses inventários.¹⁸ Os leigos começavam a pensar por si mesmos e já não se consideravam mais covardemente subservientes ao clero em assuntos de educação cristã.

    Constatamos a importância desse ponto a partir da história de uma das obras mais importantes do início do século 16, Handbook of the Christian Soldier (Manual do soldado cristão), de Erasmo de Roterdã, publicada pela primeira vez em 1503.¹⁹ A obra exerceu uma poderosa atração sobre os leigos, homens e mulheres instruídos, a ponto de Erasmo considerá-la como o recurso mais importante da igreja. Erasmo argumentava que o futuro da igreja repousava no surgimento de uma laicidade biblicamente letrada, a qual o clero tinha que respeitar e recorrer como um recurso. A ascendente popularidade da obra, principalmente no final da década de 1510, sugere que estava acontecendo uma mudança radical na autopercepção da laicidade. A obra foi traduzida para o inglês em 1520, por William Tyndale, durante seu período como tutor dos filhos de Sir John Walsh em Little Sodbury, Gloucestershire.²⁰

    O sucesso de Erasmo também ressalta a importância da imprensa como um meio para disseminar novas ideias radicais, ponto que Martinho Lutero dificilmente negligenciaria quando chegasse a sua vez de propagar suas ideias. O mundo acadêmico recente enfatiza o papel crítico da nova tecnologia de tipografia reutilizável na disseminação de novas ideias através da Europa, quer essas ideias sejam protestantes, quer sejam humanistas.²¹ Sem o advento da imprensa, não teria havido Reforma e pode muito bem ser que também não houvesse protestantismo.

    Contudo, por mais importantes que esses desenvolvimentos tenham sido em si mesmos e por si mesmos, eles não explicam de forma adequada o surgimento do protestantismo e menos ainda necessariamente o envolvem. Na época, a reforma completa exigida por muitos poderia facilmente assumir a forma de revisão interna dos ensinamentos e das práticas da igreja, não distinta das grandes reformas gregorianas realizadas no século 11.²² A questão-chave é por que e como esse grupo de movimentos, trabalhando por renovação e reforma na igreja, veio a se cristalizar como uma entidade externa às estruturas da igreja da época e como ela conseguiu sobreviver.

    Cada um dos pontos de dificuldade mencionados aqui poderiam ter sido tratados e possivelmente resolvidos, por um processo gradual de reavaliação e de reforma na igreja semelhante ao programa introduzido em Castela, Espanha, na década de 1480, pelo franciscano habitante do reino, Francisco Jiménez de Cisneros (1436-1517), que transformou radicalmente a igreja espanhola durante essa época de transição. Cisneros é amplamente tido como a pessoa que estabeleceu o fundamento para o papel predominante exercido pela igreja espanhola na Idade de Ouro da Espanha no século 16 e início do 17.²³

    Muitas das medidas reformistas de Cisneros foram postas em prática depois que ele se tornou arcebispo de Toledo, em 1495. Ele, embora tivesse quase sessenta anos na época, passou o resto de sua vida reformando a igreja, encorajando o aprendizado e o reavivamento das vocações religiosas, além de manter uma política espanhola de união em uma época de mudanças rápidas e potencial instabilidade. A Universidade de Alcalá e a Poliglota Complutense (primeira versão poliglota da Bíblia) talvez sejam os resultados mais tangíveis das reformas educacionais de Cisneros. Essas reformas não foram totalmente bem-sucedidas e levaram muito tempo para criar raízes. Não obstante, elas indicam a capacidade da igreja de se transformar em resposta aos grandes desafios enfrentados pela Espanha naquela época – mais notavelmente após a nova cristianização final da Espanha que se seguiu à derrota dos invasores islâmicos no norte da África.²⁴

    Pode-se identificar um padrão similar em outros lugares da Europa. Por volta de 1170, surgiu um movimento relevante de reforma no sul da França como resultado da atividade de um próspero comerciante de Lyon chamado Valdes.²⁵ Este embarcou em um ministério de reforma baseado na leitura literal da Bíblia, em especial, das injunções para a pobreza e da pregação biblicamente baseada no vernáculo. Esse ethos contrastava de forma contundente com a moralidade um tanto vaga do clero da época e angariou considerável apoio no sul da França e na Lombardia. O movimento, embora perseguido durante a Idade Média, sobreviveu e aliou-se à Reforma protestante em 1532. O movimento valdense representa um importante elo histórico entre os primeiros movimentos reformistas medievais, que tinham programas predominantemente morais e fundamento bíblico, e a Reforma. Contudo, permanece o fato de que, até 1532, esse movimento viu-se tão firmemente integrado dentro da igreja católica, a despeito da hostilidade oficial da igreja em relação aos valores e aos programas do movimento.

    Na Itália, o movimento, muitas vezes conhecido como evangelicalismo católico ou evangelismo com sua ênfase na fé pessoal assimilada, tornou-se firmemente estabelecido na igreja, até mesmo penetrando profundamente na hierarquia dessa instituição, não sendo visto de forma alguma como herético, dissidente nem mesmo problemático.²⁶ Pipocaram iniciativas locais por reforma e renovação em toda a igreja ocidental, mesmo que lhes faltasse coordenação central e encorajamento que pudesse ter transformado a igreja da Europa Ocidental.

    Nesta seção, comentamos algumas das falhas, dos resultados e dos abusos associados à igreja medieval. Pode-se acrescentar outros sem nenhuma dificuldade. A tarefa seria, às vezes, divertida, outras, deprimente e, de vez em quando, até mesmo esclarecedora. Contudo, essas falhas não equivalem ao retrato de uma instituição dissolvida, em crise ou até mesmo em séria dificuldade. Esses resultados, devemos dizer com pesar, são aborrecimentos rotineiros em muitas instituições ocasionalmente disfuncionais, quer seja a igreja medieval, quer sejam as modernas corporações multinacionais, quer seja a presidência dos Estados Unidos da América.

    Embora o empreendimento de buscar as causas do surgimento do protestantismo como um todo, seja em si mesmo tão problemático como definir o que era de fato o protestantismo. Fica claro que, para entender seu surgimento nessa época, precisamos ir muito mais fundo que enumerar os resultados da igreja. Essa lista não pode fornecer um relato adequado do por quê do surgimento do protestantismo, muito menos do por quê esse desenvolvimento aconteceu naquele momento específico da história, e não em outro. As raízes do movimento devem repousar mais fundo que as consequências morais que são comprovadamente uma característica perene de qualquer instituição ao longo de um grande período de tempo.

    Embora, em última instância, nenhuma explicação seja totalmente satisfatória, talvez o relato mais convincente da origem do protestantismo aponte para uma dupla mudança ocorrida naquela época na cultura ocidental concernente aos valores e às ideias, de um lado, e às aspirações pessoais e sociais, de outro lado. As placas tectônicas, até aqui estáticas e estáveis, estavam se deslocando na academia e na sociedade, provocando falhas e fissuras que ameaçavam em grau mais profundo a antiga ordem eclesiástica do que qualquer outro fator em meados do milênio anterior. O advento da imprensa permitiu o descontentamento com os paradigmas existentes e o entusiasmo por uma alternativa para difundir ideias com rapidez sem precedentes.

    Primeiro, devemos examinar o tumulto intelectual que estava acontecendo naquela época e levantando dificuldades fundamentais para as crenças católicas tradicionais. Uma coisa seria sugerir que a igreja se metera em uma confusão; outra coisa bem diferente seria sugerir que algumas ideias fundamentais da igreja podiam ter origem em interpretações errôneas da Bíblia, precisando, assim, serem revistas e, possivelmente, rejeitadas. Para entender essa proveitosa revolução no mundo das ideias, precisamos examinar o nascimento do Humanismo na época do Renascimento e suas implicações para a transformação do cristianismo. As ideias têm o poder de mudar a sociedade; o Renascimento colocou em movimento uma mudança no mundo das ideias que logo se refletiria no mundo mais abrangente da realidade social.

    Também precisamos avaliar um segundo fator: as profundas mudanças culturais que estavam acontecendo, por volta do alvorecer do século 16, que levaram muitos a desejar romper com a tradição do passado e viam a igreja medieval impedindo essa mudança. A mudança estava no ar: os indivíduos sentiam que podiam ter às mãos esse meio alternativo de autorrealização, e as comunidades ansiavam por mais autonomia e menos interferência das fontes tradicionais de autoridade – como a igreja. Os paradoxos e as aparentes contradições das atitudes do fim da época medieval em relação à igreja podiam ser resolvidos até certo ponto ao notar que a igreja e seus agentes eram valorizados quando protegiam, encorajavam ou afirmavam a realização pessoal ou comunitária, e eram malquistos quando tentavam impor a autoridade da igreja ou apoiar a autoridade de clientes impopulares.

    Voltamo-nos imediatamente ao exame do primeiro desses fatores – o surgimento do novo aprendizado que provou ser um catalisador formidável para a mudança dessa época.

    HUMANISMO RENASCENTISTA E O NOVO APRENDIZADO

    O cristianismo é uma realidade complexa e com muitas camadas. Conforme observamos, críticas específicas foram elevadas à esfera institucional no final do período medieval, incluindo a moral questionável do papado, a ausência de bispos seniores da própria diocese e a baixa qualidade do clero paroquial local. Tudo isso podia ser remediado sem muita dificuldade por meio de adoção de medidas adequadas. Contudo, o que fazer se a crítica fosse dirigida à esfera mais fundamental – às ideias sobre as quais, em última instância, as instituições da igreja eram fundamentadas?

    No caso do cristianismo, as ideias em questão derivam da Bíblia. Como em relação a todo texto religioso clássico, três questões fundamentais surgem em relação a sua aplicação: qual é a forma mais autêntica desse texto ser determinado? Como ele tem que ser traduzido? E como ele tem que ser interpretado?²⁷

    Por volta do final do século 12, todas essas três questões pareciam ter sido resolvidas.²⁸ A questão do cânon bíblico fora acertada sete séculos antes e não era vista como particularmente problemática. Houve um debate menor, nunca visto como especialmente relevante, a respeito da posição de alguns livros do Antigo Testamento que apareciam na versão grega do Antigo Testamento (a Septuaginta), mas não nas versões hebraicas. Era sabido que houvera alguma corrupção de dados na transmissão da tradução padrão latina da Bíblia (ponto que será discutido depois) – mas acreditava-se amplamente que a edição da Bíblia do século 13, chamada Paris, eliminara a maioria das falhas. Assim, parecia haver concordância em relação ao texto básico da Bíblia.

    A questão da tradução também parecia resolvida. O latim emergia como a língua franca do Ocidente, no que dizia respeito à igreja e às universidades, e foi considerado totalmente adequado que uma tradução latina da Bíblia fosse tida como definitiva. Essa tradução, muitas vezes mencionada como a Vulgata, remonta à época da igreja primitiva, particularmente ao grande estudioso bíblico Jerônimo. A editio vulgata (versão comum) de Jerônimo, de texto latino, substituiu as antigas traduções e passou a ser considerada como a tradução oficial dos textos hebraicos, aramaicos e gregos originais. Quando os escritores cristãos ocidentais do período medieval falam sobre a Bíblia ou Sagrada Escritura, estão se referindo à tradução conhecida por Vulgata.

    A questão sobre como a Bíblia tinha de ser interpretada mostrou ser um pouco mais problemática. Os primeiros teólogos medievais – como Pedro Abelardo – estavam bem certos de que algumas passagens tinham sido interpretadas de forma diferente no passado e que continuavam a ter muita discordância no presente. A questão foi parcialmente resolvida por meio do desenvolvimento de determinadas regras para a interpretação da Bíblia. Uma das regras mais importantes era conhecida como Quadriga ou o quádruplo sentido da Escritura. Essa abordagem sustenta que a Bíblia pode ser lida em quatro níveis diferentes: literal (o nível mais básico), alegórico (no qual o texto era interpretado do ponto de vista doutrinal), tropológico (no qual o texto era interpretado moralmente) e anagógico (no qual o texto era interpretado como relacionado com a esperança cristã). Com a aplicação deste método, um grau de consenso emergiu sobre a forma como os textos deviam ser interpretados.

    Embora o problema da interpretação bíblica não fosse irrelevante para o cristianismo medieval, a extensão de quaisquer dificuldades ficou limitada ao consenso emergente de que a igreja mesma é a intérprete máxima da Bíblia. Desse ponto de vista, Deus tinha, providencialmente, dotado a igreja com a capacidade e a autoridade para interpretar a Bíblia e, assim, evitar confusões em assuntos de doutrina e moral. Houve alguns debates relevantes sobre exatamente em quem residia essa autoridade na igreja: no próprio papa? Ou no conselho dos principais cardeais e teólogos? Contudo, o princípio geral da orientação divina da igreja na verdade foi firmemente estabelecido, mesmo que ocasionalmente tênues detalhes permanecessem confusos.

    Tudo isso estava mergulhado em confusão por causa do novo interesse na Bíblia resultante do surgimento do humanismo. É fácil interpretar erroneamente o termo humanismo. No século 21, o termo, com frequência, é usado com o sentido de algo como ateísmo ou secularismo e para identificar a visão de mundo que exclui a crença no divino – ou, pelo menos, a referência a ele. Na época do Renascimento, a palavra tinha uma conotação muito distinta. O Renascimento foi um período notável de recuperação cultural que começou na Itália, no século 14, e espalhou-se gradualmente por boa parte da Europa e atingiu o auge de sua influência na década de 1500. O tema central do Renascimento era que a cultura de hoje podia ser renovada por meio do envolvimento criativo com o legado do passado, acima de tudo a herança das antigas Grécia e Roma.²⁹

    Pode-se pensar no humanismo como a visão de mundo que fundamenta o Renascimento. Ele é mais bem entendido como a busca pela eloquência e excelência culturais enraizadas na crença de que os melhores modelos estão nas civilizações clássicas de Roma e de Atenas. Seu método básico pode ser resumido na expressão latina ad fontes, que pode ser parafraseada como de volta às origens! O riacho é mais puro na nascente, onde se origina. Os humanistas argumentavam em favor de passar ao largo das Idades Médias – a propósito, essa expressão reveladora, de criação humanista, destinava-se a depreciar esse irritante interlúdio histórico entre as glórias do mundo antigo e sua renovação no Renascimento – a fim de permitir que o presente seja renovado e revigorado, bebendo profundamente no manancial da Antiguidade. Os efeitos desse programa podem ser vistos em uma impressionante variedade de esferas. Passou-se a dar preferência aos estilos arquitetônicos clássicos, em vez do prevalente estilo gótico. O estilo elegante do latim de Cícero substituiu o latim, antes, mecânico e grosseiro usado pelos escritores escolásticos. A lei romana e a filosofia grega eram estudadas com paixão nas universidades. Em todos os casos, pode-se ver o mesmo princípio básico em operação: a principal fonte da cultura ocidental tinha a capacidade de se renovar e se redirecionar quando ficava desgastada, exaurida e sem rumo.

    A maioria dos humanistas da época – como o grande Erasmo de Roterdã – eram cristãos preocupados com a renovação e a reforma da igreja. Portanto, por que não aplicar o mesmo método de renascimento para o cristianismo? Por que não retornar ad fontes – às fontes originais da fé – e permitir que elas revigorassem uma igreja desiludida e debilitada? A vitalidade e a simplicidade da era apostólica podiam ser recuperadas? Era uma perspectiva poderosa e inspiradora, e ela cativou a imaginação de muitos leigos do século 15 e início do 16.

    Mas como isso tinha de ser feito? Qual era o análogo religioso à cultura no mundo clássico? Qual era a fonte original do cristianismo? Os humanistas cristãos tinham pouca dúvida: a Bíblia, especialmente o Novo Testamento. Essa era a fonte derradeira da fé. Os escritos dos teólogos medievais podiam ser agrupados com muita facilidade de um lado a fim de permitir a junção direta com as ideias do Novo Testamento. As interpretações da Bíblia seguras e familiares encontradas na teologia escolástica, do ponto de vista eclesiástico, poderiam ser marginalizadas em favor da leitura diretamente do texto. Para os homens conservadores da igreja, esse era um movimento perigoso e ameaçador que tinha potencial para desestabilizar o delicado equilíbrio teológico alcançado ao longo de muitos séculos.³⁰ A exigência humanista de retorno à Bíblia mostrou ser um chamado muito mais radical do que muitos homens seniores da igreja podiam digerir.

    Os humanistas eram principalmente estudiosos – homens de letras que insistiam em que esse retorno sistemático à Bíblia devia ser feito com base no melhor estudo acadêmico possível. O verdadeiro conteúdo da Bíblia devia ser estabelecido por meio dos métodos textuais mais confiáveis, e a Bíblia devia ser lida em suas línguas originais. Imediatamente, a autoridade da tradução latina Vulgata ficou sob ameaça. Os estudiosos humanistas começaram a examinar a história do texto em detalhes e os problemas, então, começaram a surgir. Questões de exame profundo impuseram-se cada vez com mais vigor em relação à integridade textual e à confiabilidade filológica da Vulgata. À medida que o texto da Vulgata era meticulosamente comparado com os manuscritos gregos, erros começaram a ser percebidos. Leituras divergentes foram identificadas. Em 1516, o próprio Erasmo produziu uma edição do texto grego do Novo Testamento que causou bastante rebuliço. Embora a edição tivesse muitas falhas, ela causou muitas mudanças de atitude ao contestar o verdadeiro texto da Bíblia Vulgata em diversos pontos. Para apresentar a questão da forma mais simples possível: se Erasmo estivesse certo, determinadas instruções que as gerações anteriores aceitaram como bíblicas podiam não fazer parte do texto original do Novo Testamento. O que, muitos se perguntavam, isso representava para as doutrinas da igreja baseadas nessas instruções?

    Um texto usado muitas vezes pelos teólogos medievais para defender a doutrina da Trindade é de especial interesse: "Pois há três que dão testemunho no céu: o Pai, a Palavra e o Espírito Santo; e estes três são um. E três são os que testificam na terra: o Espírito, a água e o sangue, e os três são unânimes num só propósito (1Jo 5.7-8; ARA). Erasmo mencionou que as palavras o Pai, a Palavra e o Espírito Santo; e estes três são um. E três são os que testificam na terra não aparecem em nenhum manuscrito grego. Elas foram acrescentadas posteriormente na versão latina Vulgata, provavelmente depois de 800, apesar de não estarem em nenhuma versão grega antiga. O mais provável é que essas palavras tenham sido acrescentadas inicialmente como uma nota extra" (um breve comentário posto ao lado ou acima do texto) e que um escrivão posterior assumiu que fizessem parte do texto mesmo e, por isso, incluiu-as nos textos latinos posteriores sem saber que elas não faziam parte do texto grego original do Novo Testamento.³¹ Se essa passagem fosse declarada não bíblica, a doutrina da Trindade, uma das mais difíceis doutrinas cristãs, poderia ficar perigosamente vulnerável.

    A exigência de que a Bíblia fosse lida em suas línguas originais encontrou grande aceitação em toda a Europa Ocidental. Os que queriam promover os ideais do Renascimento ajudaram a ser trium linguarum gnarus – ou seja, competente em grego, hebraico e latim. Isso levou à fundação de faculdades que ensinassem as três línguas ou, em alguns casos, de uma cátedra das três línguas, por exemplo, nas universidades de Alcalá, na Espanha (1499), de Wittenberg, na Alemanha (1502), de Oxford, na Inglaterra (Faculdade Corpus Christi, 1517), de Louvain, na Bélgica moderna (1517) e do real Collège de France, em Paris (1530).³²

    Isso não foi muito antes que a ameaça da descoberta de possíveis erros sérios de tradução na Vulgata forçasse a revisão dos ensinamentos existentes da igreja. Erasmo apontou alguns desses erros em 1516. Um excelente exemplo encontrado na tradução Vulgata está nas palavras iniciais do ministério de Jesus na Galileia: Façam penitência, pois o Reino dos céus está próximo. Essa tradução cria uma ligação direta entre a vinda do Reino de Deus e o sacramento da penitência. Erasmo indicou que o texto original devia ser traduzido por: Arrependam-se, pois o Reino dos céus está próximo (Mt 4.17; NVI). No ponto em que a Vulgata parecia se referir a uma prática exterior (o sacramento da penitência), Erasmo insistia que a referência era a uma atitude psicológica interior – de estar arrependido.

    Contudo, provou-se ser mais uma percepção humanista do estudo bíblico que a necessidade de melhores traduções. Na década de 1510, o surgimento do novo aprendizado promoveu uma percepção alternativa de autoridade interpretativa – a da comunidade acadêmica, em vez daquela da igreja. A academia já detinha a chave para a reconstrução do texto bíblico e sua tradução no vernáculo. Era um pequeno passo reivindicar o direito de interpretar o texto usando as novas técnicas de hermenêutica do Renascimento que surgiam na época.³³

    Sem o Humanismo, não teria havido Reforma. Esse lema repetido com frequência apresenta o ponto de que o surgimento do humanismo forçou um programa de reforma mais radical sobre a igreja do que fora previsto. Embora muitos acreditassem que havia necessidade urgente de eliminar o abuso, de simplificar as estruturas e de aumentar o grau de instrução na igreja, outros começavam, agora, a sugerir a necessidade de outra classe de revisão. Pelo menos alguns ensinamentos da igreja deviam se basear em fundações bíblicas menos que adequadas. As pessoas estavam bem acostumadas a se queixar das muitas falhas morais e espirituais da igreja; porém, isso era algo novo e ameaçava provocar debates e desenvolvimentos profundamente perturbadores e sem precedentes no cristianismo ocidental.

    Quando esse chamado por reforma da igreja se ligou à nova compreensão de humanidade por emergir por volta dessa época, o resultado foi uma mistura explosiva.

    O PODER DE MUDAR AS COISAS: A NOVA CONCEPÇÃO DE HUMANIDADE

    Conforme observamos, o Renascimento encorajou um novo grau de envolvimento com os recursos fundamentais da cultura, estimulando renovação social e intelectual com base nos modelos clássicos – incluindo o Novo Testamento. Todavia, o Renascimento também testemunhou o surgimento de uma nova concepção de humanidade com uma compreensão radicalmente modificada de seu lugar no cosmos. Para examinar esse assunto, também avaliaremos o famoso manifesto do Renascimento (1486), que repercutiu em boa parte da Europa.

    Giovanni Pico della Mirandola (1463-94), uma das principais vozes do Renascimento italiano, publicou sua preciosa oração sobre a dignidade da humanidade aos 24 anos, em 1846. Esse Manifesto, escrito em latim altamente refinado e elegante, descreve o homem como uma criatura com capacidade para determinar sua própria identidade, em vez de ser compelido a recebê-la de alguma forma fixa predeterminada. A criatura humana não possui imagem determinada e é incitada por seu criador a buscar sua própria perfeição. Deus, o criador da humanidade, é retratado mandando-a modelar seu próprio destino: Você não está preso por nenhum limite e deve determinar os limites de sua natureza por si mesmo de acordo com seu livre-arbítrio, em cuja mão pusemos você.

    As ideias desse discurso provaram exercer enorme influência no final da Renascença e, em longo prazo, podem ser vistas como estabelecendo o cenário para a afirmação iluminista da autonomia do homem no século 18.³⁴ No entanto, em curto prazo, elas estimularam uma nova compreensão da natureza e das capacidades do homem. Não havia uma ordem fixa de coisas, tudo podia ser mudado. Deus mandara a humanidade mudar o mundo social e físico.³⁵ Essa nova percepção da humanidade como agente de Deus para mudar o mundo habilitou muitos que se sentiam chamados a transformar a sociedade.

    Todavia, a igreja medieval era vista como muitíssimo conservadora, emprestando apoio teológico para a ordem social existente. Defendia-se, sancionado pela ordem divina, que a ordem social e a física eram fixas e permanentes. A autoridade tradicional das famílias, dos monarcas e dos principados influentes não devia ser desafiada. Isso era uma fonte de frustração para a classe média empresarial que era detida pela opressiva força da tradição. Uma teologia religiosa que legitimasse a mudança, ou talvez até mesmo a encorajasse, poderia enfraquecer essa visão de mundo estática e abrir caminho para uma alternativa dinâmica.

    Defende-se amplamente que o surgimento do protestantismo está ligado com a transição entre a noção medieval de uma ordem mundana fundamentada em uma ordem imaginada natural e divina e a noção moderna de uma ordem fundamentada na aceitação, até mesmo no encorajamento, da mudança como meio de buscar o bem.³⁶ A visão de mundo medieval era estática: a posição na sociedade era determinada com base no nascimento e na tradição e não era possível alterar essa situação. No final do século 15, desenvolveu-se uma teologia de transição; ela defendia que o indivíduo podia determinar sua posição e condição sociais por seu próprio esforço; ele não estava preso por sua origem ou circunstância social e podia melhorá-las. Para uma emergente classe social empresarial, até aqui frustrada pela incapacidade de fazer progresso relevante em uma sociedade dominada pela tradição e pelos laços familiares, a doutrina da mutabilidade fundamental das ordens sociais existentes abria novas possibilidades estimulantes.

    A demanda por mudança social começou a aumentar rapidamente por volta de 1500, especialmente nas cidades. O aparecimento de uma classe comercial em cidades, como Zurique, representou um desafio para o poder e a influência das famílias aristocráticas tradicionais. Na última década do século 15, Zurique substituiu o antigo governo patrício pelo Grande Conselho, com cerca de duzentos representantes, escolhidos pelas associações comerciais para governar a vida toda, e pelo Pequeno Conselho, formado por cinquenta representantes selecionados pelo Grande Conselho e pelas associações. Surgiu uma expectativa de mudança e de melhora à medida que, nessa época, outras cidades vizinhas adotaram um padrão similar.

    Contudo, não se fez muito quanto à motivação religiosa para levar os leigos a se envolverem ativamente em assuntos do mundo, dos negócios ou de ação social. A igreja fora lenta em se adaptar à nova realidade econômica das cidades e tinha pouco estímulo a oferecer para indivíduos empreendedores.³⁷ Não obstante, o protestantismo podia oferecer uma estrutura teológica que mudaria radicalmente a percepção de si mesmo desses indivíduos. A doutrina fundamental de Lutero do sacerdócio de todos os crentes marcou uma ruptura decisiva com a noção medieval de vocação como um chamado à vida monástica; os cristãos eram chamados a servir ativamente a Deus no mundo e nos assuntos deste. O trabalho ético protestante, que emergiu definitivamente na década de 1530, trouxe nova motivação religiosa para o leigo ativo se engajar na política, nos negócios, nas finanças e em outras esferas profissionais e artísticas. Essa teologia da capacitação do leigo encontrou forte eco nas aspirações de uma classe média recém-surgida e cada vez mais confiante.

    Assim, o protestantismo ficou ligado ao anseio por progresso e reforma sociais. Não é correto dizer que o protestantismo provocou essa mudança, que já estava a caminho na época do aparecimento desse movimento. Nem o protestantismo foi resultado dessa mudança de percepção das possibilidades do homem. A evidência aponta para uma sinergia, uma confluência das ideias religiosas protestantes e um novo conjunto de expectativas e de aspirações. Muitos acreditavam, não sem bom motivo, que o protestantismo era a contraparte religiosa do avanço e das mudanças sociais.³⁸ Foi estabelecido o cenário para uma poderosa aliança de motivação religiosa e competência profissional secular.

    O texto de Erasmo do Novo Testamento grego foi publicado em 1516. Talvez não seja acidente o fato de o evento tradicionalmente visto como o estopim para o nascimento do protestantismo tenha acontecido apenas um ano depois disso, quando Martinho Lutero pregou um documento na porta de uma igreja. Agora, devemos contar a história da origem desse estopim e como ele provocou essa conflagração.

    2

    O REVOLUCIONÁRIO POR ACIDENTE

    Martinho Lutero

    Por que eventos aparentemente irrelevantes têm a capacidade de provocar tempestades? A história está cheia de incidentes aparentemente menores que se expandiram com surpreendente rapidez, levando a resultados que pareciam fora de proporção em relação ao evento original. Por que o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, em Sarajevo, em junho de 1914, deflagrou o horror conhecido como Primeira Guerra Mundial? Como a morte de um indivíduo relativamente insignificante de uma parte obscura da Europa pôde provocar um conflito tão desastroso? Ou, voltando eras atrás, como Helena de Troia veio a ser o rosto que lançou mil navios ao mar (Christopher Marlowe)?

    A resposta, como é de esperar, não está tanto no evento em si mesmo, mas no contexto mais abrangente em que ele está inserido. As fragilidades e as tensões aumentam, levando os eventos a um ponto em que estímulos relativamente pequenos podem provocar uma explosão. Os eventos cascateiam, acumulando momentum que excede o de qualquer um de seus componentes individuais. Embora a observação histórica em retrospectiva nos capacite a entender como um evento individual provou ser o ponto crucial para uma mudança social sísmica, em geral, é impossível prever essa causa com antecedência. O historiador é um retro-orador, não um previsor, sempre na posição de tentar explicar o que aconteceu e sabendo que pode não ter sido de forma alguma dessa maneira. Conforme o cientista Stephen Jay Gould comentou, com o processo de evolução biológica em mente, o poder histórico de contingência é de tal tipo que, se rebobinarmos o vídeo da história e o passarmos de novo, ela poderia revelar uma história diferente de cada vez.

    Martinho Lutero e sua esposa, Katharina von Bora, pintado por Lukas Cranach, o Velho (1472-1553).

    Se as origens da Reforma na Alemanha estão entretecidas com suas dinâmicas culturais distintivas na época, isso não quer dizer que essa avaliação cada vez maior da importância da história social negue um papel crucial a indivíduos, nem como causa dos eventos nem como catalisador.¹ Durante a década de 1980, alguns historiadores sociais alemães excluíram enfaticamente qualquer menção a Martinho Lutero de seu relato sobre as origens da Reforma, sustentando que ele, em essência, foi irrelevante para as forças mais abrangentes em operação. Agora, essa percepção, felizmente, é abandonada por ser considerada impraticável. Os historiadores sociais fizeram muito em anos recentes para esclarecer como as pessoas dessa época entendiam seu mundo, adaptavam-se à existência nele e compreendiam sua relação com o sagrado e o sobrenatural.² Todavia, entender o contexto mais abrangente não refuta a possibilidade da ação individual nele – nem a importância das ideias em modelar a forma como as pessoas entendem seu mundo e atuam nele.

    Ao começar a examinar a complexa rede de ideias, eventos, personalidades e forças sociais que constituíram o cadinho no qual o protestantismo foi forjado, precisamos avaliar o papel crítico desempenhado por Martinho Lutero (1483-1546) em trazer o movimento à existência e em modelar seus contornos. A exigência por reforma de Lutero repousava em uma ideia religiosa, que logo se tornou a senha de movimentos reformistas na região.³ Para entender Lutero, precisamos apreender o poder da percepção intelectual que o guiou. Precisamos, assim, voltarmo-nos ao exame da ideia religiosa diferenciada por trás do programa de reforma de Lutero – a doutrina da justificação pela fé.⁴

    A USINA DE FORÇA INTELECTUAL: JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ

    Martinho Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, na cidade alemã de Eisleben, foi o primeiro filho de Hans e Margarette Luder (forma como o nome era escrito a essa altura; depois, ele foi latinizado para a forma mais familiar Lutero).⁵ Seu nome foi inspirado no de São Martinho de Tours, cuja festa caía no dia seguinte ao do batizado de Lutero. Hans, ansioso em melhorar suas chances de trabalho, mudou no ano seguinte para a cidade vizinha de Mansfeld, onde estabeleceu um pequeno negócio de mineração de cobre. Por volta de 1500, a família tornara-se próspera para o padrão da região. Hans, tendo ele mesmo se elevado da classe de camponeses alemães, estava determinado a ver seu filho se elevar ainda mais e trazer posição e renda para a família. Ele começou a planejar o futuro do filho. Ele se tornaria advogado – naquela época, como agora, uma carreira com excelentes perspectivas financeiras.

    Em 1501, Lutero começou seus estudos na prestigiada Universidade de Erfurt, terceira universidade fundada na Alemanha, em 1392, depois de Heidelberg e de Colônia. A Universidade de Erfurt seguia o tradicional padrão medieval de estudo baseado em uma faculdade básica de Artes e três faculdades superiores de Direito, de Medicina e de Teologia. Por volta de 1505, Lutero completara o curso inicial de Artes e estava em posição de prosseguir para estudar Direito. Ele foi claramente competente do ponto de vista acadêmico, ficando em segundo lugar na classe de dezessete alunos daquele ano.

    Depois de apenas seis semanas, Lutero, em uma reversão drástica, abandonou o estudo de Direito. Conforme o próprio Lutero contou depois a história, ele, em algum momento de junho de 1505, estava voltando a Erfurt de uma visita a Mansfeld. Quando ele se aproximou da vila de Storterheim, caiu um forte temporal. De repente, uma descarga de raio atingiu o chão perto dele, derrubando-o do cavalo. Aterrorizado, Lutero gritou: Santa Ana, ajude-me e me tornarei monge!.

    Essa guinada na vida de Lutero trouxe à tona muitos dos demônios pessoais que desempenhariam papel importante em sua carreira subsequente. Por trás do clamor de Lutero estava um mundo mental modelado por inúmeros marcos predeterminados que, depois, desmoronaram através dos séculos. Um era o medo da morte e do inferno, junto com as crenças mais populares de diabos e demônios à espreita em florestas e em lugares escuros por uma oportunidade para agarrar almas descuidadas e levá-las direto para o inferno.

    Lutero manteve sua palavra. Em 17 de julho de 1505, ele entrou para o mais rigoroso dos sete importantes monastérios de Erfurt – o convento agostiniano. O pai de Lutero ficou furioso com essa decisão e se manteve afastado do filho por um período considerável de tempo. O convento era um lugar austero – contudo, para Lutero, isso, com base na teologia da época, parecia garantir seu lugar no céu. Tornar-se monge não era a forma mais segura de evitar o inferno? Não havia histórias de monges que abandonaram seu hábito monástico e se afastaram dos portões do paraíso porque não estavam vestidos de forma apropriada para a ocasião? Lutero queria ter certeza de que escaparia do inferno e chegaria a salvo no paraíso. Que outra opção ele tinha?

    O início da carreira de Lutero como monge foi marcado pela excelência intelectual, de um lado, e pela espiritualidade com meticulosidade exagerada, de outro lado. Como ele rememorou depois, se algum monge entrasse no céu por sua escrupulosa observância da disciplina monástica, ele seria esse monge. É fácil discernir um profundo sentimento de desmerecimento pessoal nas atitudes e nos atos de Lutero nessa época, e alguns se preocupavam com a estabilidade mental dele.⁷ Johann von Staupitz, seu superior, gentilmente afastou-o dessa introversão pessoal, recomendando o estudo da teologia como um antídoto para a introspecção mórbida.

    Assim, Lutero iniciou o estudo formal da teologia em Erfurt, assentando-se aos pés de alguns dos maiores teólogos alemães de sua época. A essa altura, a via moderna – forma moderna – tornara-se a filosofia e teologia predominantes em muitas universidades alemãs, entre elas Erfurt. Na esfera teológica, isso, com frequência, era expresso no entendimento da salvação baseada na graciosa resposta divina a um iniciativa moral do homem. Esse princípio, em geral, era expresso no lema latino: facientibus quod in se est Deus non denegat gratiam, que pode ser grosseiramente traduzido por: Deus não negará graça àqueles que fazem seu melhor.⁸ Esse princípio teológico repercutiu nos instintos psicológicos básicos de Lutero. Nesse estágio, parecia-lhe totalmente razoável que Deus não recompensaria a pessoa a menos que ela fizesse algo para merecer esse ato. Esse, com certeza, era o consenso acadêmico em Erfurt. No entanto, não era o ensinamento oficial da igreja católica.

    Durante o final da Idade Média, manifestou-se a confusão sobre o que era o ensino privado de teólogos individuais ou escolas de teologia e o que era o ensino autorizado da igreja. Alguns veem o século 15 marcado por um impressionante período de anarquia religiosa em que teologias rivais competiam por atenção, com pouco interesse oficial em decidir qual delas adotar. O jovem Lutero assumiu a percepção de que a igreja ensinava que a salvação dependia da austeridade, da disciplina e da negação pessoais. Se havia alternativas, Lutero parecia não conhecê-las.

    Em 1512, Lutero deixou Erfurt e aceitou uma posição de conferencista em estudos bíblicos na recém-estabelecida Universidade de Wittenberg, fundada em 1502 por Frederico, o Sábio, com a intenção de rivalizar com outras universidades da região. Os sonhos de Frederico não deram em nada; por volta da época da chegada de Lutero, a Wittenberg perdera posição no campo de busca dos alunos em potencial e passava por relevantes problemas de recrutamento. As ousadas aspirações da universidade não eram compatíveis com seus fracos recursos acadêmicos. No devido curso, Lutero levantaria muitíssimo o conceito da universidade, embora por motivos que não agradariam totalmente a Frederico.⁹ Foi durante essa época que Lutero desenvolveu uma maravilhosa nova definição da justiça de Deus que mudaria seu próprio mundo espiritual – e se tornaria a plataforma por renovação e por reforma na igreja.

    Muitíssimo estudo é devotado a esclarecer como a reforma da teologia de Lutero surgiu durante a época em que esteve em Wittenberg. De que maneiras ele mudou sua mente em relação às coisas? Quando essa transição aconteceu? E quais foram suas implicações? Embora ainda reste alguma incerteza a respeito de alguns aspectos dessas perguntas, as linhas gerais, agora, parecem razoavelmente bem entendidas.¹⁰

    As principais mudanças no pensamento de Lutero centraram-se, primeiro, em como a teologia cristã chega a suas ideias centrais e, segundo, em como a humanidade pode conseguir salvação. Por volta de 1516, estava claro para Lutero que a principal fonte da teologia cristã não era a tradição escolástica, menos ainda a filosofia de Aristóteles. Era a Bíblia, especialmente conforme interpretada por meio dos escritos do teólogo cristão primitivo Agostinho de Hipona (354–430). Lutero passou cada vez mais a falar da Bíblia e Agostinho como as fontes de suas ideias. Embora a importância da Bíblia sempre tenha sido reconhecida na teologia cristã, Lutero começou a enfatizá-la de uma maneira que, em última instância, levaria a um perigoso e novo território teológico.

    Contudo, ainda mais perigosa foi a ideia que Lutero desenvolveu no período de 1513 a 1516 enquanto lutava com o texto da Bíblia, tentando ansiosamente discernir o que ela dizia de fato a respeito da salvação. Poucas ideias têm a capacidade de desmantelar grandes instituições e inverter o julgamento de gerações anteriores. Para Lutero, a grande questão da vida era simples e profunda: como ele podia encontrar um Deus gracioso? Lutero, como homem jovem, aterrorizado com a ideia de inferno e convencido da própria pecaminosidade, deu uma resposta amplamente aceita pelos círculos teológicos alemães e também pela cultura cristã popular: se ele quisesse se aproximar de Deus tinha de se tornar uma pessoa boa. Ele, como outros cristãos da época, acreditava que a humanidade tem a capacidade de se fazer justa, de que, quando isso acontece, Deus endossa essa transformação e aceita a pessoa transformada na comunhão com ele, o que fornece as estruturas concedidas por Deus que levam segura e inevitavelmente à salvação.

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