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Cada Roçar Temeroso de Olhos ou Peles
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Cada Roçar Temeroso de Olhos ou Peles
Ebook79 pages2 hours

Cada Roçar Temeroso de Olhos ou Peles

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Quando começa ou acaba um amor, uma dor, uma descoberta? Em Cada Roçar Temeroso de Olhos ou Peles, Paulo Narley investiga os momentos miúdos e íntimos, em que gênero, sexualidade, performance de si e autoconfiança se manifestam, tão concretos quanto as insistentes vozes em nossas cabeças. Neste livro de contos muito pessoais, o autor abre microjanelas, convidando-nos a pensar sobre que fatos escrevem nossas crenças e como eles seguem vivos mesmo anos depois. Sabendo que, muitas vezes, é a experiência que nos define, Paulo vai em busca de vivências que poderiam libertar – desde a alegria que acompanha sapatos de salto em um armário feminino até o roçar de corpos num ato de amor, muitas vezes, tido como masculino.
LanguagePortuguês
PublisherEDITORA NUA
Release dateNov 23, 2020
ISBN9786586353150
Cada Roçar Temeroso de Olhos ou Peles

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    Cada Roçar Temeroso de Olhos ou Peles - Paulo Narley

    ativista.

    I

    PEQUENAS ESPERANÇAS

    ROUPAS

    (ou pequenas coisas de menino)

    Eu lembro bem de como era mágico entrar escondido no quarto dos meus pais, abrir a porta do guarda-roupas branco (do mesmo tom de branco-solidão que preenchia as paredes da casa) e encarar o carnaval colorido que se encontrava ali. As roupas de mamãe exerciam um poder no meu fascínio de criança. Flores, bordados, rendas, cores, enfim, havia muito pano para a minha imaginação. Sentia um acelerar de coração sempre que entrava ali. Mesmo com a casa vazia, era como se eu pudesse escutar a voz do meu pai, repreendendo meus trejeitos por não serem masculinos o suficiente.

    Lembro que costumava passar alguns minutos encarando as peças, decidindo qual vestiria naquele dia. Não recordo bem qual era minha a idade à época, mas sei que era como um ritual. Ao escolher a peça, colocava-a em cima da cama, ia até o espelho e encarava meu corpo magro de menino. Despia-me, peça por peça, como que me livrando não só do pano que compunha minhas vestimentas, mas também de algumas amarras que se instalavam na minha pele através dos meus ouvidos. Engrossa essa voz, não senta assim, não anda desse jeito... Eu podia ouvir as palavras se dissipando e virando silêncio dentro de mim.

    Então, já despido de todos aqueles ecos, eu ia até a cama, acariciava o tecido macio e respirava fundo. Não colocava a peça escolhida de uma vez: eu o fazia devagar, sentindo o tecido frio preencher cada centímetro de pele-alma. Depois de colocada a roupa, era hora dos sapatos, que sempre deviam ser de salto, nada de rasteiras. Eu me sentia grande, alto e imponente quando os calçava. Não conseguia entender o medo que tantos amigos tinham dos saltos femininos. Eu me sentia tão bem. Hoje, consigo compreender seus receios.

    Eu costumava andar, pomposo, ao redor do quarto. Sentava. Cruzava as pernas. Fingia conversas com as amigas que viviam no interior de mim. Com elas, eu ia a bares, restaurantes... Juntas, fazíamos muitas coisas. Nesses raros momentos de liberdade, eu não precisava me preocupar em fingir. Tinha permissão para ser eu mesmo. Enquanto estava com aquelas peças, sentia ares de libertação ao redor de mim, correndo pelas paredes que já não eram mais tão brancas.

    Porém, logo chegava a hora de tirar a roupa e devolvê-la ao seu lugar. Minhas amigas todas iam embora, deixando minhas vontades de menino ali, sozinhas. Eu descia dos saltos, guardava-os na sua caixa e, com eles, ia embora minha imponência. Eu voltava à pequenez. Despia-me de novo e encarava não mais a imagem de alguém confiante. Na verdade, era como encarar todos os meus medos materializados naquele espelho. Eu acariciava a roupa mais um pouco, pendurava-a no cabide e fechava a porta do guarda-roupas. As vozes-correntes-de-prender retornavam, adentrando meus ouvidos. E, mesmo querendo morar ali dentro, eu virava as costas, vestia-me com minhas roupas e saía do quarto, como quem deixa o próprio lar para trás.

    FOTO

    (ou pequenas coisas sobre vontades)

    Abria a foto de perfil dele constantemente. O reencontro havia sido recente. Encarava aqueles olhos cor de céu em dias de tempestade. Queria estar no meio daquela chuva e banhar-se com ela. A barba preenchia o rosto da foto. Passava a tela do celular na bochecha, querendo sentir o roçar daqueles pelos nos seus. Não sentia. Sentia somente a tela fria. Encarava novamente a tela com a conversa do dia anterior. Queria receber um olá, um oi, um sinal de fumaça, qualquer coisa. Não recebia, apesar de o desejado estar on-line. Diversas vezes, digitou uma palavra, mas não se atreveu a enviar.

    No quarto, havia somente a luz do aparelho e o cheiro da vontade de ter o outro ali... Ele queria, mesmo sabendo que não poderia, que não era certo. Não compreendia muito bem sobre desejos e quereres, mas sentia. Não sabia muito sobre quase nada, na verdade. Ele se perdia em divagações, enquanto a foto – muda – o encarava, parada. Imaginou como seria uma foto dos dois juntos, abraçados. Ficaríamos bem, pensou e

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