Operação Carro-Pipa (OCP) Governança e Práxis Executiva no Exército Brasileiro: compreendendo a grandeza e a complexidade dessa política pública

Bibliografia

1. INTRODUÇÃO

O direito universal de acesso à água potável pelo nordestino, no cenário do sensível e resistente bioma Caatinga no Semiárido brasileiro, região sob processo natural de desertificação, com baixo e concentrado índices pluviométricos, baixa densidade demográfica, baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), salvo alguns perímetros irrigados, cuja principal atividade econômica é a agropecuária extensiva, tem sido mote para diversos programas de Governo e Estado.

Figura 1 - Carros de boi para transporte de água em Aracati (CE), maio de 1952

Fonte: Biblioteca Virtual do IBGE. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/fotografias/GEBIS%20-%20RJ/CE10324.jpg. Acesso em: 12 ago. 2019.

Segundo Roberto Marinho Alves da Silva¹, ao longo dos anos vem se adequando a ênfase de combater para se conviver com a condição de seca, surgindo como uma das alternativas de Políticas Públicas de Estado (independem da gestão de Governo), assegurar direitos fundamentais, com ações mitigadoras dos efeitos da seca sobre a população, mediante a implementação conjunta técnica e financeira das esferas Federal, Estadual e Municipal, de ações como o Programa Emergencial de Distribuição de Água, em especial a ação complementar denominada Operação Carro-Pipa (OCP), cuja finalidade é a distribuição emergencial de água potável para consumo humano nas áreas atingidas pela seca (em situação de calamidade ou emergência) na região Nordeste, Norte de Minas Gerais e do Espírito Santo (Semiárido brasileiro).

A pesquisa objeto deste trabalho refere-se ao Programa Emergencial de Distribuição de Água - Operação Carro-Pipa (OCP), desenvolvido pelo Governo Federal em parceria com os Governos Estaduais e Municipais do Semiárido brasileiro, e está enquadrada na área de concentração em Direito, Governança e Políticas Públicas, na Linha de Pesquisa em Direito, Democracia, Transparência e Avaliação.

Considerando a necessária interdisciplinaridade, a presente pesquisa se alinha ao Direito na medida em que se busca verificar a aderência do programa ao ordenamento jurídico pátrio; à Governança em decorrência da descrição dos processos de gestão e da práxis executiva realizada pelos órgãos envolvidos no programa, com especial enfoque na atuação do Exército Brasileiro (EB); relaciona-se também, às Políticas Públicas (PP), considerando que o tema abordado consiste numa ação governamental, instrumentalizada por meio de um programa que busca assegurar o direito fundamental do acesso à água potável à população do Semiárido brasileiro.

Acerca da linha de pesquisa adotada, verifica-se que o presente trabalho insere-se no campo do Direito na medida em que serão abordados os aspectos legais que dão amparo à OCP; à Democracia, haja vista que busca demonstrar que a distribuição de água potável em cisternas coletivas, realizada mediante a utilização de carros-pipa, é feita por meio de processos democráticos onde se busca atender o maior número de pessoas, permitindo a participação de pessoas estranhas à administração pública no processo de distribuição desse precioso bem, vital à sobrevivência humana; relaciona-se ainda, à Transparência Pública, considerando que se trata de uma ação governamental onde, ao longo de mais de 20 (vinte) anos, foram e são aplicados vultuosos recursos orçamentários, cuja demonstração de sua aplicação requer transparência e a necessária prestação de contas (accountability); por fim, também se relaciona à Avaliação de Políticas Públicas, na medida em que se buscará avaliar especificamente os efeitos suportados pelo Exército Brasileiro, principal órgão responsável pela execução da OCP.

Assim, o escopo desta dissertação será o processo de governança e políticas públicas no acesso ao bem social água potável à população do Semiárido brasileiro, enfocando a Operação Carro-Pipa (OCP) gerida pelo Exército Brasileiro.

Integrando a Política de Estado, com interseção² entre o Ministério da Defesa e o atual Ministério do Desenvolvimento Regional (antigo Ministério da Integração Nacional³), a Operação Carro-Pipa é executada pelo Exército Brasileiro, cuja missão constitucional consta no caput do artigo 142 da Constituição Federal, o qual estabelece se tratar de uma instituição regular e permanente que se destina à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Não obstante o citado comando constitucional, a Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999⁴, que dispõe sobre o emprego das Forças Armadas, em seu artigo 16 define a atividade de cooperação com o desenvolvimento nacional e com a defesa civil como uma atribuição subsidiária geral das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica).

Entretanto, não se pode olvidar que o emprego subsidiário das Forças Armadas no apoio a defesa civil não deve ter caráter permanente, mas episódico, sob pena de onerar sobremaneira a instituição e até dificultar o cumprimento de sua função constitucional. Assim, poderia uma ação de caráter emergencial, que vem sendo executada de forma contínua adquirindo caráter permanente, prosseguir sendo conduzida pelo Exército Brasileiro?

Segundo Exército Brasileiro⁵, para execução da Operação Carro-Pipa o Exército Brasileiro utiliza cerca de 7 mil carros-pipa (dirigidos por pipeiros) rastreados e monitorados, entregando água para consumo humano em cerca de 80 mil cisternas coletivas, na proporção de 20 litros por pessoa/dia, perfazendo um total de 2,2 bilhões de litros de água entregues ao mês a cerca de 3,5 milhões de habitantes, numa área de aproximadamente um milhão de quilômetros quadrados no Semiárido brasileiro.

Em 2017, mediante repasse do então Ministério da Integração Nacional ao Ministério da Defesa, foram aplicados mais de 1 bilhão⁶ de reais pelo Governo Federal na manutenção do referido programa, expectando-se uma liberação continuada deste cheque especial pelo processo climático permanente e cíclico da seca.

A justificativa deste estudo repousa na importância de demonstrar os riscos potenciais trazidos à Administração Militar, que segue na vanguarda dessa missão subsidiária (apoio a defesa civil) que, embora seja denominada emergencial, vem sendo cumprida ao longo de mais de 20 (vinte) anos. Assim, importa à sociedade, que é mantenedora das instituições públicas com o pagamento de impostos, ter conhecimento da práxis executiva e da complexidade que envolve as atividades de governança da Operação Carro-Pipa (OCP), de forma a compreender as implicações que a execução dessa importante Política Pública acarreta no âmbito da Administração Militar. Importa, ainda, agregar à área de conhecimento das Políticas Públicas, a descrição de como se concretiza o acesso ao bem social água potável à população do Semiárido brasileiro, por intermédio da OCP, abordando os seus aspectos regulatórios, o seu planejamento e sua execução.

Neste contexto, a mobilização de efetivo militar para execução das atividades de planejamento, coordenação, execução e fiscalização da Operação Carro-Pipa, com fins humanitários e sociais, demanda descrição e análise.

Assim, o problema central desta pesquisa será responder ao seguinte questionamento: considerando o dever do Estado em prover o acesso ao bem social água potável à população do Semiárido brasileiro, diante da imprescindibilidade da Operação Carro-Pipa, que é caracterizada como uma ação governamental de caráter emergencial, há exequibilidade quanto à continuidade de sua execução sem o comprometimento da missão constitucional do Exército Brasileiro?

Tal indagação faz surgir o objetivo geral do trabalho que consiste em descrever e avaliar o planejamento e execução da atividade que busca assegurar o direito universal de acesso à água potável, garantido constitucionalmente, por meio da ação complementar Operação Carro-Pipa (Programa Emergencial de Distribuição de Água), gerida pelo Exército Brasileiro.

Quanto aos objetivos específicos, buscou-se: descrever a abrangência como política pública e processo de governança das ações planejadas e efetivadas; caracterizar os ditames legais e regulatórios de planejamento e execução pelo Exército Brasileiro; avaliar os possíveis efeitos e percepções de representações militares quanto ao processo executivo da implementação dessa política pública pelo EB.

A estratégia metodológica adotada no desenvolvimento desta pesquisa teve foco qualitativo, com abordagem de pesquisa exploratória-descritiva, a partir de revisão de literatura que aferiu monografias, livros, artigos, legislações, normas, entre outros, sobre o assunto pesquisado. A partir das palavras-chave (políticas públicas, Semiárido, acesso à água, programa emergencial, operação carro-pipa, Exército Brasileiro), utilizou-se como base de dados o Google Acadêmico, a Biblioteca Digital do Exército (BDEx), a Rede de Bibliotecas do Exército, o Scientific Electronic Library Online - Scielo, o Portal de Periódicos da Capes, entre outros; análise documental (legislação, aspectos regulatórios, pareceres do Tribunal de Contas da União - TCU e da Controladoria-Geral da União – CGU, processos da Justiça Militar e da Justiça Federal), análise de dados secundários de bases de dados públicas (população alcançada, área de abrangência, destinação de recursos, volume entregue, compilação de mapas georreferenciados, análise de dados obtidos por meio de sistemas de informação (Gestão e Controle e Distribuição de Água – GCDA e Gestão Pipa Brasil – GPIPABRASIL); informações e visitas in loco aos escritórios da 6ª Região Militar (6ª RM) e do 19º Batalhão de Caçadores (19º BC), com o intuito de conhecer e compreender o funcionamento das ferramentas utilizadas nos processos de governança da OCP (GCDA e GPIPABRASIL), (acervo imagético) que compõe a documentação indireta e direta, respectivamente⁷.

O recorte epistemológico desta pesquisa em relação ao espaço abrangeu o Semiárido brasileiro, definido como área de atuação da OCP, sob o encargo do Comando Militar do Nordeste (CMNE). Já em relação ao tempo, a pesquisa buscou dados desde o início da participação do Exército Brasileiro no aludido programa (1998), até o ano de 2019.

A avaliação realizada acerca dos efeitos e riscos potenciais internos no Exército Brasileiro, advindos da execução da OCP, em relação ao timing do programa, foi desenvolvida durante a sua execução, haja vista o seu caráter permanente. A posição do avaliador em relação ao objeto avaliado (Operação Carro-Pipa), foi de neutralidade⁸. Segundo Brasil (2018)⁹, é por meio da avaliação de impacto que verificamos se de fato a política está gerando os resultados e impactos esperados, conforme definido no âmbito da política em seus normativos e no seu modelo lógico.

Considerando que as metodologias e ferramentas analíticas utilizadas na avaliação fundamentam a tomada de decisão dos gestores públicos em prol do aperfeiçoamento das políticas em execução, valendo-se dos métodos da avaliação executiva (BRASIL, 2018), buscou-se apurar as fragilidades relacionadas especialmente à gestão e implementação desta PP, não sob o aspecto externo da sua execução, mas avaliando as possíveis consequenciais adversas no principal ator do Programa Emergencial de Distribuição de Água - Operação Carro-Pipa (OCP), o Exército Brasileiro. Assim, sem a pretensão de avaliar o resultado da OCP para o seu público-alvo ou mesmo quanto aos objetivos do programa, o presente estudo busca apontar possíveis efeitos causados no âmbito da Administração Militar, analisando as consequências internas negativas advindas da execução da OCP.

A presente dissertação está estruturada em sete capítulos. Ultrapassada esta parte introdutória, que compõe o primeiro capítulo, no segundo capítulo é abordada a importância do bem social água para a vida humana, discorrendo sobre o direito fundamental do acesso à água potável.

O segundo capítulo também aborda a problemática da água no mundo e no Brasil, com especial enfoque no Semiárido brasileiro. Ainda nesse capítulo é feita uma breve conceituação do que são políticas públicas, trazendo informações sobre as principais ações desenvolvidas para minimizar a escassez de água no semiárido.

O terceiro capítulo trata do Programa Emergencial de Distribuição de Água – A Operação Carro-Pipa (OCP), discorrendo sobre seu histórico, funcionamento e seus aspectos regulatórios; serão apresentadas as instituições das esferas federal, estadual e municipal envolvidas na OCP; as Organizações Militares (OM) que são empregadas na execução do programa, o efetivo militar empenhado e respectiva capacitação. Descreve as etapas da OCP; como é realizada a contratação do pipeiro (profissional contratado para realizar o transporte e distribuição de água potável); como é realizado o controle da qualidade da água que é captada em mananciais; por fim, aponta os valores aplicados na OCP, inclusive realizando comparação com outros métodos de obtenção de água potável.

O quarto capítulo trata da governança da OCP, com destaque para as auditorias externas, realizadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Controladoria-Geral da União (CGU). Neste capítulo serão apresentadas as principais ferramentas que auxiliam no processo de governança, utilizadas pelo Exército Brasileiro na execução da OCP, o Gestor de Controle de Distribuição de Água e o Sistema de Monitoramento e Rastreamento Eletrônico (GPIPABRASIL).

O quinto capítulo aborda os principais efeitos da OCP sobre o Exército Brasileiro, principal órgão de execução da OCP, apontando potenciais riscos jurídicos e administrativos causados à Administração Militar. Também é feito o registro acerca do descumprimento do artigo 22 da Portaria Interministerial nº 01/MI/MD, de 25 de julho de 2012, norma que regula a OCP. O capítulo aborda ainda o prosseguimento da OCP, considerando o ciclo de uma política pública.

O sexto capítulo apresenta a interpretação dos resultados da presente pesquisa, com especial enfoque na participação do Exército Brasileiro na execução da OCP.

O último capítulo traz a síntese conclusiva deste estudo, onde será respondida a pergunta norteadora, e se foram atendidos o objetivo geral e os secundários propostos. Por fim, as referências das obras e documentos citados e consultados durante a pesquisa.

1 SILVA, Roberto Marinho Alves da. Entre o Combate à Seca e a Convivência com o Semi-Árido: políticas públicas e transição paradigmática. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 38, n. 3, jul.-set. p. 466- 485, 2007.

2 Portaria Interministerial nº 01/MI/MD, de 25 de julho de 2012. Diário Oficial da União - DOU de 26 de julho de 2012.

3 Lei nº 13.844, de 18 de junho de 2019, publicada no DOU de 18 de junho de 2019 – edição extra.

4 DOU de 10 de junho de 1999.

5 EXÉRCITO BRASILEIRO. CCONSEX. Operação Carro-Pipa. Revista Verde-Oliva, Brasília, n. 230, p. 33, 2015.

6 Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cffc/audiencia-publica/2019/Apresentao_CDU_CINDRA_CFFC.pdf. Acesso em: 30 set. 2019.

7 GERHARDT, Tatiana Engel; SILVEIRA, Denise Tolfo (org.). Métodos de Pesquisa. Porto Alegre, RS: Editora da UFRGS, 2009. Disponível em: http://www.ufrgs.br/cursopgdr/downloadsSerie/derad005.pdf. Acesso em: 30 ago. 2019.

8 TREVISAN, Andrei Pittol; VAN BELLEN, Hans Michael. Avaliação de políticas públicas: uma revisão teórica de um campo em construção. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, n. 42, maio-jun. 2008.

9 BRASIL. Avaliação de Políticas Públicas – guia prático de análise ex post. V.2. Brasília: Presidência da República, 2018.

2. A IMPORTÂNCIA DO BEM SOCIAL ÁGUA

A água é uma das substâncias mais imprescindíveis para a vida em nosso planeta. Eleonora Cano Carmona¹⁰ descreveu a água e sua importância:

A natureza suave da água – insípida, inodora e incolor – dissimula sua fundamental importância para os seres vivos. A água é a substância mais abundante, constituindo 70% do corpo humano e de muitos outros organismos, que vivem circundados por água em todo o nosso planeta. Além de abundante, a água é fundamental para os seres vivos porque praticamente todas as moléculas que ocorrem nos seres vivos – as biomoléculas - assumem suas formas graças às propriedades físicas e químicas da água, o que as capacitam a executar suas funções biológicas; o meio no qual ocorre a maioria das reações nos seres vivos é aquoso, sendo a água o veículo de assimilação e eliminação de muitas substâncias pelos organismos; e a água também participa de muitas reações que ocorrem nos