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História do Português desde o Big Bang
História do Português desde o Big Bang
História do Português desde o Big Bang
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História do Português desde o Big Bang

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A História do Português desde o Big Bang visita a mais remota história da língua, muito antes do latim: mostra a origem das línguas da Europa, como se desenvolveu o português na Península, quem deu nome à língua, o que aconteceu no Brasil e como o português se transformou noutras línguas, os crioulos, que revelam muito mais sobre a humanidade do que pensamos. No final, o livro também imagina como será a língua daqui a 500 anos, quando Os Lusíadas fizerem mil anos. Que língua se falará então?

Este livro baseia-se em ciências como a física e a biologia para contar a história da nossa língua. Só compreenderemos a origem do português se compreendermos a origem da humanidade e só compreenderemos o funcionamento da língua se compreendermos o cérebro humano e o Universo em que se insere.

A História do Português desde o Big Bang tem uma visão original da humanidade, plasmada numa ideia, a do círculo da traduzibilidade. O filho de qualquer ser humano pode aprender qualquer língua humana — e não aprende nenhuma linguagem animal, por mais que tente. Tudo o que um ser humano diz ou escreve pode ser traduzido para todas as línguas da humanidade, por qualquer pessoa, independentemente da raça ou do sexo. No entanto, a humanidade nunca poderia falar uma só língua. Estamos condenados a traduzir. Também por isso, a ideia da intraduzibilidade é profundamente contrária à ideia de humanidade.
LanguagePortuguês
Release dateMay 1, 2021
ISBN9789897026324
História do Português desde o Big Bang
Author

Marco Neves

Nasceu em Peniche e vive em Lisboa. Tem sete ofícios, todos virados para as línguas: tradutor, revisor, professor, leitor, conversador e autor. Não são sete? Falta este: é também pai, com o ofício de contar histórias. É professor na NOVA FCSH, investigador na área das línguas e tradução e director da empresa de tradução Eurologos-Lisboa. Escreve regularmente artigos na área da linguística na página Certas Palavras (www.certaspalavras.pt) e crónicas semanais no Sapo 24. Este é o seu décimo segundo livro.

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    História do Português desde o Big Bang - Marco Neves

    9789897026324.jpg

    História do Português desde o Big Bang

    Título: História do Português desde o Big Bang

    Autor: Marco Neves

    © Autor e Guerra e Paz, Editores, Lda, 2021

    Reservados todos os direitos

    A presente edição não segue a grafia do novo acordo ortográfico.

    Revisão: Marília Laranjeira

    Design: Ilídio J.B. Vasco

    Infografias: Nuno Costa

    ISBN: 978-989-702-632-4

    Guerra e Paz, Editores, Lda

    R. Conde de Redondo, 8–5.º Esq.

    1150­-105 Lisboa

    Tel.: 213 144 488 / Fax: 213 144 489

    E­-mail: guerraepaz@guerraepaz.pt

    www.guerraepaz.pt

    índice

    INTRODUÇÃO

    CAPÍTULO 1

    13 800 000 000 a. C. |Big Bang

    O início do Universo passou na televisão

    Átomos, galáxias e palavras inglesas

    CAPÍTULO 2

    4 000 000 000 a. C. | A origem das espécies

    O mecanismo da vida

    Palavras e outros vírus

    CAPÍTULO 3

    6 000 000 a. C. | A invenção do ser humano

    Uma árvore com muitos ramos

    Homúnculos, mitocôndrias e outros palavrões

    CAPÍTULO 4

    2 000 000 a. C. | A origem das línguas

    O nascimento das palavras

    Porque não falamos todos a mesma língua?

    CAPÍTULO 5

    10 000 a. C. | A língua e o território

    Quantas línguas há no mundo?

    Viagem ao mundo das línguas

    CAPÍTULO 6

    4500 a. C. | Como era a nossa língua há 6500 anos?

    Com pouca corrupção

    Uma surpresa escondida na palavra «filho»

    CAPÍTULO 7

    1 d. C. | Línguas imperiais

    História de duas línguas

    A invenção das letras

    CAPÍTULO 8

    1000 d. C. | Do latim à nossa língua

    Uma história em cinco faixas

    Palavras trituradas

    CAPÍTULO 9

    1430 d. C. | Língua à portuguesa

    A reinvenção a sul

    Alfabeto à portuguesa

    CAPÍTULO 10

    1757 d. C. | Volta ao mundo em português

    Os círculos da língua

    Palavras contra a corrente e dentro dos dicionários

    CAPÍTULO 11

    2021 d. C. | Camões no século XXI

    Camões de visita ao presente

    Viagem a uma língua exótica

    CAPÍTULO 12

    2572 d. C. | Os Lusíadas traduzidos para português

    A tradutora de português

    As línguas a várias cores

    BIBLIOGRAFIA

    Introdução

    Pensemos no princípio: quando nasceu a nossa língua?

    Terá sido quando alguém escreveu o nome «português» para se referir à língua dos Portugueses? Mas quando tal aconteceu, a língua já andava na boca dos falantes, com características muito próprias, havia séculos. Ou terá sido quando apareceram os primeiros textos? Mas para se escrever um texto numa língua, a língua já tem de existir… Talvez quando o latim aqui chegou, sofrendo alterações espicaçadas pelas línguas que já cá se falavam? Mas o latim já sofria alterações antes de cá chegar e continuou simplesmente a mudar, sem grande interrupção e sem que ninguém pensasse que estava a criar uma língua nova. O próprio latim já vinha de antes, doutra língua de que não conhecemos o nome que lhe davam os falantes. Essa outra língua também já vinha de trás, doutra língua que também vinha de uma língua mais antiga, numa sucessão de falares, até ao início da linguagem.

    Se quero contar a história toda, tenho de contar o que sabemos da história da linguagem humana − mas, para compreendermos o que se sabe da origem da linguagem (que não é muito), temos de pensar na origem do ser humano (e aí já sabemos mais). Para compreendermos a origem do ser humano, temos necessariamente de compreender a evolução das espécies − e, por fim, pensamos na origem da vida. Por fim? A vida desenvolveu­-se sob as pressões naturais da Terra. Para contar esta história desde o início, temos de recuar à criação da Terra − e talvez do Sistema Solar.

    Vamos mesmo ao princípio. Comecemos no Big Bang.¹

    ***

    O livro que tem nas mãos é uma homenagem à sua curiosidade − a essa vontade de saber mais que caracteriza o ser humano. Talvez queira saber mais sobre a língua ou talvez queira apenas perceber como pode um livro sobre o português começar no Big Bang. Poderá dar­-se o caso de estar a folhear o livro movido apenas pela indignação de ter encontrado uma história da nossa língua com duas palavras inglesas no título. Seja qual for o caso, tentarei mostrar o percurso da nossa língua, não sem antes descrever o percurso da humanidade e, antes de surgir esta espécie particular, a história do Universo.

    O conhecimento humano tem uma continuidade que nem sempre se nota quando lidamos com as esmiuçadas disciplinas em que nos dividimos. Não que a especialização não seja benéfica: é com um profundo interesse individual numa parcela diminuta da realidade que a humanidade alarga o círculo do conhecimento; sabe bem, no entanto, levantar a cabeça e perceber o lugar que ocupa no Universo aquilo que nos interessa em particular. Foi isso que tentei fazer neste livro: pensar na língua começando por olhar para o Universo. A ideia parte de um jogo, mas o resultado é uma exposição séria sobre a História da nossa língua vista na perspectiva mais geral possível. Esta perspectiva geral terá desvantagens, mas permite­-nos, pelo menos, perceber que tão interessante como tudo o que distingue o português de outras línguas é aquilo que a nossa língua tem de típico enquanto língua humana. Afinal, usamos a língua por inteiro, não apenas o que calhou distingui­-la dos outros falares humanos − e usamo­-la para tudo, até para conversar sobre o início do Universo. ²

    Se quiser enviar­-me alguma sugestão ou comentário, poderá fazê­-lo para o endereço marconeves@gmail.com. Permita­-me ainda fazer um convite para que conheça o sítio certaspalavras.pt, onde escrevo sobre a língua há vários anos.

    Agradeço a Marília Laranjeira pela revisão (e declaro que não é responsável por usar Big Bang sem itálico), a Maria José Batista pelo acompanhamento da edição e ao editor Manuel S. Fonseca pelo entusiasmo com que abraçou a ideia. Agradeço ainda a Fernando Venâncio e a José Ramom Pichel pela leitura de extractos do livro e pelas sugestões que me enviaram. Os erros que persistem são da minha inteira responsabilidade.

    Não podia deixar de dedicar o livro ao Matias, ao Simão e à Zélia, que acompanharam bem de perto a escrita do livro — por vezes, na mesma divisão.

    CAPÍTULO 1

    13 800 000 000 a. C. |Big Bang

    O início do Universo passou na televisão

    Quando ainda recebíamos as transmissões de televisão através das ondas hertzianas que enchiam os nossos céus, e se tivéssemos o azar de não conseguir sintonizar bem os poucos canais que nos calhavam em sorte, encontrávamos a famosa chuva. Alguns dos pontos que fervilhavam no ecrã eram provocados pela chamada radiação cósmica de fundo, um resquício do princípio de tudo, ou melhor, do estado do Universo uns 200 000 anos depois do início do tempo. Dito de outra forma: ao olhar para o ecrã, estávamos a receber em directo os últimos momentos do Big Bang.

    A Teoria do Big Bang tem algo de incrível, no sentido de espantoso e também de difícil de acreditar: toda a matéria que forma o nosso corpo, a Terra, o Sol, os planetas, as estrelas, as galáxias, tudo esteve, há muito tempo, comprimido num pequeníssimo espaço, mais pequeno do que um átomo. O início do Universo ocorreu quando esse espaço começou uma expansão tremenda, que ainda hoje não parou. É incrível — mas é também a melhor explicação que temos para os dados que descobrimos ao olhar, armados com telescópios, para o céu.

    A ideia do Big Bang ganhou força quando Edwin Hubble percebeu, em 1929, que as galáxias pareciam estar a afastar­-se umas das outras, como quando desenhamos pontos num balão que, depois, enchemos. Os pontos afastam­-se todos uns dos outros, sem haver um ponto central. O Universo parece estar a expandir­-se sem um ponto central, como se fosse uma superfície tridimensional de um balão a encher.

    Como se descobriu esta expansão? Através da análise do espectro luminoso das galáxias: há um desvio para o vermelho. Lembremo­-nos do som de uma ambulância, que se torna agudo ao aproximar­-se (as ondas sonoras comprimem­-se entre a ambulância e quem a ouve) e grave ao afastar­-se (as ondas sonoras alargam­-se entre a ambulância e os nossos ouvidos). Ora, esse efeito também existe no caso da luz. Se as galáxias se estivessem a aproximar, as ondas de luz comprimir­-se­-iam entre a galáxia e os nossos olhos, e as galáxias teriam uma luminosidade desviada para o lado dos ultravioletas. Como, na verdade, tendem para os infravermelhos, tal significa que as ondas de luz estão a alargar­-se e as galáxias a afastar­-se. Estarem a afastar­-se implica que já estiveram mais próximas. Se andarmos suficientemente para o passado, haverá um momento em que estavam todas no mesmo sítio, no mesmo ponto. Nesse momento temos o Big Bang, uma expansão tremenda, a origem de tudo.

    Até aos anos 60, muitos astrofísicos recusavam­-se a aceitar o Big Bang, propondo outras explicações para os dados. Aliás, o próprio inventor do termo Big Bang, Fred Hoyle, não acreditava na teoria. A sua descrição de um grande «bangue» primordial serviu para descrever, na rádio, a teoria que estava a combater. Ele próprio era proponente da teoria do estado estacionário («steady­-state»), em que o Universo não teria tido um início, e muitos viram no nome uma tentativa de desconsiderar a teoria contrária. Apesar do cepticismo de muitos, os astrónomos trabalharam arduamente na elaboração da teoria. Um dos aspectos previstos por quem a propunha era a existência de uma radiação de fundo no Universo, na forma de microondas, que, se fosse encontrada, seria uma prova sólida da realidade do Big Bang.

    Em Junho de 1964, dois jovens radioastrónomos, Arno Penzias e Robert Wilson, estavam a tentar montar um radiotelescópio em Nova Jérsia. O objectivo era estudar galáxias antigas, buracos negros e outras maravilhas do Universo. Ao preparar as observações, perceberam que detectavam um resquício de radiação muito baixa, mesmo ao apontar para uma parte vazia do Universo. Aliás, detectavam esse resquício ao apontar para objectos que não emitem radiação. Eliminaram todas as fontes possíveis de radiação − incluindo dois pombos, mártires da investigação científica − e, mesmo assim, aquele valor persistia. Havia, para onde quer que se apontasse o radiotelescópio, uma radiação de fundo com um valor aparentemente constante, que aparecia nos registos vinda de todas as direcções, a todas as horas do dia. O valor da radiação pode ser expresso em temperatura: 2,73 ºK³, ou seja, ­-270,45 ºC.

    Por fim, depois de telefonemas para alguns cientistas a trabalhar na Teoria do Big Bang, perceberam o que se passava: aquela era a radiação cósmica de fundo prevista pela teoria. A radiação detectada tinha exactamente as características previstas décadas antes. Os dois radioastrónomos acabaram por receber o Prémio Nobel pela descoberta acidental − e tornou­-se muito difícil negar que o Big Bang é a melhor explicação encontrada para os dados que temos.

    Com o passar das décadas, a Física conseguiu descrever os primeiros momentos do Universo de forma muito pormenorizada. Da análise da velocidade a que as estrelas se estão a afastar umas das outras, temperada com outros cálculos relevantes, chegámos à idade do Universo: 13 800 000 000 anos − uma idade muito respeitável.

    Também conhecemos com bastante precisão o que se passou logo a seguir ao início: por exemplo, as quatro forças que encontramos no Universo − a força electromagnética, a força gravitacional, a força nuclear forte e a força nuclear fraca − separaram­-se nos primeiros momentos do Universo.

    Muitos cientistas continuam à procura de uma descrição completa do momento exacto do Big Bang, o momento zero, o ponto em que o tempo começou a contar. As nossas línguas não têm verbos que descrevam um momento sem passado e, para já, as equações também não nos conseguem revelar muito. Devemos, no entanto, reconhecer que tudo o que sabemos é muito mais do que imagina uma grande parte da humanidade. A verdade é que as descobertas científicas demoram algum tempo a espalhar­-se pela população, havendo sempre resistências, e quando, por fim, se espalham, são percebidas com uma série de simplificações e, por vezes, distorções.

    Entretanto, o conhecimento avança. Por exemplo, a radiação cósmica de fundo, que foi detectada por Penzias e Wilson, parecia ter um valor fixo. Hoje sabemos que há alguma variação.

    Nos primeiros 379 000 anos, o Universo era um plasma, um mar de núcleos e electrões que ainda não se tinham unido para criar átomos. A densidade deste plasma era tanta que os fotões − as partículas de luz − não podiam percorrer grandes distâncias sem embaterem num electrão. A determinada altura, a temperatura diminuiu o suficiente para que se formassem átomos e, por fim, com espaço para percorrer, os fotões começaram a percorrer o Universo. É essa radiação − os sinais de rádio são constituídos por fotões, tal como a luz − que detectamos hoje: a radiação cósmica de fundo. O mapa dessa radiação é também, desta forma, o mapa do Universo na sua infância, evidenciando que a massa indistinta de átomos recém­-criados tinha diferentes densidades. O Universo não era uniforme − e ainda bem! Fosse perfeito e ficaria perfeito para todo o sempre, sem nenhuma irregularidade: apenas uma massa de átomos cada vez mais distantes entre si − até já só haver espaço vazio e um átomo aqui e ali.

    As zonas mais densas começaram a aproximar­-se, criando a primeira geração de galáxias e estrelas. Uma estrela é um conjunto de átomos tão pesado que a força da gravidade obriga os átomos do núcleo a fundirem­-se, criando átomos mais pesados − e libertando uma enorme quantidade de radiação, que vemos à noite, no céu, em pequenos pontos.⁶ Entretanto, o Universo continua a expandir­-se, criando grandes fiapos de matéria, como massa de pão que separamos com as mãos ou túneis criados por algum animal subterrâneo.

    As estrelas têm uma vida. Nascem, trabalham durante milhões de anos e depois morrem. A morte de uma estrela depende da sua dimensão. Muitas delas explodem numa supernova, espalhando os materiais mais pesados pelo espaço em redor. Foi o que aconteceu a essa primeira geração de estrelas: foram morrendo e deixando destroços nas redondezas.

    Esses destroços não ficaram quietos: a força da gravidade não deixou. As nuvens começaram a ficar cada vez mais pequenas e densas, criando novas estrelas no coração dessa poeira de estrelas antigas. Nos arredores dessas novas estrelas, os restos da poeira, cheios de materiais como o carbono e outros átomos, começaram a juntar­-se em pequenas esferas: os planetas. Foi assim que nasceu o Sistema Solar, numa galáxia a que chamamos Via Láctea e num canto do Universo a que chamamos Grupo Local, uma parte pequena de um desses fios de galáxias que constitui o Universo visível.

    A partir de dados encontrados por telescópios, no início do século

    xx

    − o tal subtil desvio para o vermelho −, alguns cientistas criaram teorias que faziam previsões. Quando as observações posteriores confirmaram essas previsões, as teorias tornaram­-se sólidas − poderá acontecer que outra teoria explique tudo o que observámos até agora. Para já, a Teoria do Big Bang parece ser a nossa melhor explicação para o início do Universo.

    Átomos, galáxias e palavras inglesas

    Esta é uma história da língua − como prometido no título – que começou no Big Bang, a origem de todas as histórias, da língua à cerâmica, passando pela cultura dos cereais e pela história da Galáxia de Andrómeda. Mas haverá algo de relevante a dizer sobre a língua quando olhamos para estes primeiros capítulos?

    Comecemos pelo mais simples: as palavras que usei para contar esta história. Por exemplo, a palavra «átomo». É uma palavra que descende da palavra grega cunhada por Demócrito para designar uma partícula indivisível. Sabemos hoje que o átomo é divisível (aliás, é assim que a energia atómica funciona), composto, como é, por neutrões, protões e electrões, mas a palavra mantém­-se. O conhecimento, quando avança, não implica apenas a criação de novas palavras: a definição das palavras já existentes também pode mudar. Surge, por vezes, um desfasamento entre a definição técnica dada por especialistas e a definição genérica, na rua.

    Há palavras que surgem antes de conhecermos bem a realidade que representam − e não deixamos de as usar depois de compreendermos essa realidade. Já tínhamos dado nomes às estrelas muito antes de sabermos que eram bolas de gás gigantescas − ainda hoje, encontramos expressões como «Estrela da Manhã» para designar aquilo que sabemos ser um planeta. Não há aqui uma separação entre cientistas e outras pessoas: os próprios cientistas usam, muitas vezes, uma palavra com uma definição vaga para poderem trabalhar com aquilo que ainda não sabem − e, além disso, os próprios cientistas podem usar uma palavra com um sentido determinado quando escrevem um artigo científico e com outro sentido quando falam com amigos.⁷ Note­-se ainda que muitas destas palavras estão em várias línguas, com formas ligeiramente diferentes. O uso de cada uma em cada língua pode variar − e também varia dentro de cada língua.

    Olhemos agora para a palavra «galáxia». Tem origem na palavra grega para «leite». A nossa galáxia chama­-se Via Láctea por parecer leite derramado no céu − e todas as outras galáxias, demasiado longínquas para parecerem alguma coisa, também ficaram com leite no nome (leite grego, neste caso). Outras línguas deram outros nomes à Via Láctea: em mandarim, por exemplo, a Via Láctea é um rio de prata… Não teriam, por outro lado, palavras para o Grupo Local, o conjunto de galáxias em que se insere a Via Láctea. Até ao século

    xx

    , pensávamos que a nossa galáxia era o Universo − que não havia nada para lá da Via Láctea. Descobrimos, entretanto, que não era bem assim. Mais uma vez, a palavra manteve­-se.

    Chegamos agora à própria expressão «Big Bang». A alguns leitores mais ciosos da pureza da língua custará ver uma expressão inglesa no título de um livro de história da língua. No entanto, a expressão é também portuguesa… Foi criada por Fred Hoyle para tentar explicar de forma visual uma teoria em que não acreditava. O nome pegou, embora a teoria não implique nenhuma explosão, mas sim uma expansão rápida a partir de um ponto único. Uma expressão criada quase na brincadeira para descrever uma teoria em que não se acreditava e uma expressão não muito precisa − mesmo assim, foi assumida como nome da teoria e hoje está consagrada em inglês e em muitas outras línguas.

    Uma dessas línguas é o português. Quando uma língua importa uma palavra ou expressão de outra língua, pode fazê­-lo de várias maneiras. Podemos decalcar a palavra ou expressão, usando palavras da nossa língua. O inglês, por exemplo, decalcou a expressão latina «Via Lactea», transformando-a em «Milky Way». Podemos importar a palavra ou expressão, adaptando­-a à nossa fonética e ortografia, como fizemos, por exemplo, com «futebol» (esta adaptação pode levar algum tempo). Ou, em certos casos, importamos a palavra sem a adaptar à ortografia − mas adaptando­-a quase sempre à nossa fonética. Foi o que fizemos com «Big Bang». Note­-se que todos estes processos ocorrem sem grande controlo. Há palavras aparecem e são muito repetidas, mas que desaparecem como um fósforo ardido. Outras acabam por ficar, tornando­-se parte da língua.

    Deveríamos tentar usar uma expressão mais portuguesa? Se a expressão estivesse agora a entrar na língua, tentaria fazer essa adaptação. No entanto, não vale a pena purificar o que já está integrado na língua: teríamos um trabalho medonho e, no fim, ficaríamos com a língua feita em fanicos. Tentamos conter o excesso de estrangeirismos recentes e escusados, muitas vezes sintoma de textos mal escritos ou pouco respeitadores dos leitores, reconhecendo que alguns desses estrangeirismos tornar­-se­-ão, inevitavelmente, parte da língua. Quais serão? Não sabemos. Mas sabemos que «Big Bang» é o termo que a grande maioria dos falantes usa para se referir ao… Big Bang.

    O português importou a expressão e, apesar de ter havido algumas tentativas de adaptação ortográfica («bigue­-bangue»), de importação como nome comum (o «big­-bang» que está em vários dicionários) ou ainda de importação por decalque («Grande Explosão»), é a expressão com a ortografia original que prevalece. A expressão integrou­-se na língua: ganhou um género (masculino) e a sua pronúncia é portuguesa. Um falante português, em geral, não lê o à inglesa quando está a falar português, mesmo que o faça quando está a falar inglês. O mesmo acontece com a vogal: em inglês, o de «big» é lido como uma vogal que não existe em português (a vogal que permite distinguir «sheep» de «ship»). O representa um som vagamente semelhante ao som do português, embora muitos ingleses estejam convencidos de que lêem as duas letras em separado (não lêem). Os portugueses lêem o último e nasalam a vogal anterior, que lêem, em muitos casos, como um /e͂/⁸.

    Durante a revisão do livro, discutimos se deveria usar «big­-bang» (como está nos dicionários) ou «Big

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