Invisíveis, mas Necessárias: Mulheres Trabalhadoras da Mineração
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Invisíveis, mas Necessárias - Anabelle Carrilho
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
No posto de gasolina no município de 15.000 habitantes, na primeira hora da manhã, observo o ônibus da mina subterrânea parar, trazendo operadores ao fim do turno. Muitos deles descem fazendo sinal da cruz, em agradecimento por voltar após mais um dia de trabalho. Esta cena compõe-se apenas de homens. Os corajosos soldados da Mineração.
Mas muitas das nossas não se furtam a tal experiência. É para elas que este livro foi escrito. Para todas as trabalhadoras e trabalhadores que se arriscam todos os dias pelo nosso conforto, pela continuidade intocável da sociedade do capital, assim como a conhecemos.
Ao Fred, companheiro incansável.
À Irene e ao Hugo, mãe e pai maravilhosos, a quem dedico minhas conquistas.
AGRADECIMENTOS
Não existe conhecimento isolado e não situado. Todo saber constrói-se na relação com pessoas e experiências que se cruzam e acumulam de forma única nas trajetórias de vida. Por isso, é impossível nomear todos/as aqueles/as que colaboraram direta ou indiretamente para a construção deste livro. As menções abaixo são tentativas de agradecer representantes do conjunto das valiosas contribuições que me possibilitaram chegar até aqui.
À Prof.ª Dr.ª Marlene Teixeira, obrigada pela solidariedade, profissionalismo, respeito e fôlego em continuar. Ao Grupo de Pesquisa Gênero, Política Social e Serviços Sociais – Genposs, sob sua coordenação, agradeço também a acolhida.
À querida Prof.ª Dr.ª Silvia Cristina Yannoulas, que de orientadora tornou-se grande amiga. Agradeço por toda compreensão e amor que possibilitaram superar as dificuldades. E pelo incomensurável aprendizado acadêmico e de vida que me proporciona sempre.
Às professoras e pesquisadoras Dr.ª Lourdes Maria Bandeira, Dr.ª Tânia Mara Campos de Almeida e Dr.ª Maria Rosa Lombardi pelas contribuições. À Prof.ª Drª Raquel Quirino, pela inspiração da mineração como cenário.
Às/aos integrantes do Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação e Discriminação – TEDis, nas pessoas das queridas Gabriela Canuto Nazaré, Kelma Jaqueline Soares, Mariana Mazzini e Talita Oliveira pelas trocas de experiências e saberes.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, agradeço pelo apoio ao projeto de pesquisa Trabalho e Relações de Gênero: Análise da Feminização das Profissões e Ocupações
desenvolvido de 2011 a 2013 pelo grupo Trabalho, Educação e Discriminação – TEDis da UnB, por meio do Edital Universal para a área de Serviço Social MCT/CNPq n.º ٠١٤/٢٠١١, que originou o presente estudo.
Ao companheiro Frederico Bedran Oliveira, que possibilitou a realização desta pesquisa em vários aspectos: desde o contato e interação com as empresas participantes, até a revisão de termos e processos técnicos por mim antes desconhecidos. Obrigada por ter compartilhado seu vasto conhecimento e visão crítica sobre a política mineral, e por me permitir compreender um pouco mais desse seu universo feito de suor, sangue, lágrimas e minérios.
À Eletrobras Eletronorte, por meio das/os companheiras/os de trabalho e luta cotidiana: Gleide Brito e Maria da Conceição Bogdezevicius, com quem dividi alegrias e angústias nos últimos anos, especialmente neste difícil momento de retração de direitos duramente conquistados.
Às empresas participantes, que disponibilizaram o acesso a dados e ambientes imprescindíveis para o desenvolvimento da pesquisa. Por fim, meu especial agradecimento às trabalhadoras e trabalhadores que participaram do estudo, doando seu tempo e suas experiências, compartilhando memórias e emoções, muitas vezes doloridas. Obrigada pela confiança!
[...] O maior trem do mundo
puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
engatadas geminadas desembestadas
leva meu tempo, minha infância, minha vida
triturada em 163 vagões de minério e destruição.
[...] Lá vai o trem maior do mundo
vai serpenteando vai sumindo
e um dia, eu sei, não voltará
pois nem terra nem coração existem mais.
(Trechos do Poema O maior trem do mundo
de Carlos Drummond de Andrade, publicado no jornal O Cometa Itabirano
, 1984).
Verdade que é difícil juntar estas formas quase invisíveis do sexismo cotidiano, que aparecem nos desabafos, nas queixas e denúncias. Mas são estas práticas miúdas que constroem a repressão, a humilhação das mulheres. Divididas entre pobres e ricas, mas também entre brancas e negras, bonitas e feias, sulistas ou nordestinas, que podem ter os filhos que querem ou impedidas de tê-los, para não prejudicar a qualidade da nossa população. Procura-se uma política que dê conta dos sofrimentos cotidianos e dificuldades de mulheres que querem trabalhar e ganhar sua vida, que querem ter filhos ou evitá-los, que querem ser tratadas com dignidade.
(Elizabeth Souza-Lobo, junho de 1985).
PREFÁCIO
Mulheres na Mineração - permanências e desafios da divisão sexual do trabalho
O livro que você tem em mãos, produto da pesquisa realizada por Anabelle Carrilho em seu doutoramento, é tributário de uma tradição no campo dos feminismos e dos estudos de gênero que se construiu ao longo das últimas décadas. A divisão sexual do trabalho é temática pioneira dentro das pesquisas no campo das ciências humanas e sociais sobre as desigualdades de gênero. No caso do Brasil, o tema do trabalho feminino foi responsável, ainda em fins da década de 1960, por inaugurar nas universidades brasileiras o que então se denominou estudos sobre mulher. A premissa adotada por esses estudos é de que a força de trabalho não é uma categoria assexuada; ao contrário, o sexo participa e é uma dimensão central na definição da qualidade da relação entre trabalho e capital.
Em uma perspectiva histórica e relacional, os estudos centrados na divisão sexual do trabalho permitem compreender a dinâmica mediante a qual homens e mulheres são distribuídos no mercado de trabalho e também o modo como essa distribuição diferenciada – ancorada em percepções acerca do que é próprio ao feminino e ao masculino - hierarquiza não só as atividades e profissões, mas é fundamental na constituição de um sistema de gênero, que valoriza tudo associado ao masculino e desqualifica o que é associado ao feminino. O processo de feminização e de masculinização de ocupações e áreas do trabalho, de fato, é uma dimensão central na dinâmica da divisão sexual do trabalho, que persiste como elemento determinante na organização das relações capitalistas. Assim, em consonância com os princípios da separação e da hierarquização, atribui-se aos homens o trabalho na denominada esfera produtiva – considerado de maior valor e prestígio – enquanto às mulheres compete as atividades da chamada esfera da reprodução – menos valorizadas socialmente.
Os estudos pioneiros de Heleith Saffioti, Eva Blay e Elizabeth de Souza-Lobo, e suas primeiras obras, publicadas naquele período, ganharam projeção e se tornaram leitura obrigatória nas universidades do país.
A preocupação central desses estudos foi revelar as raízes e os mecanismos por meio dos quais a divisão sexual organiza o mundo do trabalho.
Ao enfatizar a dimensão sexuada do trabalho, demonstraram como o "fator sexo" organiza e dinamiza a sociedade de classes, fazendo com que grandes contingentes de mulheres, em virtude da condição feminina, fossem mantidos alijados do mercado de trabalho ou inseridos em postos subalternos.
Desde então e ao longo desse período, os temas do trabalho, da divisão sexual do trabalho, dentre muitas outras problemáticas concernentes à condição feminina, seguem como objetos privilegiados de estudo de intelectuais feministas de diferentes áreas e sob variados enfoques: mercado e divisão sexual do trabalho; a participação das mulheres no mercado de trabalho; o trabalho doméstico; o trabalho não remunerado; a relação entre trabalho e família, entre outros.
Nesse vasto campo de pesquisa que se constituiu em torno da problemática das desigualdades associadas à divisão sexual do trabalho, o tema da feminização das ocupações – que constitui objeto central deste livro – se colocou desde as primeiras experiências de pesquisa de Anabelle Carrilho, na graduação, como um fenômeno a ser melhor estudado. A partir da segunda metade do século XX, o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho intensificou-se significativamente e ganhou novo impulso com a crise capitalista que eclodiu em 2008 e com o avanço da ideologia neoliberal, que marca esse processo, suscitando novos interrogantes e desafios.
A análise da dinâmica de uma empresa de engenharia, área tradicionalmente vista como masculina, frente a ações de política de ação afirmativa de gênero, durante o mestrado, trouxe novas perspectivas e interrogações acerca do assunto. Nessa oportunidade, a autora dedicou-se a analisar a política de ação afirmativa de gênero como uma dimensão importante a se incorporar nas reflexões relacionadas à política social, no campo do trabalho e na dinâmica da divisão sexual que o organiza. Sua análise centrou-se na primeira iniciativa relacionada ao tema, implantada no país pelo governo federal, por meio da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM-PR): o Programa Pró-equidade de Gênero. O exame da experiência de realização do Programa, por uma empresa pública do setor eletroenergético, revelou que a dinâmica da divisão sexual do trabalho continua a se reproduzir, mesmo com a entrada de mulheres em uma área considerada masculina, como é o caso da Engenharia – carro chefe da empresa. A pesquisa mostrou assim que esse contexto mais geral dilui e obstaculiza as repercussões da iniciativa, não obstante as contribuições trazidas para a incorporação do debate sobre divisão sexual e desigualdades no mundo do trabalho, no espaço da empresa.
Na pesquisa que resultou no livro Invisíveis, mas necessárias: mulheres trabalhadoras da mineração, a divisão sexual do trabalho permanece como principal questão a ser analisada. Aqui, o centro das reflexões da autora é o debate em torno da feminização enquanto um fenômeno associado ao sistema de gênero e à dinâmica capitalista atual.
Como destaca Anabelle Carrilho, o processo que lhe interessa examinar refere-se à feminização do mercado de trabalho, que se traduz no aumento quantitativo de mulheres ou impactos qualitativos em determinadas ocupações e áreas de trabalho. Intensificada em um contexto de crise capitalista e acelerada precarização do trabalho, a feminização pode se articular com a feminilização, embora com ela não se confunda, como ressalta a autora. Contemplando alterações de caráter qualitativo, o fenômeno da feminização remete às mudanças no significado e nas condições concretas de trabalho, em geral para pior, em virtude do ingresso de mulheres.
A pesquisa apresentada neste livro se debruça sobre o tema com um olhar bastante inovador quando se dedica a pensar o processo de feminização do trabalho em um espaço considerado tradicionalmente masculino e, também, pouco estudado, dentro desse ponto de vista. A pesquisa realizada por Anabelle Carrilho nos desafia a examinar o fenômeno da feminização a partir de outra perspectiva; trata-se de pensá-la a partir de outro plano, focalizando aqueles processos que impedem que determinadas ocupações e áreas do mundo do trabalho incorporem as mulheres, de modo significativo e não hierárquico, fazendo com que persista, amplamente, o seu reconhecimento como espaço e trabalho de homem
.
O território em que se concretizou a pesquisa - as minas - relaciona-se a uma atividade econômica centenária e tradicional e que, contemporaneamente, constitui-se um setor estratégico para o desenvolvimento capitalista como fornecedor dos insumos necessários à produção de alta tecnologia. Ademais, a mineração, como demonstra o estudo da autora, é uma dessas ocupações que persiste como uma área socialmente masculinizada e fortemente demarcada pela divisão sexual do trabalho, não obstante a lenta e relativa feminização. Por meio de observação direta, entrevistas com trabalhadores e trabalhadoras, e análise de documentos em minas - a céu aberto e subterrânea, públicas e privadas, de capital nacional e multinacional - a autora pôde identificar a dinâmica de inserção das mulheres e da organização do trabalho nesses espaços que as faz invisíveis embora necessárias.
Como a análise dos dados de sua pesquisa demonstraram, são fatores de ordem social, política, cultural e econômica relacionados ao sistema de gênero, antes que questões de natureza objetiva, que determinam a feminização (ou não) da mineração. Tais fatores, coerentes com a ordem de gênero dominante, atuam explicitamente para manter a divisão sexual do trabalho e as relações de gênero no interior das minas, mas também fora delas, fatores que podem, inclusive, fugir à lógica ou à racionalidade da lucratividade.
Vale ressaltar por último, mas não menos importante, que a pesquisa realizada por Anabelle Carrilho, que constitui este livro, ao focalizar o tema da mineração, incita-nos a reflexões que extrapolam o horizonte dos feminismos e dos estudos de gênero, ou ainda das ações afirmativas e da política social. Como enfatizado pela autora, pensar a mineração e sua centralidade como atividade econômica e laboral no capitalismo contemporâneo, em tempos de acelerada degradação ambiental, leva-nos a interrogar mais amplamente o modelo de desenvolvimento e de civilização que almejamos. Sem dúvida uma provocação necessária.
Boa leitura!
Marlene Teixeira Rodrigues
Julho de 2020.
Pós-doutora em Sociologia pela Universidade Autônoma de Barcelona (2015) e em Democratização e Direitos Humanos pela Universidad de San Martin (2011); doutora em Sociologia (2003) e mestra em Política Social (1995) pela Universidade de Brasília. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Política Social - PPGPS, da Universidade de Brasília (2004-), onde atua também como coordenadora do Genposs - Grupo de estudos e pesquisas sobre Gênero, Política Social e Serviços Sociais, vinculado ao PPGPS e ao DGP-CNPQ. Pesquisadora da Rede de Pesquisa Família e Política Social (Refaps/UFSC). Pesquisadora associada do Instituto de Estudos em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC).
Lista de ABREVIATURAS E SIGLAS
Sumário
INTRODUÇÃO 19
parte I
Garimpando Elementos 25
CAPÍTULO 1
PERCURSOS DA PESQUISA 27
1.1 Estratégias da pesquisa 33
PARTE II
O Mapa da Mina: o universo da Mineração 43
CAPÍTULO 2
Capitalismo e Mineração no Brasil 45
CAPÍTULO 3
Organização e Relações de
Trabalho na Mineração 55
3.1 Universo a céu aberto 57
3.2 Universo subterrâneo 64
3.3 Pesquisa mineral de natureza pública 76
3.4 Semelhanças e diferenças: análise comparada dos universos estudados 77
PARTE III
Nem tudo o que reluz é ouro: feminização
do
mercado de trabalho e da Mineração 87
CAPÍTULO 4
Mineração e mitos de masculinidade 89
CAPÍTULO 5
TRAÇOS E TENDÊNCIAS DA Feminização
da Mineração
no Brasil 97
5.1 Mulheres e mineração no Brasil Colonial 104
5.2 Mulheres e mineração no Brasil República 107
CAPÍTULO 6
Feminização
recente da Mineração: a realidade
das empresas estudadas 111
6.1 Limites e possibilidades para a feminização da mineração 113
6.2 Feminização da mineração, masculinização das trabalhadoras? 122
6.3 Feminização, precarização e exploração do trabalho 129
6.4 O ambiente de trabalho como espaço de violências 141
6.5 Feminização: categoria de análise? 147
CAPÍTULO 7
Feminização DA MINERAÇÃO
e PolíticaS SociaIS 155
7.1 Políticas do setor mineral e feminização: "por que tão poucas, por
que tão devagar"? 161
7.2 Precarização e responsabilidades familiares na mineração 175
EPÍLOGO
UMA DISCUSSÃO QUE NÃO SE ESGOTA. DEBATES E DISCURSOS SOBRE MULHERES E MINERAÇÃO NOS ÚLTIMOS
ANOS (2016-2020) 187
REFERÊNCIAS 195
ÍNDICE REMISSIVO 211
INTRODUÇÃO
A presença de mulheres no mercado de trabalho aumentou significativamente nos últimos anos, fenômeno comumente conhecido como feminização (YANNOULAS, 2011; 2012; 2013). No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, vem registrando taxas crescentes de participação das mulheres na população ocupada e tendência de diminuição da participação masculina. Apesar disso, os homens ainda ocupam muito mais o mercado de trabalho. Em 2018 o nível de ocupação foi de 64,3% para eles e 45,6% para as mulheres (IBGE, 2019).
Além dessa persistente desigualdade, observa-se também a persistência da divisão sexual do trabalho, que separa e hierarquiza trabalhos de homens e mulheres. Ou seja, além de realizarem atividades historicamente diferentes, os conhecimentos e trabalhos tradicionalmente masculinizados são socialmente mais valorizados (KERGOAT, 2009). As mulheres permanecem ocupando áreas que reproduzem as atividades domésticas e de cuidado, notadamente o emprego doméstico e profissões de nível superior como pedagogia, enfermagem e serviço social. Por outro lado, muitos espaços de trabalho e conhecimento que representam detenção de poder econômico, político e tecnológico continuam masculinizados, sendo poucas as que se arriscam a romper as paredes invisíveis (CAPPELLIN, 2008a) que as impedem de adentrar tais âmbitos.
Como ilustração, o trabalho doméstico remunerado é um espaço historicamente feminizado e precário. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (PINHEIRO et al, 2019), aponta que, em 2018, existiam 6,2 milhões de pessoas no emprego doméstico no Brasil. Dessas, 92% eram mulheres e 63% mulheres negras. Isso significa que o trabalho doméstico remunerado corresponde à atividade principal de 14,6% das mulheres brasileiras ocupadas e menos de 1% dos homens. Até mesmo a comparação entre trabalhadores e trabalhadoras domésticas revela a desigual divisão sexual do trabalho. O mesmo estudo mostra que, enquanto as trabalhadoras concentram-se quase 100% em serviços internos do ambiente doméstico, cerca de um terço dos homens trabalhadores domésticos desenvolvem atividades externas, como jardineiros ou motoristas.
Quanto às profissões de nível superior, de acordo com o Censo da Educação Superior 2017, apesar das mulheres serem maioria nos