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História da teologia
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História da teologia

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Este clássico da Teologia Histórica aborda a história do pensamento teológico através dos séculos. Dividindo sua obra em três grandes partes – a Era dos Pais Eclesiásticos, a Idade Média e o Período Moderno –, Bengt Hägglund inicia seu estudo com os Pais Apostólicos e conclui com a análise das principais tendências teológicas no início do século XX, traçando "a história do pensamento teológico através dos séculos" e analisando "as diferentes escolas teológicas com suas peculiaridades".
LanguagePortuguês
Release dateMay 17, 2021
ISBN9786555910247
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    História da teologia - Bengt Hägglund

    1966.

    I PARTE

    A ERA DOS PAIS ECLESIÁSTICOS

    CAPÍTULO 1

    OS PAIS APOSTÓLICOS

    Quando falamos nos Pais Apostólicos, geralmente nos referimos a alguns autores cristãos do fim do primeiro século e do início do segundo, cujos escritos chegaram até nós. Esses escritos — em sua grande maioria de natureza incidental (cartas, homilias) — são de valor para nós, porque, ao lado do Novo Testamento, são as fontes mais antigas que possuímos como testemunho da fé cristã. Esses escritos, no entanto, não pretendem ser apresentações doutrinárias no sentido restrito do termo; como resultado, não podemos esperar deles um quadro completo dos artigos de fé. E, enquanto sua contribuição para o desenvolvimento da teologia foi relativamente pequena, eles contribuíram de forma notável para elucidar o conceito de fé e os costumes da Igreja que prevaleceram nas primeiras congregações.

    Os mais importantes desses escritos são os seguintes:

    — A Primeira Epístola de Clemente, escrita em Roma, por volta de 95.

    — As Epístolas de Inácio; sete cartas a vários destinatários, escritas por volta de 115, durante a viagem de Inácio a Roma, e para sua morte de mártir já prevista.

    — A Epístola de Policarpo, escrita em Esmirna, por volta de 110.

    — A Epístola de Barnabé, provavelmente escrita no Egito, por volta de 130.

    — A Segunda Epístola de Clemente, escrita em Roma ou Corinto, por volta de 140.

    — O Pastor de Hermas, escrito em Roma, por volta de 150.

    — Fragmentos de Papias, escritos em Hierápolis, na Frígia, por volta de 150, citados nas obras de Eusébio e Irineu (entre outros).

    — A Didaché (Os Ensinamentos dos Doze Apóstolos), escrita na primeira metade do século, provavelmente na Síria.

    CARACTERÍSTICAS GERAIS

    Apesar de, cronologicamente, os escritos dos Pais Apostólicos estarem próximos dos apóstolos e do Novo Testamento, a diferença entre essas fontes é grande e evidente, tanto com respeito à forma quanto ao conteúdo. Alguns desses escritos foram incluídos, por algum tempo, no cânone do Novo Testamento, mas não foi por acidente que afinal foram excluídos. A diferença entre os livros do Novo Testamento e os escritos dos Pais Apostólicos se manifesta de muitas maneiras. Tem-se feito tentativas de determinar qual dos apóstolos (Pedro ou Paulo, por exemplo) influenciou os homens que produziram esses escritos, mas evidenciou-se que essa pesquisa é desnecessária. A teologia dos Pais Apostólicos não pode ser atribuída a qualquer membro individual do grupo apostólico; reflete, ao invés disso, a fé da congregação típica dos primeiros anos da história cristã. As semelhanças entre esses escritos e o Novo Testamento não dependem necessariamente do fato que os Pais Apostólicos foram influenciados diretamente por um autor canônico ou outro; refletem, antes, o fato que ambas as fontes tratam da mesma fé.

    Comparados com o Novo Testamento, os Pais Apostólicos se distinguem especialmente devido a sua ênfase no que geralmente se denomina moralismo (Anders Nygren usa a palavra nomismo; em português também se emprega o termo legalismo). A proclamação da Lei ocupa lugar de destaque nos escritos dos Pais Apostólicos. Isso acontece em parte porque se dirigem a novas congregações cujos membros recentemente abandonaram o paganismo. Fazia-se necessário substituir seus antigos hábitos com praxe e costumes cristãos. A fim de realizá-lo, o costume judaico de pregar a Lei foi usado até certo ponto, juntamente com outras praxes congregacionais judaicas, apesar do fato de haver marcada oposição ao judaísmo e à lei cerimonial. O Evangelho era apresentado como nova Lei que Cristo ensinara mostrando o caminho da salvação. Dizia-se que a antiga Lei tinha sido abolida e era obsoleta, mas nos ensinamentos de Cristo havia nova Lei. A vida cristã dizia-se consistir, acima de tudo, em obediência a essa nova Lei.

    O moralismo não se encontrava na proclamação da Lei como tal, mas na maneira como isso era feito. Entre os Pais Apostólicos havia forte tendência de ressaltar a obediência à Lei, bem como a imitação de Cristo, como sendo o caminho à salvação e o conteúdo essencial da vida cristã. A morte e ressurreição de Cristo eram enfatizadas como constituindo o fundamento para a salvação dos homens. Por causa da obra de Cristo, o homem pode receber o perdão dos pecados, o dom da vida, a imortalidade e a libertação dos poderes da corrupção. Porém, mesmo no contexto em que tais assuntos eram discutidos, os Pais Apostólicos comumente faziam recair forte ênfase na Lei e no novo modo de vida. A análise de alguns dos pontos fundamentais mais frequentemente mencionados elucidará um pouco mais essa tendência.

    Justiça, como regra geral, não se descrevia como dádiva de Deus outorgada aos homens de fé (cf. Rm 3.21 ss.), mas, em vez disso, era apresentada em termos de conduta cristã apropriada. Era, muitas vezes, apresentada como o poder de Cristo que capacita o homem a fazer o que é correto e bom, mas ao mesmo tempo também se dizia, de maneira um tanto unilateral, que a nova obediência é exigência prévia para perdão e salvação. Esta era considerada não como dom da graça pura, dado aqui e agora àqueles que creem, mas como algo outorgado após esta vida, especialmente como recompensa aos que obedeceram a Cristo. Com a exceção de Primeiro Clemente, os escritos dos Pais Apostólicos têm muito pouco em comum com a ênfase paulina de justificação pela fé. Não é a graça imerecida que se situa no centro dessa teologia, mas, antes, a nova vida que Cristo ensinou e para a qual ele capacita os homens. Deve-se, no entanto, lembrar que o caráter desses escritos, bem como o objetivo que os autores tinham em mente, eram, em parte, responsáveis por tal ênfase. Além disso, o fato que eram escritos casuais, que não pretendiam ser completos, é outra faceta da história. Esses escritos pressupunham que seus leitores também tinham ouvido a proclamação oral em que outros aspectos da fé cristã devem ter sido acentuados de maneira apropriada.

    Salvação é apresentada, na maioria das vezes, em termos de imortalidade e indestrutibilidade em vez de em termos de perdão dos pecados. Outro aspecto fortemente acentuado nesta conexão é o conhecimento. Cristo nos trouxe o conhecimento da verdade. Ele é o Revelador enviado por Deus a fim de que possamos conhecer o Deus verdadeiro e assim sermos libertos da servidão da idolatria e da falsa antiga aliança. Os Pais Apostólicos não diziam, no entanto, que Cristo é mero ensinador; ensinavam que ele é Deus, aquele por cuja morte e ressurreição o dom da imortalidade é outorgado.

    O pecado é descrito como corrupção, maus desejos e cativeiro sob o poder da morte, além de erro e ignorância; a ideia de culpa não é muito acentuada. Notamos aqui um paralelo ao que foi dito sobre a salvação; os Pais Apostólicos consideravam-na como sendo imortalidade ou a iluminação decorrente da verdade, tal como se encontra em Cristo. A relação entre salvação e perdão ou redenção também se encontra neles — especialmente em Barnabé —, mas não ocupa o mesmo lugar que em Paulo ou, por exemplo, na tradição protestante. Associa-se a salvação à vida física, em termos de libertação da morte e corrupção. Luz e vida, que formam seu conteúdo, relacionam-se com a lei. O caminho da obediência é o caminho à vida.

    A tendência moralista dos Pais Apostólicos aparece com maior evidência em seu conceito de graça. No Novo Testamento, graça é o amor de Deus revelado em Cristo. Relaciona-se, por isso, com o próprio Deus e com a obra redentora de Cristo. O homem é justificado por graça, e não devido à força de suas próprias obras. Entre os Pais Apostólicos esse conceito neotestamentário de graça é substituído por outro, no qual a graça é considerada um dom que Deus outorga ao homem por intermédio de Cristo. Esse dom, que algumas vezes é situado na mesma categoria do conhecimento que chegou até nós mediante Cristo, é imaginado como sendo um poder interno associado com o Espírito Santo, pelo qual o homem pode buscar a justiça e andar no caminho da nova obediência. A graça é, por conseguinte, o pressuposto necessário à salvação, mas não no sentido neotestamentário — que a justiça é o dom de Deus outorgado aos que creem em Cristo. Os Pais Apostólicos, pelo contrário, dizem que a graça confere o poder pelo qual o homem pode alcançar a justiça e, afinal, ser salvo.

    A linha de pensamento aqui apresentada claramente indica a relação entre o conceito medieval de graça, com sua ênfase em boas obras, e o padrão anteriormente estabelecido nessa tradição (cf. Torrance, The Doctrine of Grace in the Apostolic Fathers, 1948). Há, ao mesmo tempo, contudo, expressões que se relacionam mais intimamente com a doutrina paulina da justificação. Além disso, é também necessário que se observe, a esta altura, que estamos aqui tratando de literatura exortativa, destinada a educar as pessoas na nova vida, salientando fortemente o chamado à obediência aos mandamentos de Cristo. Essa ênfase era feita a fim de se providenciar uma influência que contrabalançasse a moralidade pagã que dominava o ambiente no qual viviam as pessoas a quem esses escritos eram dirigidos. Como resultado, não é lícito usar os escritos dos Pais Apostólicos para tirar conclusões extremas com respeito a toda a proclamação cristã desse período.

    CONCEITO DE ESCRITURA

    Assim como acontece nos livros do Novo Testamento, os Pais Apostólicos julgavam que os livros do Antigo Testamento possuíam sua própria autoridade intrínseca. O fato que citam o Antigo Testamento tão frequentemente é tanto mais surpreendente quanto lembramos que seus escritos foram dirigidos, na maioria dos casos, a cristãos que tinham vindo de ambiente pagão.

    A Igreja era considerada o Novo Israel e, como tal, a herdeira dos escritos associados com a antiga aliança. O verdadeiro propósito da Lei e dos profetas era de natureza espiritual, fato revelado através das palavras e obras de Cristo. A Epístola de Barnabé, que tratou desse problema de modo especial, não faz qualquer distinção óbvia entre o que mais tarde se denominou interpretação tipológica e interpretação alegórica livre. Pressupunha-se desde o início que a Lei de Moisés tinha objetivo mais profundo. Quando, por exemplo, a Lei de Moisés proíbe que se comam animais impuros, julgava-se que a Lei, com esses preceitos, condenava os pecados que tais animais simbolizavam. Referências a Cristo e ao Novo Testamento eram encontradas mesmo nos pormenores mais insignificantes (cf. por exemplo: Barnabé IX, 8). Na base de tudo isso, encontrava-se a convicção de que a Escritura era verbalmente inspirada pelo Espírito Santo; imaginando-se que mesmo as minucias externas ocultavam sabedoria espiritual de alguma espécie, que os judeus com seu método de interpretação literal foram incapazes de descobrir.

    Os Pais Apostólicos também testificam, em termos insofismáveis, que os quatro evangelhos e os escritos dos apóstolos estavam começando a ser reconhecidos como Escritura Sagrada com a mesma autoridade do Antigo Testamento, mesmo que o Novo Testamento ainda não tivesse alcançado sua forma final em sua época. Quase todos os livros que chegaram a ser incluídos no Novo Testamento são citados ou referidos nos Pais Apostólicos. A tradição oral que se originara com os apóstolos também era considerada como tendo autoridade decisiva para a fé e praxe congregacionais. Segundo Inácio, o bispo era o portador dessa tradição válida.

    A DOUTRINA DE DEUS; CRISTOLOGIA

    Os Pais Apostólicos ensinavam um conceito bíblico da natureza de Deus, baseado na ideia de Deus encontrada no Antigo Testamento. Concebiam Deus como o Todo-Poderoso que criou o mundo e revelou sua vontade, sua justiça e sua graça aos homens. Assim o expressa o Pastor de Hermas: Crê, acima de tudo, que Deus é um, aquele que criou e ordenou todas as coisas e formou do nada tudo o que existe. Enfatiza-se a fé no único Deus verdadeiro. A doutrina do Deus Trino ainda não aparece plenamente desenvolvida, mas a fórmula trinitária era empregada; por exemplo, no batismo, a fé na Trindade estava, naturalmente, implícita. A explicação da maneira como as três pessoas da divindade se relacionam entre si pertence, todavia, ao período posterior.

    A divindade de Cristo é salientada enfaticamente nos Pais Apostólicos. Plínio, o Moço, dá testemunho disso na bem conhecida frase incluída em uma carta ao Imperador Trajano, ao dizer que os cristãos cantam a Cristo como cantam a Deus. Considerava-se Cristo como o Filho preexistente de Deus, que participou na obra da criação; é o Senhor do Céu, que aparecerá como juiz dos vivos e dos mortos. Cristo é especificamente denominado Deus notadamente nas epístolas de Inácio. Nosso Deus, Jesus Cristo, nascido de Maria segundo o decreto de Deus, verdadeiramente de Davi, mas também do Espírito Santo, escreveu ele em sua Epístola aos Efésios (XVIII, 2).

    Afirmavam estar Cristo presente na congregação como seu Senhor, e os cristãos se unem a ele como participantes em sua morte e ressurreição. Essa união com Cristo é destacada de modo especial por Inácio. Este escreveu aos cristãos em Esmirna: Chegou a meu conhecimento que estais estabelecidos em fé sincera, firmemente unidos à cruz de Cristo tanto no corpo como na alma, constantes no amor mediante o sangue de Cristo, e convencidos que nosso Senhor é na verdade descendente de Davi segundo a carne, e Filho de Deus segundo a vontade e o poder de Deus (Primeira Epístola aos Esmirneanos).

    Também encontramos em Inácio várias afirmações dirigidas explicitamente contra (ou provocadas pelos) gnósticos judaico-cristãos, nas quais enfatiza a verdadeira humanidade de Cristo. A vida real de Cristo na Terra é vindicada em oposição àqueles que mantinham que Jesus tão somente parecia existir em forma humana, que apenas parecia ter sofrido na cruz e que depois da ressurreição retornou a uma existência espiritual incorpórea. Tal opinião é conhecida como docetismo (do grego dokein).

    O conflito contra o docetismo foi uma das facetas mais significativas da teologia cristã primitiva, visto contradizer o docetismo aquilo que era básico na proclamação apostólica, a verdadeira morte e ressurreição de Cristo. A salvação resultava do que realmente acontecera dentro do contexto da história, e do que os apóstolos foram testemunhas oculares. Quando o docetismo, por meio de suas interpretações, eliminou a morte e a ressurreição de Cristo, a salvação era relacionada a um ensinamento abstrato, e não ao que Deus realizara em Cristo. O docetismo assumiu várias formas: ou negava a verdadeira humanidade de Cristo empregando teorias sobre corpo fantasmagórico, ou então escolhia certos aspectos da vida terrena de Cristo como sendo potencialmente verídicos, enquanto negava o restante dos relatos evangélicos através de suas explicações.

    Certo gnóstico, Cerinto, habitante da Ásia Menor, tinha a opinião de que Jesus fora unido a Cristo, o Filho de Deus, por ocasião de seu Batismo, e que Cristo abandonou o Jesus terreno antes da crucificação. Acreditava-se que o sofrimento e a morte de Jesus eram incompatíveis com a divindade de Cristo. Outra teoria docética, associada a Basilides, sugeria que ocorrera um engano, que Simão, o Cireneu, fora crucificado em lugar de Cristo, escapando Jesus, desse modo, da morte na cruz.

    Conforme Irineu, o Evangelho de João foi escrito com esta finalidade, entre outras, a saber, a de refutar o gnóstico Cerinto mencionado acima. O ponto de vista deste se caracterizava pelo contraste nítido que estabelecia entre o homem Jesus e o ser celestial, Cristo, que podia residir em Jesus apenas por breve período de tempo. Em oposição a isso, o Evangelho de João nos diz que o Verbo se fez carne; de modo semelhante, a Primeira Epístola de João afirma que Jesus Cristo veio em carne (2.22; 4.2-3).

    Pode-se notar oposição dessa mesma espécie no conflito de Inácio contra o docetismo. Contra aqueles que diziam que Cristo apenas parecia ter sofrido, Inácio expressou a convicção de que Cristo realmente nasceu de Maria, foi realmente crucificado e que ressuscitou. Cristo estava na carne, mesmo depois de sua ressurreição, disse Inácio; não era espírito incorpóreo.

    CONCEITO DE IGREJA

    Podemos determinar, com base nos Pais Apostólicos, quais eram os regulamentos eclesiásticos que estavam sendo consolidados na época. O cargo de bispo se desenvolveu a ponto de se distinguir do colégio dos anciãos. Segundo Inácio, o bispo era o símbolo da unidade cristã e o portador da tradição apostólica. As congregações, em vista disso, eram admoestadas a se aterem firmemente a seus bispos e a lhes obedecerem. Dizia-se que a unidade consistia, em primeiro lugar, em um corpo de doutrina comum, e se explicava a posição dominante do bispo na congregação com base no fato de que era o representante da doutrina verdadeira. Essa harmonia, que tinha como centro os bispos, era enfatizada como proteção contra heresias que ameaçavam destruir a unidade da Igreja. Originalmente, os anciãos e os bispos estavam no mesmo nivel, mas, a essa altura dos acontecimentos, os bispos ocuparam posição superior à dos presbíteros.

    Este assim chamado episcopado monárquico apareceu em primeiro lugar na Ásia Menor e é claramente salientado nas epístolas de Inácio, enquanto Primeiro Clemente e o Pastor de Hermas, que foram escritos de Roma, não mencionam cargo superior ao colégio dos anciãos ou presbíteros. Todavia, Primeiro Clemente também ressalta o significado do cargo de bispo e insiste que os que ocupam tal cargo são os sucessores dos apóstolos. A ideia de sucessão apostólica se desenvolveu a partir de protótipo judaico. Duas coisas entravam em jogo: primeiro, os bispos receberam o ensinamento verdadeiro dos apóstolos, assim como os profetas aprenderam de Moisés (sucessão doutrinária); e segundo, tinham sido designados pelos apóstolos e seus sucessores em linha ininterrupta, assim como apenas a família de Arão tinha o direito de constituir sacerdotes em Israel (sucessão de ordenação).

    Como resultado, desenvolveu-se na Igreja Cristã Primitiva um tipo de ordem congregacional mais definida, com jurisdição eclesiástica. Esse desenvolvimento tem sido avaliado de maneiras diferentes. O conhecido historiador jurídico Rudolph Sohm propôs a ideia de que cada lei eclesiástica está em oposição à essência da Igreja. É apenas o Espírito Santo quem governa a Igreja e, por esse motivo, o surgimento de instituições eclesiásticas significa o afastamento do espírito original do cristianismo (Kirchenrecht, I, 1892). Outros, contudo, negaram sua tese, salientando que ordenanças são necessárias.

    Esse desenvolvimento não é acréscimo posterior; sua origem nos leva ao próprio tempo dos apóstolos. O que aconteceu posteriormente foi aplicação estrita de formas existentes e aceitação de novas (Seeberg). Também se disse nesse contexto, e apropriadamente, que o Espírito Santo e os cargos eclesiásticos não são mutuamente contraditórios; pelo contrário, pertencem juntos. O fato de que a Igreja é criada pelo Espírito Santo não exclui o desenvolvimento de regras, cargos e tradições. Os ministérios e os cargos da Igreja se relacionam com a obra do Espírito Santo (Linton, Das Problem der Urkirche in der neueren Forschung, 1932).

    ESCATOLOGIA

    A escatologia dos Pais Apostólicos incluía a ideia de que o fim dos tempos era iminente, e alguns deles (Papias, Barnabé) também sustentavam a doutrina de um milênio terreno. Barnabé aceitava a ideia judaica que o mundo existiria por 6.000 anos, prefigurados nos seis dias da criação. E, por conseguinte, dizia-se, que seguiria o sétimo milênio, em que Cristo reinaria visivelmente na Terra com a ajuda de seus fiéis (cf. Ap 20). Esse daria lugar ao oitavo dia, a eternidade, que tinha seu protótipo no domingo.

    Papias também apoiava a doutrina de um milênio terreno e descrevia a condição bendita que prevaleceria durante este tempo. Esse ponto de vista (milenismo ou quiliasmo) foi amplamente desacreditado em tempos mais recentes. Realmente, Eusébio o fez em sua avaliação dos escritos de Papias (História Eclesiástica, III, 39).

    CAPÍTULO 2

    OS APOLOGISTAS

    Os autores do segundo século que, acima de tudo, procuraram defender o cristianismo de acusações em voga na época, de procedência grega e judaica, são, em geral, conhecidos como os apologistas. Para esses homens, o cristianismo era a única verdadeira filosofia, substituto perfeito para a filosofia dos gregos e a religião dos judeus, que nada mais podiam fazer do que apresentar respostas insatisfatórias às perguntas cruciais do homem.

    O mais notável dos apologistas foi Justino, cognominado o mártir, cujas duas apologias datam de meados do segundo século. Seu diálogo com o Judeu Trifo foi escrito na mesma época. Entre os outros encontram-se Aristides, que escreveu a mais antiga apologia cujo texto ainda temos, Taciano (Discurso aos Gregos, panfleto dirigido contra a cultura grega, por volta de 165), e Atenágoras (De ressurrectione mortuorum e Supplicatio pro Christianis, ambas escritas por volta de 170). Os seguintes também podem ser incluídos nesse grupo: Teófilo de Antioquia (Ad Autolycum libri tres, 169-182), e a Epístola a Diogneto, cujo autor é desconhecido, e a igualmente anônima Cohortatio ad Graecos, que surgiu pouco antes da metade do terceiro século. Esta última, erroneamente, foi atribuída a Justino. Os apologistas também escreveram outras obras, que foram perdidas e que conhecemos só de nome (Cf. por ex.: Eusébio, História Eclesiástica, IV, 3).

    CONSIDERAÇÕES GERAIS

    Os apologistas ocupam lugar de destaque na história do dogma, não só devido a sua descrição do cristianismo como a verdadeira filosofia como também por sua tentativa de elucidar ensinamentos teológicos com o auxílio de terminologia filosófica contemporânea (por exemplo: na assim chamada "cristologia do Logos"). O que neles encontramos, por conseguinte, é a primeira tentativa de definir, de maneira lógica, o conteúdo da fé cristã, bem como a primeira conexão entre teologia e ciência, entre cristianismo e filosofia grega.

    Os apologistas refutaram as acusações dirigidas contra os cristãos. Atenágoras (em sua Supplicatio) discutiu três críticas principais: impiedade, hábitos anormais e inimizade ao estado. Em resposta, atacavam a cultura grega, por vezes de maneira bem severa (Taciano, Discurso aos Gregos; Teófilo). Mas sua contribuição mais importante, do ponto de vista da história do dogma, foi a maneira positiva com que apresentaram o cristianismo como a verdadeira filosofia.

    CRISTIANISMO E FILOSOFIA

    O modo como os apologistas conceberam a relação entre cristianismo e filosofia se reflete na obra autobiográfica de Justino, Diálogo com o Judeu Trifo. Justino se apresenta como alguém que tem a filosofia em alta estima e que procurou respostas satisfatórias para as questões filosóficas em um sistema filosófico após outro. O propósito da filosofia, segundo Justino, é proporcionar conhecimento verdadeiro de Deus e da existência e, assim fazendo, promover um sentimento de bem-estar nas mentes humanas. A filosofia visa reunir Deus e o homem.

    Justino investigou os estóicos, os peripatéticos e os pitagóricos, mas todos o deixaram indiferente. Por último, chegou a um platonista e pensou ter encontrado com ele a verdade. Então, encontrou-se com um velho desconhecido que dirigiu sua atenção aos profetas do Antigo Testamento, insistindo que tão somente eles tinham visto e proclamado a verdade. Apenas eles ensinaram o que ouviram e viram com a ajuda do Espírito Santo. O testemunho desse ancião convenceu Justino da veracidade do cristianismo. Minha alma inflamou-se imediatamente, e ansiei pelo amor dos profetas e dos amigos de Cristo. Refleti sobre seus escritos, e neles encontrei a única filosofia útil e fidedigna. Desta maneira, e com este fundamento, tornei-me um filósofo (VII; VIII).

    O fato de o cristianismo ser a única filosofia verdadeira significa, portanto, que tão somente ele possui as respostas corretas para as questões filosóficas. A filosofia, nesse sentido, também abrange a questão religiosa concernente ao verdadeiro conhecimento de Deus. Apenas o cristianismo pode fornecer esse conhecimento; a filosofia o procura, mas é incapaz de encontrá-lo.

    Tal linha de pensamento, em si, não afirma que o cristianismo depende da filosofia e a ela está subordinado, como às vezes se sugere. O cristianismo se fundamenta na revelação, e os apologistas não acreditavam que a revelação pudesse ser substituída por deliberações racionais. Nesse sentido, o cristianismo se opõe a toda filosofia. Sua verdade não se baseia na razão; tem origem divina. Ninguém, a não ser os profetas, pode instruir-nos sobre Deus e a verdadeira religião, pois eles ensinam no poder da inspiração divina (palavras finais da Cohortatio ad Graecos).

    Ao mesmo tempo, no entanto, a maneira como os apologistas abordaram a verdade cristã incluía a tendência de intelectualizar seu conteúdo. A razão (lógos) era o conceito mais marcante de seus escritos, e ressaltavam de maneira especial a comunicação da verdade. Avaliavam a filosofia de diversas maneiras. Alguns dos apologistas se opunham enfaticamente à filosofia grega. Toda sabedoria pagã devia ser substituída pela revelação.

    Justino, por sua vez, mantinha atitude mais positiva face aos gregos. Todavia, é preciso enfatizar que a verdade que pode ser discernida em filósofos como Homero, Sócrates e Platão se derivava basicamente da revelação. Havia também a ideia correlata de que alguns dos sábios da Grécia tinham visitado o Egito e lá se tinham familiarizado com os escritos dos profetas de Israel. Outra ideia sugeria que os filósofos pagãos compartilhavam o lógos spermatikós, que foi implantado em todos os homens.

    Mesmo a sabedoria humana depende, desse modo, da revelação — raios dispersos da razão divina que brilhou com toda sua clareza em Cristo. Os filósofos possuem certos fragmentos da verdade. Em Cristo, a verdade está presente em sua plenitude, pois ele é a própria razão de Deus, o Logos que se tornou homem.

    CRISTOLOGIA DO LOGOS

    O conceito de Logos, derivado da filosofia contemporânea, especialmente do estoicismo, com sua doutrina da razão universal, foi usado pelos apologistas para explicar como Cristo se relacionava com Deus Pai. Algo do Logos, diziam, encontra-se em todos os homens. A razão, como um embrião, encontra-se implantada dentro deles (lógos spermatikós). Mas os apologistas, em contraste com os estoicos, não diziam ser ela uma espécie de razão universal concebida panteísticamente. Em vez disso, identificavam o Logos com Cristo. Com base nisso, podiam dizer que Platão e Sócrates também eram cristãos, na medida em que exprimiam a razão; sua sabedoria lhes foi transmitida por Cristo através dos profetas ou mediante revelação geral.

    O termo grego lógos significa tanto razão como palavra. O Logos esteve com Deus, como sua própria razão, desde toda a eternidade (lógos endiáthetos). Posteriormente, essa razão procedeu da essência de Deus, conforme a própria decisão de Deus, como o lógos proforikós, a Palavra que se originou em Deus. Isso aconteceu quando da criação do mundo. Deus criou o mundo de acordo com sua razão e mediante a Palavra que procedeu dele. Dessa maneira, Cristo se fizera presente na criação do mundo. É a Palavra, nascida do Pai, mediante a qual tudo chegou a existir. Na plenitude do tempo, essa mesma razão divina se revestiu de forma física e se tornou homem.

    Com essa aplicação do conceito de Logos, os apologistas encontraram uma maneira de descrever a relação entre o Filho e o Pai na Divindade, empregando termos filosóficos correntes. Assim como a palavra procede da razão, ou — para usar outra analogia — assim como a luz procede da lâmpada, assim o Filho procedeu do Pai como o primogênito, sem diminuir o Pai ou destruir a unidade da Divindade. Essa cristologia do Logos visa responder à questão mais difícil da fé cristã na linguagem da época. Os apologistas escolheram um conceito da filosofia contemporânea e o usaram para descrever o que para a mentalidade grega era absurdo — que Cristo é Deus, mas que, com isso, a unidade da Divindade não é negada.

    Nessa maneira de pensar, está implícito o fato de que, embora o Logos sempre tenha feito parte da essência divina, como a razão que habita nela, ainda assim não procedeu da Divindade até o tempo da criação do mundo. Cristo, portanto, teria sido gerado no tempo, ou no início do tempo. Essa doutrina filosófica do Logos também parecia sugerir que Cristo ocupa posição subordinada relativamente ao Pai. A cristologia dos apologistas, como resultado, frequentemente é descrita como subordinacionismo. Pode parecer que é do ponto de vista de épocas posteriores.

    A ideia da geração do Filho no tempo, por exemplo, foi combatida (Orígenes, cf. abaixo), bem como o emprego da doutrina filosófica do Logos no campo da cristologia (Irineu). Todavia, é preciso lembrar também que os apologistas postulavam a preexistência do Logos em termos inequívocos, embora julgassem que seu aparecimento como Filho tivesse ocorrido inicialmente quando da criação. Além disso, não podemos esquecer que na época dos apologistas a terminologia empregada para exprimir as diferenças entre as pessoas da Trindade ainda não tinha sido cunhada. Em vista disso, portanto, não é justo deduzir que os apologistas especificamente ensinaram que o Filho é subordinado ao Pai (Cf. Kelly, Early Christian Doctrines, p. 100 s.).

    Se Cristo é apresentado como Logos, a razão divina, é natural considerar sua obra principalmente em termos pedagógicos. Ele nos transmite o verdadeiro conhecimento de Deus e nos instrui na nova Lei, que nos guia ao caminho da vida. Interpreta-se salvação em categorias intelectuais e moralistas. Identifica-se pecado com ignorância. Acredita-se que o homem é livre para fazer o bem, mas apenas Cristo pode mostrar o verdadeiro caminho da justiça e da vida. Enfatiza-se a necessidade de viver segundo a Lei, e nesse sentido o conceito de vida cristã dos apologistas concorda com o dos Pais Apostólicos. Considerado ponto de vista do desenvolvimento histórico do dogma, a principal contribuição dos apologistas foi sua tentativa de correlacionar o cristianismo com a erudição grega, tentativa que encontrou sua expressão mais marcante na doutrina do Logos e sua aplicação à cristologia.

    CAPÍTULO 3

    CRISTIANISMO JUDAICO E GNOSTICISMO

    CRISTIANISMO JUDAICO

    O termo cristianismo judaico significa várias coisas diferentes, e é usado de maneiras diversas pelos pesquisadores. Pode se referir ao cristianismo da Palestina no período subsequente à Ascensão, isto é, aos cristãos de origem judaica que viviam na Palestina e tinham como centro a congregação em Jerusalém — em contraste com os cristãos que tinham origem pagã. Em algumas ocasiões, contudo, o termo é empregado para identificar certos grupos sectários que derivaram da congregação de Jerusalém depois de se terem transferido para a região a leste do Jordão por volta do ano 66. É nesse sentido que se usará o vocábulo aqui.

    Uma das características mais proeminentes desse cristianismo judaico herético, também conhecido como ebionismo (derivado do termo veterotestamentário evjonim, os pobres, originalmente nome honroso dos cristãos de Jerusalém), era sua confusão de elementos judaicos e cristãos. De acordo com as informações que chegaram até nós, os cristãos judaicos podem ter-se unido aos monges essênios, que se tornaram conhecidos recentemente através das descobertas dos manuscritos do Mar Morto. A história do ebionismo, em sua maior parte, está envolta em trevas. Nem os fragmentos de literatura preservados, nem as referências encontradas nos Pais Eclesiásticos nos fornecem um quadro minucioso das ideias e dos costumes desse grupo. Todavia, certas linhas mestras de pensamento podem ser reconstruídas.

    Os ebionitas sustentavam a validade da Lei de Moisés; uma fração julgava que isso só se aplicava a eles, mas outra fração, mais militante, insistia que os cristãos de origem pagã também eram obrigados a cumprir a Lei de Moisés. Outra ideia básica associada aos ebionitas era que esperavam o estabelecimento de um reino messiânico em Jerusalém. Isso reflete sua identificação de judaísmo e cristianismo.

    É verdade, sem dúvida, que a Igreja Universal se considera continuação da comunidade do Antigo Testamento, o verdadeiro Israel, mas isso não impede o repúdio veemente ao judaísmo e à interpretação judaica da Lei. Paulo, por exemplo, combateu os que pretendiam reintroduzir a circuncisão (cf. Gl 5), e demonstrou como a liberdade em Cristo excluía a hipótese de se fazer depender da Lei o caminho da justiça. Os ebionitas, que conservavam os preceitos judaicos e os consideravam válidos para a vida congregacional, repudiavam a interpretação paulina da Lei e recusavam aceitar suas epístolas.

    Nos escritos dos cristãos judaicos (dos quais o mais importante é o assim chamado Pseudo-Clemente, que contém, entre outras coisas, A Pregação de Pedro, além de vários evangelhos apócrifos), Cristo é colocado no mesmo nível dos profetas do Antigo Testamento. Ele é descrito como nova forma de revelação do verdadeiro profeta, que apareceu anteriormente em Adão e Moisés, entre outros. O conceito de Cristo como o novo Moisés expressava a união de judaísmo e cristianismo, destacada de maneira especial no ebionismo. Dizia-se ser Cristo um homem nascido de homens (cf. Justino: Diálogo com o Judeu Trifo, p. 48), ou, como frequentemente se diria mais tarde, única e simplesmente homem.

    Os ebionitas, por conseguinte, negavam a preexistência de Cristo; alguns deles também negavam a encarnação e o nascimento virginal. Supunham que Jesus recebera o Espírito Santo por ocasião de seu Batismo, sendo dessa maneira escolhido para ser o Messias e o Filho de Deus. A salvação não era associada com a morte e ressurreição de Cristo; em vez disso, julgava-se que se tornaria realidade apenas por ocasião da segunda vinda de Cristo, quando, conforme suas expectativas, teria início um milênio terreno.

    Com fundamento nessas ideias, o ebionismo forneceu o protótipo para uma cristologia que concebia Cristo em termos puramente humanos e que supunha que não fora Filho de Deus até ser adotado como tal por ocasião de seu Batismo ou ressurreição (a cristologia adopcionista). Os atributos de Cristo eram assim rejeitados.

    Visto à luz da história, o cristianismo judaico não exerceu grande influência sobre o desenvolvimento da teologia cristã. Dívídiu-se em vários grupos e, em pouco tempo, desapareceu. É bem provável que não tenha existido por mais de 350 anos, no máximo. Por outro lado, no entanto, exerceu forte influência sobre o islamismo, no qual algumas de suas ideias reapareceram em forma diferente. Uma dessas foi o conceito do verdadeiro profeta, outra foi o paralelo traçado entre Moisés e Jesus.

    Se o cristianismo judaico representa uma confusão de elementos judaicos e cristãos, o gnosticismo era resultado da mistura da religião helenística com o cristianismo. Portanto, o ebionismo diferia muito do gnosticismo; opunha-se particularmente a Marcião e seu repúdio da lei (cf. o tópico seguinte).

    Apesar disso, no entanto, em certas regiões, podemos ver uma combinação de ideias gnósticas e judaico-cristãs. Isso se dá, por exemplo, com os elcasitas, que provavelmente receberam esse nome devido a um certo Elcasai, que pode ter sido o autor do documento que ostenta seu nome. Outro exemplo encontramos nos adversários mencionados em Colossenses 2, que também parecem ter reunido ideias gnósticas e judaicas (cf. a referência aí feita à filosofia e vãs sutilezas (v. 8) e aparência de sabedoria, como culto de si mesmo (v. 23). Contudo, não é correto dizer que os principais conceitos do cristianismo judaico tiveram forma e origem gnóstica (Schoeps, Theologie und Geschichte des Judenchristentums, 1949).

    O GNOSTICISMO

    Gnosticismo é o nome comum aplicado a várias escolas diferentes de pensamento que surgiram nos primeiros séculos da era cristã. No que tange à gnose cristã, isso se refere à tentativa de incluir o cristianismo em um sistema geral filosófico-religioso. Os elementos mais importantes neste sistema eram certas especulações místicas e cosmológicas, além do marcado dualismo entre o mundo do espírito e o mundo material. Sua doutrina de salvação salientava o livramento do espírito de sua servidão na esfera material. Essa religião tinha seus próprios mistérios e cerimônias sacramentais, além de uma ética que preconizava ou o ascetismo ou a libertinagem.

    Origens. A questão da origem do gnosticismo tem sido amplamente debatida, e não parece haver qualquer resposta simples. A maior parte da literatura gnóstica foi perdida. Todavia, parte dela foi preservada em tradução copta no Egito, por exemplo: a Pistis Sofia, o Evangelho de Tomé e o Evangelho da Verdade. As duas últimas obras citadas se encontram entre os manuscritos descobertos na vila de Nag Hammadi (perto de Luxor) em 1946. Entre os itens aí encontrados, em um jarro de cerâmica preservado na areia, havia 13 códices, inclusive nada menos de 48 escritos, todos de origem gnóstica. Essa descoberta ainda não foi completamente avaliada ou tornada acessível aos pesquisadores. A maior parte de nosso conhecimento do gnosticismo chegou até nós através dos escritos dos Pais Eclesiásticos. Citam autores gnósticos, ou se referem a seus escritos em suas obras polêmicas.

    Os Pais Eclesiásticos concordam que o gnosticismo iniciou com Simão, o Mágico (At 8), mas, no mais, seus relatos divergem. Segundo certo Hegesipo, citado por Eusébio (IV, 22), o gnosticismo principiou entre certas seitas judaicas. Os Pais Eclesiásticos posteriores (Irineu, Tertuliano, Hipólito), por sua vez, sustentavam a opinião de que a filosofia grega (Platão, Aristóteles, Pitágoras, Zenão) era a principal fonte da heresia gnóstica. Se aqui nos limitamos ao gnosticismo que se desenvolveu em solo cristão, esses relatos não são necessariamente contraditórios. Pois esse tipo de gnosticismo era um sistema sincrético que combinava correntes de pensamento opostas entre si.

    Quando falamos de gnosticismo, em geral pensamos no sistema que se desenvolveu no período cristão, na heresia gnóstica que os Pais Eclesiásticos combateram com tanto empenho. Mas o gnosticismo já existia quando o cristianismo surgiu; era então fenômeno religioso um tanto vago, uma doutrina especulativa de salvação com contribuições de várias tradições religiosas diferentes. Veio do Oriente, onde foi influenciado pelas religiões da Babilônia e da Pérsia. Os mitos cosmológicos atestam sua origem babilônica, enquanto seu dualismo extremado o relaciona com a religião da Pérsia. O mandenismo é um exemplo de formação religiosa gnóstica na área persa. Subsequentemente, o gnosticismo apareceu na Síria e em solo judaico, particularmente na Samaria, e lá assumiu coloração judaica.

    Foi essa a forma de gnosticismo existente por volta do início da era cristã, e que os apóstolos encontraram com Simão, o Mágico, que andava pela Samaria. Daí em diante começou a se desenvolver uma escola gnóstica dentro da esfera cristã, com elementos derivados do cristianismo. Em vista dessa semelhança, o gnosticismo não surgiu como inimigo do cristianismo. Procurava, ao invés disso, reunir elementos cristãos a outros elementos especulativos já presentes nele em uma espécie de sistema religioso universal. Foi nessa forma que o gnosticismo surgiu no segundo século, com seus principais expoentes na Síria (Saturnino), Egito (Basilides) e Roma (Valentino). Esse sistema posterior também foi profundamente influenciado pela filosofia religiosa grega.

    Durante muito tempo, o gnosticismo foi o adversário mais perigoso do cristianismo. A polêmica cristã contra o gnosticismo foi acompanhada por desenvolvimento do pensamento teológico sem precedente na história da igreja até aquela data.

    Tendências. Como já vimos, encontravam-se dentro do gnosticismo numerosas tendências divergentes. As mitologias e os sistemas que surgiram em seu meio foram muitos e discrepantes.

    Conforme Atos 8.9-24, Simão, o Mágico, apareceu na Samaria, onde o gnosticismo encontrou uma de suas raízes. Simão se identificava como o poder de Deus e, portanto, pretendia ser figura messiânica. Também proclamava libertação da Lei. Ensinava que a salvação não vinha por intermédio de boas obras, e sim pela fé nele. De acordo com os Pais Eclesiásticos, a doutrina de Simão, o Mágico, era o protótipo de todas as heresias.

    Saturnino apareceu na Síria no início do segundo século. Seu sistema gnóstico revela influência oriental.

    Basilides trabalhou no Egito por volta do ano 125. Seu gnosticismo tinha natureza mais filosófica, e a influência grega era mais forte.

    Valentino, que pregou em Roma de 135 a 160, nos legou a apresentação clássica do sistema gnóstico. A contribuição grega também é importante em sua obra.

    Marcião também foi incluído entre os gnósticos pelos Pais Eclesiásticos. Sua doutrina é similar ao gnosticismo em vários pontos. Ele foi também o fundador de sua escola sui-generis de pensamento, e seu sistema era, em muitos aspectos, original. Como veremos com maior clareza no que segue, a posição teológica sustentada por Marcião e os gnósticos frequentemente era idêntica. Contudo, há uma diferença, como Adolf von Harnack enfatizou em sua História do Dogma, pois, enquanto o gnosticismo era um pot-pourri religioso, em que cristianismo e filosofia grega eram misturados, Marcião procurou reorganizar o cristianismo de modo radical, com base em certas ideias respigadas de Paulo, juntamente com a eliminação de todos os elementos judaicos.

    Conceitos principais. Excetuando Marcião, o gnosticismo contém certos conceitos básicos ensinados por todas as suas escolas e sistemas, embora a mitologia e os costumes litúrgicos variem.

    A metafísica fundamental do gnosticismo, definida mais especificamente na obra de Valentino, foi descrita pelo Pai Eclesiástico Irineu (Adversus haereses, I) e por outros. É apresentada em forma mitológica, com a personificação de vários conceitos abstratos, tais como verdade, sabedoria e razão. O ponto de vista básico é de natureza dualista, o que vale dizer que tem seu ponto de partida no contraste entre o mundo do espírito e o mundo material, juntamente com o contraste entre o bem e o mal e entre esfera superior e inferior.

    Em virtude de seu dualismo, o gnosticismo distinguia entre o Deus supremo e uma divindade inferior, e foi esta última, diziam, que criou o mundo. O Deus supremo era concebido em termos completamente abstratos como sendo a essência espiritual última; não se faziam tentativas de descrever este Deus mais especificamente, e não era associado a qualquer revelação. Julgava-se estar ele tão longe do mundo como possível. Os gnósticos também insistiam que este Deus não podia ter criado o mundo. O mundo, afinal, é mau, e, por conseguinte, deve encontrar sua origem em uma essência espiritual inferior, na qual existia o mal.

    Esse deus criador, ou demiurgo, dizia-se ser o Deus do Antigo Testamento — o Deus judaico. O gnosticismo era antagônico ao Antigo Testamento; também rejeitava a Lei, insistindo que o homem podia adquirir percepções superiores que o libertariam da submissão a ela. Foi, acima de tudo, por esse motivo, que os Pais Eclesiásticos combateram o gnosticismo — para defender a crença cristã no Deus único que criou o mundo e se revelou aos profetas.

    A doutrina gnóstica de Deus se relacionava com especulações mirabolantes relativas ao mundo espiritual e à origem do mundo material (a assim chamada doutrina dos eons). Valentino, por exemplo, supunha que 30 eons tinham emanado da Divindade em processo teogônico. O mundo material se derivara do eon mais baixo como resultado de uma queda. O Deus supremo, ou Progenitor, formava o primeiro eon, também conhecido como búthos (abismo). Do abismo procederam o silêncio, ou a ideia (sigé ou énnoia), e desses dois, o espírito e a verdade (nous e aléetheia). Dessa vieram, por sua vez, razão e vida (lógos e zooée), e dessas, homem e a igreja, e 10 outros eons apareceram. Homem e a igreja juntos produziram 12 eons, o último dos quais sabedoria (sofía).

    Os eons, agindo unanimemente, formavam o mundo do espírito, o Pléroma, que contém os arquétipos do mundo material. O último dos eons caiu do Pléroma como resultado de ataque de paixão e ansiedade, e foi por causa dessa queda que o mundo material chegou a existir. O demiurgo que criou o mundo procedeu desse eon caído.

    Cristo e o Espírito Santo se originaram em um dos eons mais elevados. A tarefa de Cristo é a de restaurar ao Pléroma o eon caído e, ao mesmo tempo, livrar as almas dos homens de seu cativerio ao mundo material e trazê-las de volta ao mundo do espírito. Sobre essa base desenvolveu-se o conceito gnóstico de salvação. Dizia-se consistir a salvação no livramento das almas do mundo material a fim de que pudessem ser purificadas e trazidas de volta à esfera divina de onde vieram. Tal como acontece no neoplatonismo, que tinha muito em comum com o sistema de Valentino, a história do mundo era concebida em termos cíclicos. A alma humana era lançada para dentro desse processo cíclico. O homem caiu do mundo da luz e era conservado cativo no mundo material. A salvação consistia na libertação do mundo material de modo que o homem novamente pudesse ascender ao mundo espiritual, ao mundo da luz, de onde viera.

    De acordo com o gnosticismo, tal salvação era possível devido à percepção superior (gnõosis, gnose) dos gnósticos; essa percepção era uma forma de sabedoria esotérica que proporcionava conhecimento relativo ao Pléroma e ao caminho que para lá conduzia. Porém, nem todos podiam alcançar essa salvação; apenas os assim chamados pneumáticos, que possuíam o poder necessário para receber esse conhecimento, eram capazes de atingi-la. Todos os outros homens, que os gnósticos denominavam de materialistas, eram incapazes de utilizar esse conhecimento.

    Ocasionalmente, os gnósticos faziam referência a uma categoria intermediária entre os pneumáticos e os materialistas, os assim chamados psíquicos, em cuja categoria os cristãos geralmente eram colocados. Acreditava-se ser possível aos psíquicos a obtenção do conhecimento necessário à salvação. O gnosticismo, portanto, ensinava uma forma

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