Ela alucina leões
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Existe lá um lugar aonde aquilo que enterramos no fundo do peito encontra uma maneira de florescer e gerar frutos malditos. O psiquiatra Dr. França precisa ajudar Clara, sua mais nova paciente, a lidar com as sombras do passado para investigar um crime grotesco. Uma investigação que despertará o que há de mais violento dentro de cada um dos envolvidos.
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Book preview
Ela alucina leões - Rodrigo Espírito Santo
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Copyright © 2021
Rodrigo Espírito Santo
Capa: Gabriel Jacob
Ilustração: Betty Sá
Diagramação: Thales Amaral
Revisão: Adriana Vaitsman e Ricardo Félix Realização: Letras Virtuais Editora
Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é somente entreter. Nomes, personagens e acontecimentos descritos são produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios — tangíveis ou intangíveis — sem o consentimento escrito do autor.
Criado no Brasil.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
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Prefácio
Rodrigo Espírito Santo é um autor que tem como inconfundível marca a riqueza dos detalhes. Na obra Ela Alucina Leões, a perfeição da escrita na descrição das cenas nos remeterá diretamente ao interior da trama que, de tão surpreendente, nos levará a vivenciar as experiências e sensações dos personagens, nos transportando assustadoramente para o interior do Edifício Guahy. Os amantes do gênero certamente ficarão presos à narrativa eletrizante do autor, que surpreenderá a cada capítulo e trará um desfecho inusitado.
Adriana Vaitsman
Escritora, Editora e Ativista Cultural
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Some are born mad, some achieve madness, and some have madness thrust upon 'em.
Emilie Autumn, The Asylum for Wayward Victorian Girls
5
Prólogo
Um trovão abafou o som do cavaquinho desafinado que ralentava um samba de Ary Barroso. Maria ficou aliviada pela trégua musical de um segundo, mas não gostava de tempestades. Era ruim para os negócios, para a chapinha, para o salto agulha. O vento que vinha do Atlântico com força parou repentinamente, premeditando a chuva. Até o músico que importunava o casal de turistas branquelos sentiu que era hora de puxar o carro e poupar o resto do repertório do Ary.
Maria queria ir embora também, mas a semana não fora boa. Mais cinco minutos. Como um passe de mágica, um Fiat encostou a alguns metros e ela desfilou até ele, mascando chiclete. Sem dobrar os joelhos, debruçou-se sobre a janela do lado do passageiro, deixando parte da bunda exposta aos transeuntes do calçadão da Avenida Atlântica. Teve mais gente desviando o olhar do que encarando aquela retaguarda imensa, apontada para o céu.
Um dos problemas de carro velho, pensou Maria, é que o interior nunca é bem iluminado. Falta aquele painel digital enorme que lava tudo com uma luz azul-boate. E aquela lampadazinha no teto geralmente está queimada. Não fosse a chuva e a fome, teria ignorado esse duro. Mas ela não estava em condições para ignorar duro nenhum.
Um relâmpago iluminou o rosto do motorista. Devia ter uns 60 anos.
Talvez mais. Fedia a colônia e cigarro. Barba por fazer, calvo, papada, óculos Ray-ban de grau e correntinha de latão. Maria pensou em dar meia volta. As primeiras gotas grossas quicaram na sua bunda semi exposta. Respirou fundo, abriu a porta e entrou no Fiat. As molas enferrujadas do banco rangeram.
Outra trovoada, dois pipocos do motor e lá se foi Maria com o cliente.
— Tem fogo, meu anjo?— Maria levou um Derby à boca.
O cliente apertou um botão no painel com o dedo peludo. Ela suspirou, impaciente.
— O que vai ser hoje, meu amor? Oral é 30, normal é 50, anal é extra. Paga antes, ok?
Ele tirou uma nota de 100 do bolso da camisa e colocou entre os peitos dela. Maria pegou a nota e esticou contra a luz de um poste. Não era falsa.
6
Talvez essa corrida não tenha sido uma má ideia, no final das contas.
— Pra onde a gente vai, meu amor?— Maria colocou braço sobre os ombros do motorista. Ele sorriu com o canto da boca e apertou a coxa dela.
— Vou te levar pra minha casa.
— E sua mulher?— perguntou Maria, olhando a aliança brilhando sobre o volante.
— Se preocupa comigo, só.
— Tô preocupada não, meu bem. Só não quero rolo pro meu lado. Além do mais, suruba é mais caro. — Maria respondeu enquanto se olhava no retrovisor do seu lado — Não prefere um motel? Tem um baratinho logo ali na Viveiros de Castro. Posso até fazer um desconto…— Chame de sexto sentindo, de instinto de sobrevivência, chame do que quiser: algo começou a palpitar dentro do peito dela.
Maria não era nova, nem na idade, nem na profissão. Já tinha passado por maus bocados. Apanhou muito, fez muita coisa estranha. Nunca foi de reclamar. Mas alguma coisa ali estava particularmente esquisita.
— A senhorita me permite uma pergunta? — a voz do homem, grave e rouca, a pegou despreparada.
— Claro, meu amor. Me chama de você, tá? — ela se esforçava para trazer um pouco de cumplicidade àquela relação comercial.
— Você, claro… Você gosta de onde mora?
— Moro longe, moço…— desconversou.
— Só quero saber se gosta. Quero saber onde é, não. Gosta?— insistiu, impaciente.
Maria encolheu os ombros.
— Não é ruim. Podia ser melhor? Podia. Aposto que a sua casa é bem melhor que a minha…— Maria passou os dedos pelo peito cabeludo dele, tentando desviar sua atenção. Ele fez um muxoxo.
— E seus vizinhos? Conhece? Gosta deles?
— Olha, meu amigo. Sei lá. É tudo gente normal, acho. Quem não é puta, é diarista, ou vapor. Por que você quer saber? — Maria tinha dificuldade em disfarçar a impaciência com o interrogatório sobre sua vida pessoal. Não era para esse tipo de intimidade que ela tinha virado puta.
O motorista pisou no freio e Maria gelou. Achou que tinha pegado pesado.
Poderia perder o cliente e acabar na chuva por causa do temperamento. Não seria a primeira vez, também. Uma vez, andou de São Conrado até a Central de madrugada até conseguir uma condução pra Caxias.
O homem apontou para algo do lado de fora do carro. A chuva pesada castigava o capô do Fiat e ela tinha que se esforçar para identificar o que ele 7
tentava mostrar. Era algo no alto, acima das árvores, algo escuro. Um trovão iluminou a noite e mostrou o contraste. Era um castelo. Na verdade um prédio que parecia um castelo. Algo saído de um filme de terror. Um prédio de pedras negras, que parecia ter sido transportado para Copacabana diretamente da idade média, diferente de todas as construções vizinhas, com uma arquitetura que mais parecia uma igreja a um deus que Maria não fora apresentada.
Um estalo alto a fez pular e soltar um gritinho. O acendedor do carro estava pronto. Ele retirou o cilindro do painel e aproximou a ponta em brasa do rosto dela. Maria ficou alguns segundos sem ação até se lembrar de que o Derby estava entre seus dedos. Levou o cigarro a boca e ele aproximou o isqueiro da ponta. A fumaça e o cheiro de tabaco tomaram conta do Fiat.
— Chegamos — disse ele.
Maria deu algumas tossidas, engasgada, mais com a informação do que com o Derby sem filtro. — Chegamos aonde? Alguém mora aqui? Você mora aqui!?— não disfarçou a surpresa. Ora, quem mora em um prédio chique como esse tem que ser rico. Mas quem é rico não anda num Fiat desses. Talvez seja só o carro de pegar putas. Muito bacana da Barra tem um carro só pra fazer sacanagem, pegar travesti, essas coisas. Assim a patroa
não suspeita. E
tinha essa aliança na mão do cara. Tudo estava muito mal contado.
Mas ninguém entra nessa vida porque gosta de explicações e de gente sensata. Maria balançou a cabeça em aprovação e soltou a fumaça com um bico exagerado, torto para o lado da porta.
— Quer dizer que tu mora num castelo em Copa, meu anjo? Você é rei, é?
Vou ser sua rainha hoje? — ela se aproximou e acariciou a virilha dele. Ele segurou a mão dela.
— Antes de qualquer coisa, vai me prometer uma coisa — disse, num tom severo.
— Estando na tabela…— ela sorriu, sacana.
— Promete que vai seguir as regras — insistiu, sem ouvir o sarcasmo dela.
— Ok, ok, quais são as regras, meu general?
— Vai entrar comigo. E vai sair antes da meia-noite. Está me ouvindo?
— Colega, eu saio quando o serviço terminar. Não tem dormir de conchinha, não. Moro longe.
— Não é isso. Antes da meia-noite, você vai embora. Eu te trago até a porta. Não vai ficar zanzando sozinha pelos corredores.
Muito cliente tem vergonha de sair com prostituta. Acham que é meio atestado de incompetência, sinal de que só consegue mulher pagando
. Essas inseguranças dos machos. Isso sem falar nos caras que pulam a cerca, claro.
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Nada disso era novidade para Maria. Mas por que raios então não irem para um motel, para um inferninho, para um lugar neutro?
— Você tem certeza que não quer ir num outro canto? Tem um hotelzinho bacana, bem pertinho! — insistiu Maria.
O homem não respondeu. Apenas desviou o olhar, com um sorriso nervoso. Maria respirou fundo.
—Tá bom, tá bom. Saio com você. Só com você, meu rei. Preparado para uma chuvinha? — disse Maria, acariciando o queixo dele e abrindo o seu lado da porta. O ar frio da tempestade invadiu o carro e ele abriu a outra porta. Os dois correram para debaixo da marquise do edifício de pedra, onde se protegeram da chuva. Ele a tomou em seus braços de uma forma galante que não era habitual para Maria. Ela gostou.
— Eu te prometo. Tudo vai ficar bem. É só fazer o que digo — sussurrou.
— Olha, nem, sei que você tá tentando ser galante e tal. Mas esse é o tipo de coisa que sequestrador fala em filme de Hollywood. Não dá. — debochou.
Os dois riram.
— Tem razão. Desculpa. O que devia dizer?
— Nada, gostoso. Só abre a porta e me leva para o seu reino.
Ele olhou para Maria por um segundo, e depois para a porta. Por um instante, ela teve a impressão de que ele estava ainda decidindo se aquilo seria uma boa ideia. Em uma noite menos chuvosa e com um bolso um pouco mais cheio, talvez Maria tivesse se ofendido. Talvez tivesse dado ouvido aos seus instintos. Mas não era o caso. Continuou sorrindo até que o seu cavaleiro abrisse a porta e a levasse para a sua alcova real
.
Poucas horas mais tarde, Maria tentava identificar formas nas manchas de infiltração no teto, uma mania dos tempos de infância no subúrbio. Uma marca cinzenta lembrava um jacaré. No canto oposto, mais comprometido pela umidade, um rosto de boca aberta. Talvez um grito de socorro, como naquele quadro antigo que tinha virado inspiração para filme de terror. O tio dela usou a máscara num baile de carnaval e ficou correndo atrás da mulherada. Maria sentiu saudade do sobrinho, da família. Lembrou-se do irmão, depois de tanto tempo sem pensar nele. Logo agora, logo ali. Estranhou a lembrança triste. O cliente, nu e suarento, roncava ao lado. Do lado de fora, a chuva parecia ter dado trégua.
Sentou-se devagar para não fazer barulho, sem sucesso. Mas nada parecia ser capaz de remover o cara de seu torpor pós-coito. De frente para a cama, uma cômoda com um grande espelho a incomodou ao mostrar sua imagem refletida. Seus seios, vistos daquele ângulo, pareciam ainda mais flácidos. Os olhos borrados de rímel e o cabelo desgrenhado. As estrias marcavam a 9
barriga, mesmo à meia luz do abajur. Decidiu não ficar mais ali. Catou as roupas do chão e foi para o banheiro tentar se recompor.
A luz fria do aposento espaçoso era ainda menos generosa. Encheu as mãos com a água da pia e lavou os olhos, tentando remover os borrões pretos.
O vestido curtíssimo, agora todo amassado, parecia ainda menor. A féria do dia estava sob a sola do sapato, como ela estrategicamente colocara antes de iniciar os trabalhos. De dentro do banheiro, o ronco do homem ainda se fazia ouvir em alto e bom som. Resolveu partir. Desligou a luz antes de abrir a porta e rumou para a sala.
O apartamento era provavelmente o maior quarto e sala que já tinha visto.
Coisa que não se constrói mais. O apartamento dela todo caberia no banheiro.
Com sobra. O quarto, então, só não parecia maior porque o dono era