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Os conteúdos escolares e a ressurreição dos mortos: contribuição à teoria histórico-crítica do currículo
Os conteúdos escolares e a ressurreição dos mortos: contribuição à teoria histórico-crítica do currículo
Os conteúdos escolares e a ressurreição dos mortos: contribuição à teoria histórico-crítica do currículo
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Os conteúdos escolares e a ressurreição dos mortos: contribuição à teoria histórico-crítica do currículo

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Antonio Gramsci escreveu que "está sempre presente no morto um grande vivo". Frequentemente os conteúdos escolares são acusados de serem coisas mortas sem qualquer sentido para a vida concreta dos alunos.
Este livro, na linha da pedagogia histórico-crítica, defende que os clássicos das ciências, das artes e da filosofia são sínteses ricas de atividade humana condensada, em estado de repouso, que deve ser trazida novamente à vida pelo trabalho educativo. Dessa forma, o ensino escolar ressuscita os mortos que, trazidos à vida, apoderam-se da atividade de alunos e professores, incorporam-se à sua vida, ao seu pensamento e aos seus sentimentos, transformando-se, conforme denominou Marx, em "órgãos da individualidade".
LanguagePortuguês
Release dateMay 24, 2021
ISBN9786588717271
Os conteúdos escolares e a ressurreição dos mortos: contribuição à teoria histórico-crítica do currículo

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    Os conteúdos escolares e a ressurreição dos mortos - Newton Duarte

    2016b.

    PRIMEIRA PARTE

    A DIALÉTICA COMO FUNDAMENTO DA TEORIA HISTÓRICO-CRÍTICA DO CURRÍCULO

    capítulo 1

    O TRABALHO EDUCATIVO COMO REPRODUÇÃO DIALÉTICA DA HUMANIDADE

    a reprodução é a categoria decisiva para o ser em geral: a rigor, ser significa o mesmo que reproduzir a si mesmo.

    LUKÁCS, 2013, p. 170

    A pedagogia histórico-crítica e o conceito dialético de reprodução

    Haveria lugar na pedagogia histórico-crítica para o conceito de reprodução? Duas linhas de argumentação podem conduzir a uma resposta negativa à pergunta formulada. Numa delas, o conceito de reprodução é identificado com as teorias crítico-reprodutivistas, das quais a pedagogia histórico-crítica se diferencia por ser crítica sem ser reprodutivista, ou seja, por considerar as relações entre educação e sociedade de maneira dialética e histórica. Outra linha de argumentação seria a de que, no campo dos conteúdos escolares e das formas de seu ensino, a pedagogia histórico-crítica não poderia adotar o conceito de reprodução da cultura, pois isso implicaria uma perspectiva conservadora que negaria a necessidade de superação do status quo.

    Neste capítulo, discordarei dessas duas linhas de argumentação que postulam a incompatibilidade entre a pedagogia histórico-crítica e o conceito de reprodução. Para isso, mostrarei que esse conceito tem seu lugar na visão de mundo do materialismo histórico-dialético e argumentarei que a pedagogia histórico-crítica já incorporou esse conceito, ainda que nem sempre de maneira explícita.

    Dermeval Saviani, em artigo publicado pela primeira vez em 1982 e depois incorporado ao livro Escola e democracia, definiu como crítico-reprodutivistas as teorias que analisam a educação à luz de seus determinantes sociais, o que as caracterizaria como teorias críticas, mas elas seriam reprodutivistas por entenderem que a escola estaria limitada a reproduzir a sociedade em sua forma vigente (SAVIANI, 2008a).

    A análise que Saviani fez dessas teorias tomou como ponto central a possibilidade e a necessidade de articulação da educação escolar à luta pela superação revolucionária da sociedade capitalista, em direção ao socialismo. Tomando o materialismo histórico-dialético como fundamento de uma pedagogia que supere por incorporação as teorias crítico-reprodutivistas, Saviani explicou a contribuição que essas teorias deram ao debate educacional: Retenhamos da concepção crítico-reprodutivista a importante lição que nos trouxe: a escola é determinada socialmente; a sociedade em que vivemos, fundamentada no modo de produção capitalista, é dividida em classes com interesses opostos; portanto, a escola sofre a determinação do conflito de interesses que caracteriza a sociedade (idem, p. 25).

    A construção de uma pedagogia crítica não pode, portanto, ignorar essa determinação da escola pela sociedade, mas precisa estar alerta para o fato de que as teorias crítico-reprodutivistas acabam por sacrificar a história e a dialética na reificação da estrutura social em que as contradições ficam aprisionadas (idem, p. 24).

    Dois anos depois, foi publicado o artigo Sobre a natureza e a especificidade da educação, posteriormente incorporado ao livro Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações (SAVIANI, 2008c). Nesse artigo, o autor afirma que o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens (idem, p. 13). Ora, a produção nos indivíduos do que já vem sendo produzido pela sociedade é um processo de reprodução. Não haveria uma incoerência entre a crítica que Saviani fizera anteriormente aos limites das teorias crítico-reprodutivistas e a noção de reprodução da humanidade, implícita à sua definição de trabalho educativo? Entendo não haver incoerência porque no primeiro caso o objeto da crítica foi o caráter não histórico e não dialético da maneira como aquelas teorias abordavam a reprodução das relações capitalistas de produção e a participação da escola na luta de classes. Tanto isso é verdade que, inspirando-se em Snyders (1977), Saviani sintetiza da seguinte maneira a posição dos teóricos crítico-reprodutivistas sobre a escola: no caso de Bourdieu e Passeron a luta de classes na escola é considerada impossível (SAVIANI, 2008a, p. 17), no caso de Althusser ela é heroica, mas inglória, já que sem nenhuma chance de êxito (idem, p. 20), e no caso de Baudelot e Establet a luta de classes no interior da escola é vista como inútil posto que, para esses autores, o proletariado elaboraria sua ideologia fora da escola e independentemente dela (idem, p. 23).

    O problema não reside, portanto, na afirmação de que a educação realize processos de reprodução, mas no entendimento do que seja a reprodução e do que esteja sendo reproduzido. Nesse sentido, a análise que Saviani fez das teorias crítico-reprodutivistas não implica necessariamente a exclusão do conceito de reprodução do corpo teórico de uma concepção dialética de educação, como é o caso da pedagogia histórico-crítica. A título de comparação, pode-se dizer que um fenômeno análogo a esse é o de que as críticas que o marxismo fez ao estruturalismo não implicam a impossibilidade do uso, por estudiosos marxistas, do conceito de estrutura. Igualmente, as críticas que a pedagogia histórico-crítica fez ao construtivismo não implicam a impossibilidade do uso do conceito de construção do conhecimento. Mas é evidente que o marxismo não concorda com a falta de historicidade e de dialética nas análises estruturalistas, da mesma forma que a pedagogia histórico-crítica diverge da contraposição que o construtivismo estabelece entre a construção do conhecimento e os processos sistemáticos de sua transmissão.

    Nesse sentido, a crítica feita por Saviani ao crítico-reprodutivismo não colide com a noção de reprodução, pelo trabalho educativo, da humanidade nos indivíduos, noção essa que guarda afinidades essenciais com a caracterização feita por Leontiev (1978, p. 270) do processo de apropriação da cultura pelos indivíduos:

    A principal característica do processo de apropriação ou aquisição que descrevemos é, portanto, criar no homem aptidões novas, funções psíquicas novas. É nisto que se diferencia do processo de aprendizagem dos animais. Enquanto este último é o resultado de uma adaptação individual do comportamento genérico a condições de existência complexas e mutantes, a assimilação no homem é um processo de reprodução, nas propriedades do indivíduo, das propriedades e aptidões historicamente formadas da espécie humana.

    Mas em que o conceito dialético de reprodução se diferencia de um entendimento limitado à lógica formal? É sabido que a lógica formal trabalha com a mútua exclusão entre o princípio da identidade e o princípio da não identidade. Nessa perspectiva, tudo o que existe é igual a si mesmo, é a afirmação de si mesmo, não admitindo sua negação, não sendo possível, portanto, que A seja A e ao mesmo tempo seja B, que é distinto de A. Superando por incorporação (e não por exclusão) a lógica formal, a lógica dialética não considera que os princípios da identidade e da não identidade sejam excludentes. Uma coisa é idêntica a ela mesma, mas, como a realidade está em permanente movimento, as contradições internas que produzem esse movimento fazem com que uma coisa possa ser ela mesma e, ao mesmo tempo, algo diferente dela mesma. A luta trava-se em seu interior e essa luta precisa ser resolvida não pela anulação do conflito, mas por sua superação. Da luta entre permanecer idêntico a si mesmo e ser outra coisa diferente de si mesmo é gerado um novo ser no qual é preservado o que era antes e, ao mesmo tempo, ele é transformado em algo qualitativamente novo. Essa é a contradição dialética, que não é uma invenção do pensamento, é um princípio ontológico, é uma categoria da realidade natural e social, que se reflete no pensamento dialético. A contradição move tanto a realidade como o pensamento, porque ela precisa ser resolvida, ser superada:

    E, não obstante, a dialética não é um espécie de apologia da contradição. A contradição interna é uma lei da natureza e da vida: uma lei dolorosa. A mãe que traz o filho no ventre, e que lhe dá a sua substância e ainda se arrisca a morrer para que ele nasça, vive sob o domínio dessa lei, ainda que não a conheça. Mas a contradição, em si, é insuportável. O devir, que tem como raiz profunda a contradição e que é essencialmente tendência, tende precisamente a sair da contradição, a restabelecer a unidade. Na contradição, as forças em presença se chocam, se destroem. Mas, em suas lutas, elas se penetram. A unidade delas – o movimento que as une e as atravessa – tende através de si para algo diverso e mais concreto, mais determinado; e isso porque esse terceiro termo compreenderá [no sentido de conter] o que há de positivo em cada uma das forças contraditórias, negando apenas seu aspecto negativo, limitado, destruidor [LEFEBVRE, 1979, p. 194, grifos do original, acréscimo meu entre colchetes].

    Numa acepção lógico-formal, a reprodução opõe-se à criação e à inovação. Nesse sentido, reproduzir seria manter algo sempre idêntico a si mesmo, não ocorrendo a transformação. Mas o conceito dialético de reprodução reflete o movimento contraditório da realidade e, assim, reproduzir significa tanto conservar o que existe como transformá-lo em algo distinto de si próprio.

    É preciso, porém, ter cautela e evitar que o emprego da categoria dialética de contradição leve a uma visão ingênua de que o desenvolvimento da humanidade seria inevitável e que sempre as contradições levariam a uma realidade qualitativamente superior. Se as contradições envolvem lutas, não há garantias de que as lutas resultarão em evolução. A história, tanto natural quanto social, está repleta de exemplos de lutas que resultaram em involuções, perdas momentâneas ou até mesmo em catástrofes com danos definitivos. Reconhecer que a humanidade tem realizado grandes conquistas ao longo da história, ou seja, que existe o desenvolvimento do gênero humano, não implica, de nenhuma forma, a adoção de uma perspectiva que entenda esse desenvolvimento como uma espécie de destino predeterminado.

    A reprodução da humanidade ocorre sempre por meio da reprodução de sociedades concretamente existentes. Mas a reprodução de uma sociedade pode tanto levar ao aparecimento de uma nova e mais desenvolvida forma de organização social como pode gerar períodos pequenos ou grandes de estagnação ou ainda, no limite, pode conduzir ao colapso da sociedade em questão. No caso do capitalismo, as intensas e profundas contradições que movem esse modo de produção geram possibilidades radicalmente antagônicas de prosseguimento da história humana. O desenvolvimento sem precedentes das forças produtivas gerou possibilidades nunca antes existentes de formas verdadeiramente livres e universais de vida humana. Mas as relações capitalistas de produção, ou seja, a dinâmica social de reprodução do capital, têm transformado essas forças produtivas em realidades altamente destrutivas, o que pode ser visto facilmente no caso do aparato bélico das grandes potências e no caso das consequências ambientais da forma capitalista de relacionamento entre sociedade e natureza.

    Um dos grandes desafios que se colocam à humanidade nos dias atuais é o de realizar uma transformação radical da forma de organização da sociedade, de tal maneira que se consiga preservar as conquistas da sociedade capitalista em termos de desenvolvimento das forças humanas, porém superando sua forma capitalista, inserindo essas conquistas numa dinâmica social voltada à promoção da dignidade, liberdade e universalidade da vida humana, o que não será possível sem o estabelecimento de novas relações de produção e novas formas de metabolismo entre a sociedade e a natureza. Coloca-se aqui com particular nitidez o conceito dialético de reprodução. A sociedade capitalista, para continuar a existir como tal, precisa lutar contra o que ela gera em seu interior, ou seja, precisa lutar contra a necessidade de sua superação. A reprodução da sociedade capitalista gera possibilidades conflitantes: de um lado o agravamento das forças destrutivas em direção a uma situação incontrolável e talvez irreversível e, no lado oposto, a possibilidade de um enorme salto qualitativo produzido pelo redirecionamento das forças produtivas, tirando-as das mãos da classe dominante, a burguesia, e colocando-as a serviço de toda a humanidade.

    Escola, reprodução e transformação

    A radical superação da sociedade capitalista precisa ocorrer como um movimento coletivo guiado por um projeto conscientemente assumido de construção de uma sociedade na qual a produção e a reprodução da riqueza material e espiritual estejam direcionadas para a elevação qualitativa das necessidades de todos os seres humanos. Isso, porém, não ocorrerá sem a compreensão coletiva aprofundada das contradições essenciais da realidade social contemporânea. A educação, em todas as suas formas e particularmente na forma escolar, precisa caracterizar-se como uma luta pelo desenvolvimento da concepção de mundo dos indivíduos. As concepções de mundo atualmente hegemônicas estão aprisionadas aos limites da visão capitalista, seja na vertente de um liberalismo relativamente progressista, seja na vertente mais assumidamente reacionária. A educação, se comprometida com a perspectiva de superação da sociedade capitalista, precisa lutar para a difusão, às novas gerações, dos conhecimentos mais desenvolvidos nos campos das ciências, das artes e da filosofia, criando as bases, na consciência dos indivíduos, para que sua visão de mundo avance em direção ao materialismo histórico-dialético.

    A transformação coletiva e consciente da sociedade requer a compreensão da realidade atual, a análise das possibilidades nela existentes e a elaboração de planos e estratégias de luta para a construção de novas formas de organização social.

    Mas a proposta da pedagogia histórico-crítica, de trabalhar-se na escola com os conhecimentos em suas formas clássicas, mais desenvolvidas, não teria um efeito oposto ao objetivo de difusão de uma concepção de mundo comprometida com a superação da sociedade atual? Tanto em termos dos conteúdos como em termos das formas de trabalho pedagógico, não seria mais coerente buscar algo totalmente novo, isto é, incentivar a construção de novos conhecimentos a partir das experiências cotidianas dos indivíduos?

    Essa é uma visão equivocada que não compreende o fato de que as produções humanas, sejam elas no plano da matéria ou no das ideias, nada mais são do que atividade que se transformou em objetos materiais ou ideativos que se inserem no movimento inesgotável da prática social. Reproduzir a função social de um objeto ou fenômeno cultural é colocar em movimento a atividade em repouso que existe como resultado dos processos de objetivação produzidos pela prática

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