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A Palavra Testemunhal em Carolina Maria de Jesus: reconstruindo imaginários femininos
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A Palavra Testemunhal em Carolina Maria de Jesus: reconstruindo imaginários femininos

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Mesmo com a evolução dos tempos históricos, a América Latina e o Brasil ainda vivem momentos de exclusões e destituições das experiências e modos de ser do sujeito do feminino. Colocado à margem e desconsiderado em suas vivências e palavras, busca as fendas para ser ouvido. Os testemunhos narrativos vêm oferecendo esta audição para outras histórias e memórias que escapam à história oficial. Através deles é possível nos colocarmos na "pele" de Carolinas que ousaram resistir e narrar a partir de outros sentidos, que não somente as institucionalizações hegemônicas compartilhadas no imaginário latino-americano e brasileiro sobre o sujeito do feminino. Ler e ouvir as narrativas testemunhais de Carolina é cuidarmos de um ethos, isto é, de oferecermos outras moradas que ancorem valores mais humanos àquelas que lutam pela construção de uma existência mais autêntica.
LanguagePortuguês
Release dateMay 28, 2021
ISBN9786559567492
A Palavra Testemunhal em Carolina Maria de Jesus: reconstruindo imaginários femininos

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    Book preview

    A Palavra Testemunhal em Carolina Maria de Jesus - Maria Madalena Magnabosco

    capaExpedienteRostoCréditos

    A todas as mulheres que em diferentes épocas e contextos tiveram e têm suas auto gestações interrompidas, sendo caladas em suas dores por significados literais que as destituem de suas experiências humanas. Para as mesmas mulheres que, mesmo diante tal destituição ousaram continuar ressignificando a vida através de narrativas que lhes restituíssem soberanias e sentidos existenciais.

    Em especial à Graciela Ravetti – In memoria

    AGRADECIMENTOS

    A amiga Graciela Ravetti por sua força e testemunho de vitalidade e esperança.

    A Carlos Alberto Cerchi pelo material que colocou à minha disposição, bem como pelo trabalho de resgate e preservação da memória de Carolina Maria de Jesus, em Sacramento.

    À família de Carolina Maria de Jesus, em especial à sua filha Vera Eunice, pelo consentimento em estudar e pesquisar suas histórias e percursos de vida.

    A meus pais, Silvio e Maria José, por me ensinarem resiliências.

    Aos clientes e alunos que possibilitam uma prática de vida que mantem acesa em mim a chama da compaixão, da esperança e do respeitoso conhecimento do humano.

    A meu companheiro e a todos os amigos com os quais celebro a Vida.

    Para manifestar o valor dessa celebração recorro às palavras de Frédéric Chopin:

    Bach é como um astrônomo que descobre as mais maravilhosas estrelas através dos números. Beethoven abraçou o universo com o poder do seu espírito. Eu não voo tão alto. Há muito tempo decidi que a alma e o coração do homem serão o meu universo.

    SUMÁRIO

    Capa

    Folha de Rosto

    Créditos

    PREFÁCIO

    INTRODUÇÃO

    CAPÍTULO I - TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS DA REPRESENTAÇÃO: PERCURSOS DE CAROLINA MARIA DE JESUS

    1. INTRODUÇÃO

    1.1 Sacramento: a primeira fronteira do saber(-se)

    1.2 Estradas: a transgressão de fronteiras

    1.3 São Paulo: ampliando espaços físicos e refletindo as margens do novo processo de desenvolvimento

    1.3.1 A modernização pela Ordem e a criação de seus territórios naturais: as favelas

    1.3.2 Na favela: o quarto de despejo

    1.3.3 A casa de alvenaria

    CAPÍTULO II - AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO

    1. AFINAL, O QUE VEM A SER GÊNERO?

    1.2 O gênero através do olhar da modernização

    1.3 Histeria ou uma tentativa de nominação do mal-estar?

    1.4 Uma história da histeria

    1.4.1 Respostas às interpelações dos olhares masculinos sobre o feminino

    1.4.2 Histeria ou uma defesa da vida na ordem do trágico

    1.5 Um outro olhar sobre a representação nas interfaces da literatura e da psicologia

    CAPÍTULO III - OS ELOS DISCURSIVOS ENTRE TESTEMUNHOS E DIÁRIOS

    1. CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA DOS TESTEMUNHOS

    1.1 Uma breve história sobre a tradição dos testemunhos na América Latina

    1.2 Contextualizando os testemunhos narrativos femininos

    2. O DIÁRIO COMO TESTEMUNHO

    3. POSTURAS RECEPTIVAS DOS DIÁRIOS

    CAPÍTULO IV - A ARQUITETURA DA PALAVRA

    1. A NARRATIVA LITERÁRIA COMO CRÍTICA DO GÊNERO

    1.1 A palavra como poder e cura

    1.2 Construindo outras subjetividades pela política da palavra

    1.3 As subjetividades (de)formadoras e (trans)formadoras de Carolina Maria de Jesus

    1.3.1 As (de)formações em Quarto de despejo

    1.4 Uma subjetividade transformada pela narrativa literária

    CONCLUSÃO

    BIBLIOGRAFIA

    1. BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA DE (SOBRE) CAROLINA MARIA DE JESUS

    2. BIBLIOGRAFIA SOBRE TESTEMUNHOS NARRATIVOS FEMININOS

    3. BIBLIOGRAFIA GERAL

    Landmarks

    Capa

    Folha de Rosto

    Página de Créditos

    Sumário

    Bibliografia

    PREFÁCIO

    Este livro nasceu do desejo de resgatar os testemunhos narrativos como fonte da construção de outras compreensões sobre as vivências humanas diante as situações limites do existir. Narrar é revisitar vividos para projetar futuros que sustentem sentidos de vida. Narrar é também reconstituir uma memória afetiva que garanta um reconhecimento de nosso rosto no mundo. Para nos reconhecermos torna-se necessário desconstruir os imaginários femininos aprendidos e repetidos em relações interpessoais que tecem a trama de nossas histórias no mundo. Para este objetivo de desvelar e reconstruir imaginários escolhi obras de Carolina Maria de Jesus, as quais denunciam e traçam os contornos e consequências desse imaginário formulado no processo de modernização brasileira entre as décadas de 50 a 70.

    O aporte teórico e instrumental utilizado neste processo desconstrutor dos imaginários e representações femininas são as teorias críticas feministas, as quais enunciam outros posicionamentos, geografias e territórios sobre os estudos de gênero.

    Para a realização desta tarefa delimito o campo de estudo na interdisciplinaridade Literatura-Psicologia onde estudo a histeria (enquanto uma representação ao mesmo tempo desviante e reafirmadora dos conceitos dominantes masculinos sobre o feminino) e sua intertextualização com os aportes teóricos e vivos dos testemunhos narrativos femininos.

    Todo esse processo reflexivo e escritural fez-se através dos estudos dos testemunhos em forma de diário de Carolina Maria de Jesus.

    Desconstruir entre e intertextualmente outros tempos-espaços processuais da linguagem, tanto da dita histérica como dos testemunhos narrativos do sujeito do feminino — ambos considerados representações femininas de sujeitos subalternos — resgato e reconstruo semânticas que possibilitam transformações nas formações da subjetividade feminina.

    Assim, ao narrar, o sujeito do feminino, tem a possibilidade de desreificar os processos de construção de sua subjetividade, seja esta rotulada como histérica ou como subalterna da linguagem. Estas são as duas representações do sujeito do feminino que busco desconstruir através dos escritos testemunhais de Carolina Maria de Jesus.

    Desconstruir construindo ou construir desconstruindo a consciência pela linguagem, em que para e através da narrativa a palavra testemunhal torna-se valor transformador de subjetividades e, ao fazê-lo, possibilita uma cura psicológica dos então considerados subalternos da linguagem. É a palavra transcendendo a consideração do valor estético literário para também se colocar como valor terapêutico, transformador das histórias pessoais e nacionais.

    É a palavra testemunhal se fazendo político-analítica ao não apenas denunciar discriminações, opressões e violências por essas representações imaginárias, mas também ao deslocar significados inserindo-os em outros contextos de enunciações.

    Por esse desconstruir construindo significados determinantes e taxativos do que deve ser o feminino, as narrativas testemunhais de Carolina tecem uma crítica às teorias patriarcais do gênero. Em outras palavras, não apenas sujeitos do feminino tratados como subalternos da linguagem, mas como sujeitos in via que, ao habitarem fronteiras de diversos papéis sociais, desestabilizam não apenas os imaginários masculinos e suas representações sobre o feminino como também a linguagem literária e analítica para se referirem a eles. Afinal, os testemunhos narrativos seguem a direção de uma ordem performativa na qual a significação de uma fala é o ato mesmo que a profere. Este é o valor maior da palavra política dos testemunhos dos sujeitos femininos em suas desestabilizações e desconstruções sobre as representações de gênero.

    INTRODUÇÃO

    Nesta introdução situo os conteúdos mais relevantes que compuseram a escrita, de modo a mapear alguns pontos relevantes para a leitura e recepção da mesma.

    No Capítulo I — Territórios e fronteiras da representação: percursos de Carolina Maria de Jesus —, o objetivo foi colocar em relevo, através de delimitação geográfica, etnoracial e de gênero, como foram criadas as homogeneizações necessárias à construção da comunidade sacramentana e da nação e cultura brasileiras no processo de modernização. Homogeneizações essas que desconsideravam o entrelaçamento das diferentes histórias, dos diferentes modos de ser, pensar e construir as redes simbólicas de diversos grupos, gêneros e raças. Por esse motivo, Sacramento foi colocada como a primeira fronteira do saber(-se), considerando que, no contexto da época, as delimitações físicas, ocupacionais, de etnia, raça, classe e gênero eram determinantes e fixadas como uma naturalização das pessoas, como uma questão de origem, no sentido nato.

    Carolina Maria de Jesus com seu jeito atrevido, rebelde, inquieto, questionador desestabilizava algumas dessas certezas ao transitar em espaços que naturalmente não lhe cabiam. Antes mesmo de se tornar uma viandante (aquela que ao se deslocar atua como tradutora de experiências) já produzia intercâmbios nos quais buscava construir diferentes modos de pertencer a tempos-espaços que a separavam dos mapas físicos e simbólicos das cidades.

    Assim, as fronteiras e territórios da representação são os modos com que Carolina, dentro de suas possibilidades, consciência e conhecimentos, tentou negociar com os cânones de classe, de etnia, raça e de gênero, religiosos e literários da época. A seu modo, com seu português ela tentava repensar as fronteiras e buscar modos outros de criar pertenças entre mundos tão contraditórios como os marcados pelas dualidades de gênero.

    Ao reverberar em humores suas indignações por não poder ser um homem para ser respeitada, considerada, participante da história, Carolina apenas tentava inventar uma outra linguagem pela construção discursiva através de outros elementos simbólicos que significassem suas experiências e pudessem articular as conflitantes circunstâncias em que vivia, ou seja, as vivas contradições de dois mundos espacializados em choques de comunicações, homens versus mulheres, brancos versus negros, pobres versus ricos. Linguagem essa que infelizmente não foi ouvida e recepcionada, já que nos contextos da época, as fronteiras e os territórios não eram (serão, hoje?) ainda espaços móveis, polifônicos, híbridos e feitos de incessantes travessias, internas e externas, mas sim comunidades fechadas. Isto por serem pensados como geografias rígidas e homogêneas, com uma língua/linguagem dominante, aspectos necessários para a construção do Estado-nação brasileiro.

    Assim, no primeiro capítulo apresento Carolina como uma representação da figura feminina viandante que, ao narrar suas trajetórias geográficas e textuais, ao atravessar locais que constantemente a alienavam pelas discriminações sofridas, vai tentando compreender os fios de suas histórias. Histórias que trazem a frequente marca da face de uma mulher negra, pobre e sem a presença legitimadora do masculino. Histórias pessoais, mas também de cunho coletivo, acerca da construção de subjetividades sempre instáveis porque fora dos padrões e expectativas dominantes do que deveria originalmente caber a uma mulher.

    No Capítulo II — As representações de gênero —, a principal questão trabalhada não foi tão-somente a resistência à dominância do patriarcalismo da definição dual. Pelo contrário, busco delinear um novo posicionamento do sujeito feminino através das estratégias de desestabilizações criadas nas instâncias que confirmam o poder/conhecimento como pertencentes ao masculino.

    Um dos modos de desestabilizar as instâncias de poder do gênero foi o deslocamento produzido por uma mulher de cor e semialfabetizada se tornar escritora e conseguir uma publicação maior que os grandes mestres da literatura da época. Por esta ousadia Carolina pode ser pensada como uma matriarca da literatura afrodescendente. Literatura essa até então não reconhecida pelos críticos e produtores literários, ganhando outros contornos após as publicações de Quarto de despejo, o qual nos possibilita uma compreensão da dimensão política e da historicidade da literatura afro nos anos 50 a 70 no Brasil.

    Pela transcrição das experiências em forma de diário, Carolina se torna uma testemunha viva da historicidade, ou seja, do processo histórico in via e presente nos corpos e textos brasileiros da época. Sua narrativa reinscreve a importância da historicidade sobre o memorialismo ao ser presença histórica in loco e não apenas como descrição posterior dos fatos e suas significações. Seu ato de fala, sua performance no presente da situação e contextualização brasileira, suas tentativas de negociações com e nas fronteiras do escrito e do oral, do culto e do popular, do cânone e do testemunho narrativo, do ser homem e mulher na cidade e na favela reinauguram o sentido de historicidade e do testemunho como ex-peri-ência. Ex, que sai de si para perceber a situação a partir de outros ângulos; peri, circunscrevendo outros elementos simbólicos a serem considerados e analisados pela cons-ciência, ciência do conhecimento. A experiência como um dos instrumentos construtores da historicidade do testemunho feminino e do testemunho (pelo feminino) da historicidade brasileira.

    Outra desestabilização aconteceu por uma subversão da língua/linguagem específica dos gêneros literários, ao mesclar linguagem oral com expressões líricas, poesias, relatos diários, contos etc.

    Esses exemplos de subversões expressavam o descentramento de Carolina, a hibridez vivenciada em seu processo de mulher viandante, que ora a possibilitava sair dos modelos escravizantes de gênero e raça que aprendera, ora a fazia prisioneira desses próprios modelos. Tal descentramento — enquanto uma expressão do que é viver nas zonas potenciais, conflitivas e tensionais do entrelugar, do entre e intergênero — foi recepcionado como instabilidade, loucura, arrogância, necessidade de sucesso, histeria (nervosismo), enquanto eram apenas as encarnações das tensões implícitas em tentar escapar dos padrões masculinos dominantes que lhe eram impostos.

    Esse descentramento — considerado tão próprio da patologia histérica sob a nomeação de divisão vertical, cisão entre mundo externo e teatro particular, dissimulações com o objetivo de seduzir, de ganhar aprovação do outro — assinalava uma noção de identidade contraditória, ou seja, composta de mais de um discurso. Identidade esta que ameaçava o status homogeneizador do Estado-nação, ou seja, a unicidade de posicionamentos e discursos sobre os gêneros. Diante de tal ameaça, a estratégia para a manutenção do poder/conhecimento hegemônico era colocá-la sob a designação de loucura, ou seja, o desvario de uma fala-escritura sem articulação clara e objetiva para com a língua/linguagem, em que o feminino deveria se enquadrar.

    Destituída — por este discurso — da construção de novas subjetividades, Carolina não podia se ver livre das normas sociais dominantes de como ser uma mulher, e também escritora, para convencer-se de que podia existir sem os complicados vínculos ao considerado compromisso maior de uma mulher: o homem. Assim, ora ela oscilava em um discurso onde hostilizava outras mulheres (mas também tinha compaixão), ora ela maldizia os homens (mas também os desejava), ora tinha preconceitos morais sobre a expressão dos desejos sexuais femininos, mas ela própria possuía seus parceiros e teve três filhos de pais diferentes.

    Essas contradições discursivas e comportamentais em Carolina expressavam a dificuldade de qualquer sujeito do feminino em desprender-se dos dualismos de gênero e, ao mesmo tempo, acenavam para uma busca com o fim de recolocar esse sujeito em outras identificações que não apenas a do olhar masculino.

    Foi essa busca de identificação por outras mediações de gênero que nos levou a estudar a histeria (enquanto uma representação ao mesmo tempo desviante e reafirmadora dos conceitos dominantes masculinos sobre o feminino) e a intertextualizá-la com os aportes teóricos e vivos dos testemunhos narrativos femininos. Afinal, a histeria desestabiliza o gênero por sua multiplicidade de discursos, tal como os testemunhos desestabilizam o fazer literário canônico pela pluralidade de vozes que denunciam e criticam os discursos hegemônicos patriarcais. Ambos fazem uso do mesmo recurso para gerar essa desestabilização, ou seja, o deslocamento de significados dados como naturais e verdadeiros, pela apropriação da palavra destinada àqueles que têm sensibilidade para ler-ouvir-comunicar outras línguas/linguagens.

    No Capítulo III, acontece a contextualização teórica dos Testemunhos Narrativos desde seu surgimento — reconhecido, em 1970, pelo prêmio Casa de Las Américas — até os dias atuais. Nesse itinerário teórico deparei com todas as contradições que caracterizam esse gênero literário, ao ser olhado comparativamente com os gêneros canônicos da literatura. Deparei-me também com as dificuldades receptivas encontradas pelo Testemunho em suas lutas para ser reconhecido como literatura, sem os adjetivos duais de alta literatura e literatura menor ou contraliteratura.

    Inseridos no contexto dos Estudos Culturais, os Testemunhos são considerados como discursos de resistência e de outras narrativas performáticas, isto é, narrativas que se distanciam das ordens constatativas em direção a uma ordem performática na qual a significação de uma fala é o ato mesmo que a profere. Eles têm por objetivo a denúncia de discriminações, opressões e violências sociopolíticas, culturais e psicológicas sofridas pelos então considerados subalternos da linguagem. Entre estes se encontra o sujeito do feminino, considerado — pelas práticas e fazeres literários dominantes masculinos — como seres sem palavra, sem participação ativa na construção e transformação de símbolos, linguagens e histórias.

    Durante toda a década de 1970 e de 1980, os testemunhos lutavam e resistiam através da narrativa de mulheres para uma reapropriação da voz dos emudecidos do gênero. Assim, através do fazer narrativo e da publicação dos testemunhos femininos o objetivo maior era dar a conhecer a existência de outros modos de (des-)construir histórias e memórias nacionais pela existência de outras posições de enunciações. Foi o emergir de um discurso silenciado que ainda se pautava pela dualidade dos gêneros, já que pelo contexto de início o objetivo era o de dar a voz ao subalterno. A concessão desse direito a ter voz implica, ainda, em uma concepção hierárquica onde alguma autoridade irá consentir algum benefício.

    Ultrapassada essa primeira fase de contextualização teórica, de enfrentamentos de paradigmas tão cultivados em nossa mentalidade patriarcal, foi dado mais um passo. Não mais hierarquias, as quais correm sempre o risco de uma reversão contínua de posições e enfrentamentos de poderes, mas a consideração e inclusão das diferenças. Outros olhares, outros modos de ser, pensar, agir, escrever, podem conviver lado a lado com os considerados padrões literários e psicológicos. Entretanto, nessa consideração para com as diferenças continuava existindo o raciocínio hierárquico, pois, ao se definir o outro como diferente, este já é situado em uma posição de enunciação específica. Em outras palavras, o diferente foi essencializado, e como tal não saiu do paradigma da identidade homogênea e naturalizada. Só que, agora, sob a denominação de outro.

    Com a introdução dos estudos literários críticos feministas, principalmente a partir da década de 1990, uma nova luz foi lançada sobre as contextualizações teóricas dos testemunhos. Não mais dar voz a, não mais considerar essencializado o diferente, mas sim, (des-)construir entre e intertextualmente outros tempos-espaços processuais da linguagem como a grande transformadora das subjetividades dos gêneros. Ao narrar, o sujeito do feminino tem a possibilidade de desreificar os processos de construção de sua subjetividade. Como toda narrativa implica em tomar uma distância da experiência — já agora no status de memória — ela resgata o sujeito do feminino da condição de subalterno da linguagem pelo múltiplo movimento de entrada e saída das experiências. É o desconstruir construindo ou construir desconstruindo da consciência pela linguagem e, consequentemente, das histórias e memórias pessoais e coletivas, as quais não são dadas como naturais do sujeito em questão, mas antes, erguidas, enunciadas e textualizadas por práticas sociais e históricas.

    No Capítulo IV — A arquitetura da palavra —, o objetivo foi demonstrar como a palavra testemunhal, dentro do contexto citado anteriormente, tem o valor de transformar subjetividades e, ao fazê-lo, possibilitar uma cura psicológica dos subalternos da linguagem. É a palavra transcendendo a consideração apenas do valor estético literário para também se colocar como valor terapêutico, transformador das histórias pessoais e nacionais.

    Por essa transcendência, a palavra se faz política, não apenas ao denunciar discriminações, opressões e violências, mas ao deslocar significados inserindo-os em outros contextos de enunciações. O que (de-)forma o sujeito na construção de sua subjetividade é a palavra mal-dita, ou seja, aquela que apenas reafirma posições textuais, discursivas e representacionais dominantes, não oferecendo a alternativa de outros significados, outras leituras, outras escrituras.

    É no sentido de desconstruir construindo os significados determinantes e taxativos do que deve ser o feminino que as narrativas testemunhais tecem uma crítica às teorias patriarcais do gênero. Como seres de linguagem que somos, a palavra tem a função não apenas da comunicação usual, coloquial, textual do já conhecido, mas principalmente de transgredir as formas fronteiriças e territoriais dos significados e das semânticas do gênero. Sem essa transgressão, não apenas os sujeitos do feminino são tratados como subalternos da linguagem, mas também todos aqueles que permanecem na ilusão de estarem ditando regras, normas, leis, posturas, cânones, já que habitantes da mesma prisão que imaginam pertencer apenas ao outro.

    Não quero essencializar a palavra testemunhal como a única desconstrutora e viabilizadora de outras consciências pelas narrativas das experiências vitais que configuraram específicas subjetividades. Essencializar seria apenas reverter a posição hierárquica criticada anteriormente e permanecer nas dualidades do poder/conhecimento dos gêneros, das teorias, dos fazeres literários.

    O objetivo é apenas refletir, argumentar, fundamentar e textualizar sobre um gênero literário que tem sido estudado e debatido, nos estudos culturais e críticas feministas da América Latina. Sua presença na Academia, nos congressos, nos seminários e simpósios sobre a atuação, participação e textualização literária dos sujeitos do feminino quer nos dizer alguma coisa. Algo que ainda não foi ouvido e recepcionado tal como as grandes obras, por estar em processo, in via, habitando as fronteiras de diversas disciplinas e sofrendo as tensões próprias desse movimento ao mesmo tempo intenso e paralisador, fluído e arrastado, pleno e vazio, claro e contraditório, comunicador e emudecedor, que são as bordas de toda interdisciplinaridade, uma das atuais fronteiras das linguagens literárias.

    Por este viés interdisciplinar enuncio que este livro possibilita, através dos estudos sobre Testemunho e Histeria, um redimensionamento das relações entre a linguagem e o real, principalmente no aspecto afirmativo pós-moderno de que todas as narrativas são literatura/ficção. Neste redimensionar relacional, o sujeito do feminino - seja pela narrativa clínica e/ou literária- busca outras compreensões que possam transformar símbolos e recriar linguagens sobre os traumas, ou seja, sobre as feridas produzidas pelo desmantelamento de identidades, pertencimentos sociais e econômicos, posições enunciativas, de sentido e de gênero.

    Por essa constante tentativa de simbolizar o irrepresentável pela palavra escrita e/ou oral os testemunhos narrativos e seus conteúdos experienciais têm construído

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