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Nova gramática constitucional: mutações conceituais no âmbito da cidadania
Nova gramática constitucional: mutações conceituais no âmbito da cidadania
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Nova gramática constitucional: mutações conceituais no âmbito da cidadania

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O Ministro do Supremo Tribunal Federal LUIZ FUX, ao prefaciar a obra, afirma: "A metodologia empregada é tão sistemática e coesa, que não há denominação melhor que "Gramática". Meu nobre colega, agraciado pela capacidade de síntese de um pesquisador-magistrado, destrincha conceitos. Conceitos de uma nova linguagem constitucional, que se desenrola diariamente perante nossos olhos. Ao final, creio que os senhores e as senhoras ficarão, assim como eu, intrigados e maravilhados pela valorosa contribuição da obra: o Direito Fundamental de Cidadania. Na teoria, enquanto unidade de análise; na prática, como respeito à potencialidade democrática."
LanguagePortuguês
Release dateJun 1, 2021
ISBN9786559566907
Nova gramática constitucional: mutações conceituais no âmbito da cidadania

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    Nova gramática constitucional - Edson Aguiar de Vasconcelos

    decisórios.

    PARTE I

    FLUXOS E REFLUXOS DA CIDADANIA

    CAPÍTULO I - SURGIMENTO DE NOVA GRAMÁTICA CONSTITUCIONAL

    1. VELHO MUNDO DESPEDAÇADO

    2. O DIREITO CONSTITUCIONAL EM DESCONSTRUÇÃO

    3. NOVA GEOGRAFIA DO PODER

    1. VELHO MUNDO DESPEDAÇADO – Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo ficou dividido entre as esferas de influência dos Estados Unidos da América e da União Soviética. Esta polarização ideológica realçou o contraste entre capitalismo e socialismo.

    O socialismo preconizado pela União Soviética pretendia expandir sua linha ideológica a outros países, com base em igualdade social que se materializaria em economia planificada, estrutura partidária única (Partido Comunista) e submissão dos cidadãos às diretrizes da mesma agremiação partidária. Um quadro que não admitia qualquer tipo de oposição política.

    Os Estados Unidos da América representavam o liberalismo, que visava à expansão do sistema capitalista, com base na economia de mercado, sistema democrático e defesa da propriedade privada.

    O sistema comunista pretendia erradicar a miséria do mundo, distribuindo de forma equitativa os recursos que eram produzidos, segundo o lema anarco-comunista: de cada um de acordo com as suas possibilidades, a cada um de acordo com as suas necessidades.

    O sistema capitalista, à sua vez, pretendia dividir a riqueza do mundo, estimulando a livre iniciativa e a concorrência em um mercado que deveria ser acessível a todos.

    Nenhum dos dois projetos vingou...

    O sistema comunista entrou em colapso, tendo-se como marco desse declínio a queda do Muro de Berlim em 1989 e a consequente fragmentação da União Soviética, a grande potência comunista.

    Ainda que não mais exista conflito significativo entre capitalismo e comunismo, não se pode dizer que o sistema comunista tenha desaparecido, pois continuam em destaque países que o praticam (China, Coréia do Norte e Cuba). É verdade que a China desenvolve um sistema de comunismo mitigado, com abertura para o mercado capitalista. Até mesmo Cuba, último bastião comunista nas américas começa a se abrir ao mundo capitalista. Apenas a Coréia do Norte continua em posição de comunismo radical. Estas realidades comunistas remanescentes demonstram que o ideal igualitário do regime ainda guarda espaço no contexto político mundial.

    Ainda que não se desconsidere o ideário igualitário comunista, tem-se por certo que sua ideologia partidária morreu. Apenas por ignorância se pode apontar o comunismo como um contraponto ao liberalismo, o qual, aliás, se encontra desprestigiado, quase morto também.

    A história econômica continua em curso, a despeito da tese de Francis Fukuyama, que se afirma ser a democracia liberal o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a forma final de governo humano².

    Surge um inquietante mundo novo no cenário mundial, no qual os valores liberais não conseguem afastar de si os clamores e exigências de atendimento de imenso contingente de seres humanos que não conta com mínimos recursos existenciais e isto explode cem diversas formas nos espaços sociais, mediante aparições massivas de mendicância e trabalhos informais que desordenam a vida nas cidades, chegando ao extremo de intervenções invasivas, com violência e apropriação de bens e valores pertencentes a pessoas que vivem no espaço urbano.

    Estas aparições desesperadas não podem ser contidas por medidas políticas liberais ou autoritárias, na medida em que não se está diante de situações sociológicas tradicionais que podiam ser amarradas em conceitos desde sempre conhecidos, a exemplo de povo (população de determinado território) ou classes sociais (trabalhadores, proprietários etc.).

    Estas aparições ainda desafiam adequada compreensão, mas, desde já, é possível enquadrá-las no conceito de Multidão formulado por Antonio Negri³ nos seguintes termos: "Em um sentido mais geral, a multidão desafia qualquer representação por se tratar de uma multiplicidade incomensurável. O povo é sempre representado como unidade, ao passo que a multidão não é representável. Ela apresenta sua face monstruosa vis-à-vis os racionalismos teleológicos e transcendentais da modernidade. Ao contrário do conceito de povo, o conceito de multidão é de uma multiplicidade singular, um universal concreto. O povo constitui um corpo social; a multidão não, porque a multidão é a carne da vida. Multidão é a representação de um mundo novo, é um conceito que nos conduz a um mundo inteiramente novo, fazendo-nos mergulhar em um turbilhão de mudanças que se encontram em curso.

    Este quadro de tensão social já não distingue estado de normalidade de estado de exceção. A emergência e os poderes decorrentes dessa nova realidade parecem confirmar tese de Giorgio Agamben que anuncia o desenvolvimento de uma guerra civil mundial, no qual as situações de exceções e seus mecanismos tendem a se apresentar como um paradigma de governo dominante. O autor italiano antevê um verdadeiro deslocamento de providências provisórias e excepcionais para um conjunto de técnicas de governo que, de modo muito perceptível, estão transformando a estrutura e o sentido da distinção entre os diversos tipos de constituições.

    Nesta perspectiva, o estado de exceção apresenta-se como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo, projetando uma forma legal daquilo que não pode ter uma forma legal.

    Situações antes consideradas extraordinárias, põem atualmente em funcionamento um poder que não se submete aos tradicionais mecanismos de regulação e controle que antes autorizavam o uso pelo Estado de dispositivos legais para suprimir seus próprios limites de atuação e suspender a própria legalidade e os direitos dos cidadãos. Como exemplo desses mecanismos tradicionais citam-se as antigas figuras do estado de emergência, estado de sítio, estado de guerra etc. Na atualidade, a exceção transmutou-se em regra, situação permanente que pode ser considerada autêntico padrão de atuação dos Estados.

    2. O DIREITO CONSTITUCIONAL EM DESCONSTRUÇÃO – Emprega-se aqui o elemento circunstancial denominada desconstrução para designar o raciocínio difundido por Jacques Derrida, pelo qual se procura entender o significado mutante das palavras, sobretudo das escritas, que não têm sentidos unívocos e produzem significados múltiplos (polissêmicos), sempre referenciais, incertos, diferentes e diferidos.

    Mesmo fenômeno ocorre com a aparente imutabilidade dos conceitos básicos do Direito Constitucional, que permanecem inalterados no campo doutrinário.

    A verificação empírica, no entanto, desmente esta verdade conceitual. A realidade faz aflorar diversas alterações nos conceitos constitucionais que estruturam a própria ideia de democracia, avultando nesse cenário o tradicional princípio da separação dos poderes que aparece dobrado por intensa judicialização que se traduz na interferência dos juízes em atividades sociais anteriormente insindicáveis no âmbito jurídico.

    No contexto democrático atual, o povo já não é representado apenas por agentes eleitos, sendo já tutelado por um Judiciário quase onipresente, interferência esta que se projeta na seara política, antes detentora da primazia das grandes decisões de interesse da sociedade civil.

    A sempre desejada afirmação dos valores da democracia e dos direitos do homem afigura-se debilitada porque, na prática, observa-se que a imagem de povo soberano se encontra profundamente fissurada.

    A própria ideia de povo, identificado com nação, se dilui pela consagração de comportamentos que não mais consideram o princípio da nacionalidade, anteriormente marcado por língua comum e origem geográfica bem definida.

    O Direito Constitucional tem operado duplo movimento de regulação, com abrangência do sistema jurídico nacional e de outros sistemas jurídicos supranacionais. Isto estimula reflexão sobre as noções que têm explicado a existência do edifício jurídico-normativo, ressaindo, sobretudo, as ideias de soberania, democracia e separação de poderes.

    Esta inegável mutação conceitual parece sugerir que esses novos conceitos estão a merecer nova terminologia e formulação de nova gramática jurídica.

    Alguns questionamentos parecem oportunos, arrolando-se, de maneira não exaustiva, os seguintes: i) a legitimidade do povo atualmente é realmente democrática? ii) a soberania partilhada é concebível? iii) a noção de hierarquia de normas é suficiente para explicar a construção do ordenamento jurídico? iv) quais os lugares que devem ocupar as autoridades independentes no âmbito das instituições? v) é possível falar em Poder Executivo relativamente à função de determinação da política da nação?

    Estas são apenas algumas das aporias que perpassam aquilo que se pode denominar de crise de identidade do Direito Constitucional atual. Não há dúvidas de que os exemplos poderiam multiplicar-se quase ao infinito.

    Esta situação problemática provoca certa preguiça intelectual, a que se junta visível conformismo ideológico que tende a enquadrar as palavras que designam uma realidade que já não é mais a mesma.

    Bertrand Mathieu lembra que alguns juristas revelam lastimável tendência de inscrever a realidade dentro de seus esquemas, sem pelo menos tentar uma adaptação de suas análises aos fatos da vida.

    A democracia representativa não pode continuar como se fosse horizonte indevassável das sociedades políticas. No interior de um sistema fragmentado e tecnicista, o poder é necessariamente oligárquico.

    De maneira horizontal, a sobreposição da democracia em âmbitos locais, nacionais e comunitária abre novos campos à ideia de participação em perspectiva democrática, já que nesse aspecto o povo está absolutamente ausente, o mesmo ocorrendo com outras ordens jurídicas não hierarquizadas e multipolares.

    Enfim, abre-se um espectro de perplexidade paradoxal sob suposta crença de que o sistema jurídico-político não mudou porque as palavras não mudaram.

    Ao que parece, a continuidade da vida social tem horror ao vácuo existencial e dificuldade de se reconstruir segundo outra lógica. É espécie de aversão inspirada no epítome latino (horror vacui), que aponta horror da natureza ao vazio, pelo que qualquer tendência de esvaziamento em determinado espaço provoca movimento automático que impede tal ocorrência.

    O exame das mutações ocorridas no Direito Constitucional é tão pertinente que seu campo se tem alargado em grande escala, sobretudo na área dos direitos fundamentais.

    De fato, o Direito Constitucional influencia todos os demais campos normativos e é vocacionado a inspirar formação de ordenamentos quadros em quase todos os sistemas que adotam a Constituição como documento fundante da própria legitimidade.

    3. NOVA GEOGRAFIA DO PODER - A problemática relacionada à questão identitária resultante da intensa migração de pessoas para outros países, sobretudo os mais desenvolvidos, deve ser analisada em conexão com o direito em sentido globalizante. Esta vertente analítica faz lembrar o Enigma da Esfinge, sempre a exigir decifração sob pena de a todos destruir.

    Este desafio pode ser qualificado como um "objeto (ainda) não identificado", sendo essa a perspectiva teórica pela qual Maria Rosaria Ferrarese⁴ refere-se ao direito denominado global, uma figura existente, mas que se revela um objeto de difícil visibilidade.

    Este jeito de ser do direito corresponde a um contexto de profunda reorganização do poder, notando-se forte mudança nos aspectos culturais, sociais e demográficos em quase todas as partes do mundo ocidental.

    O direito assim entendido é, a um só tempo, causa e efeito de nova modalidade de organização do poder e da sociedade. Apresenta-se em um mundo profundamente transformado, no qual o capitalismo está redesenhando a geografia do poder em torno da sociedade e dos organogramas do direito e das instituições.

    Esta nova gramática jurídico-política provoca diversos tipos de perplexidades, que se iniciam com a própria extensão daquilo que se entende como direito global, porque não se vê no caso sequer aproximação com aquelas disciplinas jurídicas tradicionais, a exemplo do Direito Internacional.

    Existem, sim, várias outras distinções que afastam este (suposto?) direito global das configurações jurídicas do passado, podendo-se arrolar, de maneira sumária, as seguintes diferenças: i) de proveniência; ii) de legitimação; iii) de linguagem; iv) de relação com a sociedade, com a política e com a economia.

    Outro traço de forte afastamento do quadro jurídico moderno está na impossibilidade de se identificar uma nítida separação entre direito público e direito privado.

    Este difuso direito, intitulado de global, pode ser considerado resultado de um fato social já adquirido, no qual o mesmo aparece como um produto jurídico, ou ainda como um fenômeno em processo de formação ainda não completado, mas que se vai delineando. Pode-se, em suma, entender o direito global como um fato jurídico dotado de características próprias, ou como um processo gradual, no qual a específica questão jurídica vem assumindo novos traços e novas funções.

    Uma das causas da mudança foi a perda da força dos Estados nos negócios internacionais, nos quais os mesmos atuavam como sujeito soberano, pela via formal dos tratados. Esta profunda mudança de paradigma tem sido considerada como sendo uma transferência de influência da diplomacia para o direito. Essa mudança ocorreu porque o Estado, que tradicionalmente atuava de forma ocasional e com uma composição prevalentemente bilateral ou trilateral, perdeu paulatinamente tal característica e passou a agir de maneira multilateral, deixando de lado a atuação esporádica e ocasional para assumir um posto estável e institucionalizado.

    Mas até mesmo o considerado multilateralismo, traço mais característico do cenário da relação internacional hodierna, assumiu nova complexidade, diante do surgimento de novo centro de gravidade constituído por organismos administrativos.

    Em virtude da multilateralidade dos acordos, os Estados hoje habitam o espaço internacional não mais apenas na forma direta, mas também por interpostas pessoas, além de se apoiarem em organizações internacionais das quais são partes, mas estas, no final, acabam por adquirir autonomia e uma própria razão organizativa, o que tem reduzido consideravelmente o controle do Estado.

    Instituições como a Organização Mundial do Comércio, a Organização Mundial da Saúde (de intensa influência e relevância na pandemia de 2020), o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional são organismos importantes e complexos, que contam com seus próprios regimes jurídicos, quase autônomos, mas que produzem novos aparatos funcionais úteis e necessários para gerir as várias funções contempladas nos acordos multilaterais.

    O espaço internacional globalizado não é mais habitado apenas pelos Estados, como ocorria tradicionalmente. Este novo espaço aparece constituído e habitado também por outros sujeitos e por organizações internacionais de vários gêneros, comprimindo os Estados para uma situação cada vez mais acentuada de interdependência.

    O mundo atual das relações internacionais assume uma conformação em rede (horizontal) na qual a imagem do Estado se transmuta de uti singuli em uti socii e fica em posição associada, sem perder, no entanto, sua autonomia.

    Desta forma, a globalização interrompe o arranjo institucional criado pela tradição constitucional caracterizada pela rígida soberania do Estado, dando lugar a outra forma de interconexão entre o ente estatal e instituições associadas, o que, todavia, não implica falência do Estado, mas uma nova situação de interdependência e de associação em projetos compartilhados, de natureza política e econômica.


    2 O Fim da História e o Último Homem.

    3 Para uma definição ontológica de multidão, revista Lugar Comum - Estudos de Mídia, Cultura e Democracia nº 19/20.

    4 Prima lezione di diritto globale.

    CAPÍTULO II - À PROCURA DO SUJEITO CONSTITUCIONAL

    1. SIGNIFICADO DE SUJEITO CONSTITUCIONAL

    2. CIDADANIA EM SENTIDO CONSTITUCIONAL

    3. UMA PROBLEMÁTICA CONTINUADA

    4. REQUISITOS CONSTITUCIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

    5. O DIREITO E O TEMPO

    6. PARADIGMAS VALORATIVOS

    1. SIGNIFICADO DE SUJEITO CONSTITUCIONAL – O constitucionalismo moderno pressupõe limitação do governo pelo Estado de Direito e absoluta garantia de exercício dos direitos fundamentais. Esta objetivação/subjetivação do atual constitucionalismo leva à conclusão de que o sujeito constitucional só pode adquirir identidade própria quando consegue inserção no domínio intersubjetivo circunscrito pelo discurso constitucional. Esta dinâmica discursiva pode contar com conteúdo objetivo construído pela via subjetiva dos legisladores individualmente considerados, os quais representam interesses de diversas camadas sociais, bem assim de corporações que compõem e dominam a esfera institucional pública. Por isto, a identidade do sujeito constitucional resulta tão difusa e se revela no contexto temporal pelo entrelaçamento do passado do constituinte com o próprio presente e ainda com o futuro das gerações vindouras, sendo problemático o quadro incerto do passado e do futuro porquanto aberto a possibilidades de reconstrução conflitantes, tornando assim complexa a tarefa de revelar linhas de continuidade.

    Para Michel Rosenfeld⁵, todas essas aporias aconselham afastamento de qualquer tipo de personificação do sujeito constitucional, pois este não se faz representar por nenhum dos atores constitucionais, a exemplo dos indivíduos encarregados de elaborar o documento (constituintes), ou aqueles incumbidos da tarefa de revelar as respectivas normas (intérpretes), também não se revelando nos destinatários das mesmas normas (sujeitos das prescrições). Estas figuras fazem parte do sujeito constitucional, mas com o mesmo não se confundem.

    O sujeito constitucional, assim considerado, é aquele que se expressa no discurso intersubjetivo que vincula todos os seres humanos que estão e serão reunidos pelo mesmo conjunto de normas constitucionais. Em verdade, a expressão plena da autoidentidade constitucional resulta de um exercício imaginário que envolve uma extrema compressão de todas as épocas e uma simultânea apreensão de todas as variáveis interpretativas possíveis, combinadas com a habilidade de destilar, compensar tudo isso em uma narrativa coerente e confiável.

    A articulação da autoidentidade constitucional só pode realizar-se de maneira gradual por um sujeito em constante processo de estruturação, o que se faz pouco a pouco. É uma construção que se elabora a partir de fragmentos díspares que precisam ser projetados em um passado e em um futuro. No entanto, não se deve entender este fenômeno como uma construção arbitrária, porquanto essa elaboração deve ser suplementada em processo contínuo de reconstrução. Mas essa construção apenas nos mostra um vislumbre da identidade constitucional, de maneira que a função da reconstrução é transformar esse vislumbre em uma imagem definida. A identidade constitucional revela um verdadeiro paradoxo entre construção e reconstrução. O entendimento dessa relação joga com algumas antinomias, destacando-se as existentes entre existência e validade, entre fatos e normas, entre o real e o ideal.

    Dentre todas as antinomias, destaca-se aquela que opõe fato à norma, manifestando-se pela justaposição das normas constitucionais e os fatos sociopolíticos e históricos. Revela-se também por meio do conflito entre normas de uma Constituição efetivamente vigente. Na relação entre norma constitucional e fato histórico, a aplicação da mesma norma constitucional pode conduzir a distintos resultados, dependendo dos fatos históricos relevantes.

    Interessante notar que essas antinomias têm apenas aparência de paradoxos, pois, como observa Menelick de Carvalho Netto⁶, embora os polos das antinomias sejam opostos, estas contradições instauram uma rica, produtiva e permanente tensão de ordem constitutiva, o que é capaz de dotar a doutrina constitucional da complexidade necessárias para enfrentar problemas que ela antes nem era capaz de perceber.

    2. CIDADANIA EM SENTIDO CONSTITUCIONAL - A cidadania em sentido constitucional arranca necessariamente de um significado jurígeno, escusado mais uma vez o uso do truísmo.

    Com efeito, a cidadania, em vertente jurídica, ainda se encontra à espera de sistematização adequada no plano teórico, mas esta afirmação não significa desmerecimento aos notáveis estudos elaborados nas mais diversas disciplinas jurídico-políticas.

    Diga-se, à partida, que não se tem pretensão de realizar tão relevante tarefa no presente livro, devido à dinâmica das relações sociais em que se agita a ideia de cidadania, o que não aconselha conclusões definitivas porque dependente de amadurecimento e ponderação nos variados enfoques realizados ordinariamente no âmbito de estudos científicos da doutrina juspolítica.

    É bem por isto que apenas se pretende apenas avançar uma contribuição à compreensão da temática que só recentemente voltou a ocupar as pautas de análise nas mais variadas áreas do conhecimento científico, sendo referida em diversos documentos constitucionais contemporâneos.

    A ideia do direito de cidadania se tem desenrolado na sequência da longa evolução dos direitos do homem, tendencialmente demonstrativa da vocação e da necessidade do homem moderno em buscar uma proteção jurídica que só pode ser alcançada em ambiente de paz.

    Esta constatação permite enquadrar a cidadania na categoria de direito fundamental revelada em incessante procura de sua inserção em documentos constitucionais que lhe possam outorgar positividade nas diversas ordens jurídicas.

    Esta concepção foi utilizada por Kant em vários escritos, nos quais a busca de segurança jurídica radica no princípio da solidariedade e é apresentada como disposição de índole moral que se revela por um sinal que se deve perscrutar mediante rememoração do passado (análise histórica), demonstração do presente (análise crítica) e avaliação dos acontecimentos futuros de possível inferência (análise prospectiva).

    Esta tríplice perspectiva, que reconduz às mencionadas vertentes analíticas preconizadas por Kant (signum rememorativum, demonstrativum e prognosticum), implica pressuposição não só da existência, mas também da evolução e da afirmação de um direito do povo inscrito numa constituição civil de autorreferência do próprio povo e que, por isto, deve ser republicana (no sentido atual de democrática), sendo sua função originária o afastamento de conflitos bélicos. Este tipo de Constituição, instituída pelo próprio povo e por ele considerada adequada, denota hodiernamente o sentido de constituição material.

    É de se averbar que a figura metafísica, signum, formulada por Kant tem sido veiculada pela expressão sinal dos tempos, que tem origem em documento da Comissão Pontifícia Iustitia et Pax apresentado em 1975 na Cidade do Vaticano, sob o título A Igreja e os direitos do homem, valendo transcrever-se o seguinte excerto: "O dinamismo da fé impele continuamente o povo de Deus a uma leitura atenta e eficaz dos sinais dos tempos. Na contemporaneidade, entre os vários sinais dos tempos, não pode passar em segundo plano a crescente atenção que, em todas as partes do mundo, está voltada para os direitos humanos, seja pela consciência cada vez mais sensível e profunda que se forma nos indivíduos e nas comunidades em torno desses direitos, seja pela contínua e dolorosa multiplicação das violações contra os mesmos."

    É evidente que o referencial democrático anotado por Kant se põe em consonância com os fatores temporais prevalecentes no período anterior à Revolução Francesa, mas que não carece de atualidade quando submetido à leitura atenta dos sinais dos tempos presentes.

    Nesta linha doutrinária, o estabelecimento da paz (hoje considerada também a normalidade democrática) não pode prescindir da efetiva existência de soberania popular, que se consubstancia em lei concedida pelo povo a si próprio.

    Assim sendo, a existência de uma constituição republicana – ou democrática – projeta possibilidade de paz no âmbito externo do Estado de origem porque a determinação da vontade daqueles que podem assumir o ônus da guerra não poderá se formar à revelia dos mecanismos de controles democráticos.

    Neste particular, põem-se em relevo as seguintes proposições destinadas a viger entre os Estados: a) nenhum Estado interferirá na constituição e no governo de outro Estado: b) a Constituição civil de todos os Estados deve ser republicana, definido o republicanismo como o princípio político segundo o qual o poder executivo (o governo) figura separado do poder legislativo; c) o Direito das Nações será baseado em uma Federação de Estados Livres, pois o homem possui uma grande capacidade moral; d) os direitos cosmopolitas serão regidos pelas condições da hospitalidade universal⁷.

    O mesmo se dá na concepção contemporânea de normalidade democrática e considerados os variados vínculos existentes entre os Estados, pois as relações internacionais obrigam ao exercício de atividades de apoio, cooperação e integração resultantes de um dever de solidariedade que se forma na convivência fraterna ou que resulta da socialidade imanente à normal administração dos interesses comuns no mundo globalizado.

    A constituição republicana referida por Kant viabilizaria a manutenção da paz pela consagração do direito cosmopolita, calcado na ideia de uma comunidade (Gemeinschaft) pacífica e construída no reconhecimento da liberdade de livre locomoção das pessoas, as quais, nesta qualidade, devem encontrar hospitalidade, ainda que sejam estrangeiras.

    Este princípio de hospitalidade atua como antídoto a uma difusa falta de identificação antropológica que parece despertar instintos primais de hostilidade e inimizade.

    O direito cosmopolita propugnado por Kant vincula-se à liberdade originária que cada ser humano tem sobre o próprio corpo e a consequente necessidade de livre circulação no espaço público. Disto decorre a liberdade, também originária, à utilização coletiva do solo, mas limitada esta liberdade apenas à circulação territorial, pois a proibição de discriminação às pessoas dos estrangeiros não justifica nem autoriza estabelecimento (Ansiedelung) de quem quer que seja em território alheio com base em propósito meramente invasivo.

    No particular, tem-se considerado que o raciocínio de Kant encobriria severa crítica à atitude dos europeus em relação aos povos de outros continentes e aos procedimentos de colonização, pois visavam à apropriação das terras pela força ou compras fictícias, sob a alegação de se levar aos selvagens os benefícios da civilização. Esta concepção de Kant, transplantada para a era contemporânea, pode ser entendida, no âmbito interno dos Estados, como o direito inalienável de todos os indivíduos ao uso racional das coisas e dos espaços públicos.

    A doutrina de Kant mostrou, de maneira clara, a existência do direito de todos à integridade pessoal que deve ser desfrutado nos limites normativos da constituição republicana, mas isto só pode resultar de uma situação de estabilidade democrática que assenta no sistema representativo, sem o qual o despotismo e a violência prevalecerão, não importa o tipo de constituição que esteja em vigor.

    A paz (interna ou externa) e a regularidade de funcionamento dos mecanismos democráticos constituem pressupostos do exercício da liberdade de locomoção e de utilização dos espaços públicos em geral.

    A identificação das pessoas que podem exercer esta liberdade somente se realiza pelos vínculos jurídicos ou situações jurídicas existentes entre estas mesmas pessoas e os Estados incumbidos de proporcionar a já mencionada hospitalidade universal. Este dever de solidariedade é dotado de mão dupla no plano da concretização dos direitos, uma vez que a proteção que deve ser assegurada aos estrangeiros não pode ser menor do que a concedida aos nacionais; isto atua como reforço à proteção interna, havendo ainda a garantia da reciprocidade no exercício de direito de proteção dos nacionais. Constata-se, portanto, que as relações internacionais têm contribuído de maneira expressiva para a afirmação jurídica da cidadania no âmbito interno dos Estados, pois é hoje inequívoca a consagração internacional de um direito à cidadania.

    Esta autêntica consagração de direito permite clara distinção entre o homem abstrato e o homem concreto e se manifesta pelo reconhecimento dos direitos subjetivos públicos, o que afasta a tradicional distinção entre as figuras de governantes e governados e põe em primeiro plano o cidadão, na medida em que o estado de direito é o estado dos cidadãos.

    O direito de cidadania postula proteção jurídica aos cidadãos em níveis interno e externo e resulta mais abrangente na atualidade pelo reconhecimento do denominado princípio da responsabilidade de proteção que incumbe aos Estados e à comunidade internacional.

    Em pronunciamento de 8 de abril de 2006, no plenário da Assembleia Geral da ONU, o Papa Bento XVI, lembrou que cada país tem o dever primário de proteger a própria população das violações graves e contínuas dos direitos do homem, bem como das consequências das crises humanitárias provocadas pela natureza e pelos homens. O princípio da subsidiariedade é aplicável, se os países não são capazes de garantir tal proteção, situação em que a comunidade internacional deve intervir com os meios jurídicos previstos na Carta das Nações Unidas e com outros instrumentos internacionais. As ações da comunidade internacional e de suas instituições, quando baseadas no respeito dos próprios princípios, nunca devem ser interpretadas como uma imposição indesejada e um limite de soberania do país auxiliado. Ao contrário, é a indiferença ou a falta de intervenção que ocasionam um dano real. O pronunciamento do pontífice enfatizou que a vida em comunidade, em nível interno ou internacional, mostra claramente que o respeito aos direitos e às respectivas garantias serve para avaliar o relacionamento entre justiça e injustiça, desenvolvimento e pobreza, segurança e conflito.

    O conteúdo exato do direito de cidadania no plano interno só pode ser determinado de acordo com o regime jurídico de cada Estado, havendo diversos mecanismos de recepção de normas convencionais pelas leis fundamentais desses mesmos Estados. Apesar desta tradição do direito internacional, a Convenção das Nações Unidas adotada em 30 de agosto 1961, sobre a Redução da Apatrídia, procura transformar a cidadania em direito fundamental mediante assunção de obrigações pelos Estados signatários.

    Esta Convenção estabelece as seguintes obrigações para os Estados: a) concessão de cidadania a pessoa nascida no seu território e que, de outro modo, seria apátrida; b) considerar qualquer criança encontrada no território de um Estado como tendo nele nascido, sendo filha de cidadãos locais; c) concessão de cidadania a pessoa não nascida no seu território e que, de outro modo, seria apátrida, se a cidadania de um dos progenitores for, no momento do nascimento, a do Estado em causa; d) condicionar a perda de cidadania decorrente de qualquer alteração do estatuto pessoal à posse ou aquisição de outra cidadania; e) condicionar o efeito da renúncia à cidadania à posse ou aquisição de outra cidadania; f) não privar os seus cidadãos dessa qualidade com base em razões raciais, éticas, religiosas ou políticas; h) incluir em todos os tratados sobre transferências de territórios disposições que impossibilitem a apatrídia.

    O fenômeno da integração econômica também tem colaborado para o alargamento do conceito de cidadania, como é o caso da cidadania europeia, considerada uma realidade incontornável à qual foram agregados alguns direitos, a exemplo da circulação e permanência dos cidadãos europeus no território de quaisquer dos Estados membros.

    A cidadania europeia integra um conjunto de conceitos e princípios constitucionais comuns aos diferentes Estados nacionais contando com validade no âmbito do denominado direito europeu porque observado em órgãos decisórios comunitários, a exemplo da Corte Europeia dos Direitos do Homem.

    Observa-se que se encontra em curso a criação de um direito constitucional comum europeu, que não se baseia em um Estado europeu e sim em determinados princípios constitucionais de tipologia estatal como são os relativos aos direitos do homem e à democracia.

    Neste modelo constitucional se integra o direito de cidadania da União Europeia, o qual, ainda que circunscrito aos Estados integrantes daquele sistema, já apresenta traços de universalidade, por consequência do mencionado princípio da responsabilidade de proteção, que obriga o Estado Constitucional Europeu e o vincula até mesmo em nível mundial, por conta do dever de proteção da dignidade humana, valor fundamental do qual se desprende o direito de cidadania.

    Estas precisões permitem estabelecer algumas premissas funcionais a serem observadas no desenvolvimento deste livro, com influência, inclusive na opção metodológica:

    a) a configuração do direito de cidadania deve ser procurada no quadro evolutivo dos direitos do homem em vertente de proteção jurídica, tudo sob o signo da democracia, sem negligenciar fatores políticos e jurídicos que possam comprimir ou até mesmo suprimir o exercício da cidadania;

    b) as dimensões e formas de aplicação do direito de cidadania são - e continuarão sendo – produto do seu tempo e do seu ambiente sociopolítico; o conhecimento destes contornos no campo constitucional demanda perquirições históricas, críticas e prospectivas;

    c) a fonte legitimadora da cidadania é inegavelmente a soberania popular; por conseguinte, o respectivo direito se desenrola nos espaços públicos, em consonância com o ordenamento jurídico vigente e os princípios que lhe são aplicáveis;

    d) o direito fundamental de cidadania ostenta uma dimensão interna e outra externa, as quais se intercomunicam e sofrem influências recíprocas por força do caráter agregador da constituição democrática, que recepciona e integra, na órbita interna dos Estados, princípios e regras de proteção da cidadania oriundos de tratados internacionais;

    e) a regularidade de funcionamento dos mecanismos democráticos e a paz interna e externa são pressupostos do normal exercício do direito fundamental de cidadania, que pode ser comprimido em situações de exceções constitucionalmente previstas;

    f) o direito de cidadania é subjetivado em pessoas habilitadas a receber a correspondente proteção por consequência de vínculos ou situações originadas em pertença ou agregação a ordens estaduais, podendo também resultar de obrigações internacionais contraídas pelos Estados ou assumidas por organizações de integração econômico-social de atuação em âmbito internacional e dotadas de alto grau de desenvolvimento;

    g) a cidadania, como direito fundamental, é orientada pelo princípio da responsabilidade que onera Estados e organizações com função de defesa dos direitos do homem; este princípio, aliado à dignidade humana, pode autorizar intervenções corretivas e imprescindíveis em áreas normalmente inexpugnáveis;

    h) no plano interno, o exercício do direito de cidadania deve seguir o regime jurídico de cada Estado, sem prejuízo de obrigações convencionais internacionais aplicáveis e que possam ser consideradas como normas integrantes da constituição material;

    i) o fenômeno da integração econômica e social tem alargado a aplicabilidade do direito de cidadania em dimensões variadas, falando-se já em um conjunto de conceitos e princípios constitucionais comuns aos diferentes Estados nacionais, a prenunciar um Estado constitucional em nível planetário, que não mais pertence ao reino da utopia.

    3. UMA PROBLEMÁTICA CONTINUADA - A funcionalidade constitucional do direito fundamental de cidadania pode ser apresentada nos seus aspectos jurídicos estruturais como uma problemática continuada, parecendo autêntica dízima periódica, se permitida a figuração semântica.

    A dificuldade analítica se inicia pelo aspecto da funcionalidade constitucional – que reconduz a equacionamentos de racionalidade prática, de difícil conformação - passando pelos problemas epistemológicos, substanciais e institucionais suscitados pela ideia de direitos do homem em sua derivação de fundamentalidade (a significar direito fundamental), para alcançar o entendimento da cidadania em sua vertente jurídico-constitucional.

    A temática cidadania se confunde com a própria vida em sociedade, o que ocasiona uma imbricação estrutural cognitiva de aspectos teóricos e empíricos na disciplina do direito constitucional, a recomendar apreciação do tema em perspectiva abstrata e também em viés prático (ou técnica-jurídica) constituindo mesmo uma daquelas situações em que os mecanismos de compreensão só se completam com um embasamento teórico ao qual a prática se funde para formar uma realidade necessária e indissolúvel.

    Esta simbiose analítica é justificada em níveis da teoria e da prática porque no âmbito das ciências sociais (nas quais se incluem as jurídicas) a teoria assume a função de promover o entendimento de uma determinada realidade fática delimitada como objeto. Tem-se aí a junção ideal do teórico e do prático.

    A moderna teoria jurídica é dotada de imanência dinâmica e também de função teleológica no mecanismo de aplicação do direito como operação concreta. Além disto, a teoria se revela em campos comunicativos abertos que se prestam ao entendimento da disciplina jurídica como algo situado adiante de uma juridicidade meramente positiva.

    A palavra "técnica", ontologicamente diferenciada, tem função instrumental e pode ser empregada com objetivo de uma abrangência coletiva e progressiva porque se trata de um conjunto de procedimentos definidos em dados comunicativos que objetivam o alcance de explicações constituídas de base fixa e de base prática-científica. Nesta perspectiva, de cariz kantiano, a técnica se aproxima da teoria na pressuposição de que em toda atividade desenvolvida pelo homem há perspectivas técnicas e teóricas que abrem espaço para o desenvolvimento de novos rumos, ancorados em novas perscrutações que conduzem ou que podem conduzir a descobertas.

    A técnica jurídica se caracteriza por uma especificidade operacional e no âmbito deste livro se revela já no campo jurídico instrumental, com características constitucionais.

    A complexidade deste intento investigativo impõe abordagem propedêutica do tema cidadania, ainda que com simplificação introdutória, com vistas à pré-compreensão do assunto e justificação de uma estratégia analítica.

    Alguns dos principais pontos de referência desta análise são dotados de conformação empírica porque centrados na verificação de determinados fatos sociais que emergiram com virtualidade autonômica a partir das linhas de pensamento de Sócrates (ferrenho crítico da democracia ateniense), Platão (que somente admite a realização do homem no ambiente comunitário) e Aristóteles (que concebeu o homem como um integrante da polis, sendo, por natureza, um ser político, ou social em sentido hodierno).

    Na cultura ocidental, o pensamento grego recortou uma linha cognitiva que abriu caminho ao estudo do comportamento do homem, bem assim da composição social e de toda a intrincada relação humana.

    As diferentes conformações e variações societárias no tempo e no espaço não recomendam qualquer tentativa de enquadramento do tema em uma pretensa teoria constitucional da cidadania, podendo-se, no entanto, identificar um sentido de emancipação como objetivo latente nos diversos espaços jurídicos e estruturais nos quais a cidadania se agita, revelando-se predominantemente na tessitura constitucional.

    Esta visão social apresenta características variadas por consequência dos mencionados fatores espaço-temporais, elementos cambiantes que provocam mudanças de paradigmas e tendencial afastamento do modelo da racionalidade puramente científica e formalista, com ingresso no terreno do senso comum e dos estudos humanísticos, sem desvio, entretanto, do ideário racional, prático e jurídico.

    Boaventura de Sousa Santos⁸ contribui com a autoridade de seu pensamento na concordância da necessidade dessa visão humanista. Esclareça-se que a expressão afastamento do modelo da racionalidade não é de ser tomado em sentido literal, mas com a ideia de contradição dialética, na consideração de não implicar o desenvolvimento de um conceito novo substituição de conceito antigo, aparentemente superado, pois, na expressão de Santo Thomaz de Aquino, repetindo Aristóteles, a coisa nova contém em si potências de novos atos; todas as coisas, embora situadas dentro de um conjunto eterno e infinito, são limitadas no tempo e no espaço; são passageiras e sujeitas à negação; e não há negação que seja a última; cada negação é negada quando chega a sua hora de o ser e é isto que faz a continuidade do desenvolvimento.

    São considerados neste livro os principais instrumentos procedimentais existentes nas ordens constitucionais contemporâneas e também se procura identificar os influxos axiológicos que subjazem nesta processualística, bem assim a respectiva contribuição normativa que pode servir de ponte à compreensão de novos fenômenos que cercam o exercício da cidadania, inegavelmente coligada à ideia de comunidade.

    A cidadania é apontada como uma das mais abertas, inacabadas e negligenciadas instituições sociais da atualidade, tendo sido quase totalmente absorvida nos últimos duzentos anos pela instituição do Estado (com a criação da figura do súdito, ou governado) e pelo princípio do lucro que rege as forças do mercado (surgindo, então, a figura do consumidor). Por isto mesmo, tem-se considerado a possibilidade de resgate da cidadania com o fim de instaurar uma dialética produtiva com o pilar da emancipação, pela via do direito e da constituição.

    O tema cidadania possui virtualidade funcional e isto pede um entendimento quanto à sua tessitura jurídica em ordem a possibilitar sua própria inserção em um quadro pré-definido de constituição na qual ela se possa exercitar de maneira efetiva.

    Aqui surge um complicador metodológico porque o denominado direito de cidadania tem sido considerado manifestação jurídica que se revela pela inserção ou integração do indivíduo em uma ordem jurídica politicamente organizada, a qual lhe atribui direitos, liberdades e encargos. Ocorre que não se desconhece na atualidade o desbordamento do mesmo direito de cidadania para territórios situados fora do âmbito estatal. Difícil, portanto, conciliar mencionada compressão conceitual com o alargamento factual do fenômeno jurídico.

    Trata-se de fenômeno da modernidade que valoriza a faculdade subjetiva do homem, o qual passa a ser visto não só como um sujeito privado, mas também como ator que assume papéis variados, que vão, desde a qualidade de membro da sociedade civil e do Estado, até à posição de integrante do mundo, papel social no qual o indivíduo se confunde com o homem no concerto coletivo transformando-se em um ser ao mesmo tempo singular e geral e já constitui lugar comum a proteção jurídica dos direitos do homem contra violações pelos próprios particulares, exigindo-se a intervenção estatal para catalisar conflitos nas chamadas relações horizontais.

    As relações sociais contemporâneas não se concentram apenas no Estado - que passa a formar um subsistema ao lado de outros subsistemas sociais funcionalmente especificados - e se desenvolvem naquilo que Habermas⁹. crismou de sistema-mundo-circundante. O mesmo acontece com pessoas e sociedades envolvidas nas referidas relações, tudo a lembrar os sistemas autorreferenciais de comunicação pensados por Niklas Luhmann e que seriam desenvolvidos no cenário jurídico por Gunther Teubner.

    Em perspectiva de direito constitucional, esta multidimensionalidade do indivíduo moderno recomenda o afastamento de uma análise metodológica que adote como referência apenas o binômio Estado/Constituição, ainda que se não pretenda ignorar nem minimizar o decisivo e fundamental papel do ente estadual para a efetivação e garantia dos direitos fundamentais, nos quais se enquadra a cidadania.

    Ademais, mesmo no domínio dos estudos gerais, grassa interminável polêmica doutrinária sobre a necessidade, ou não, de se dotar o direito constitucional de uma teoria do estado, debate de origem germânica ignorado em França devido a fatores marcantemente antigermânicos. Na doutrina francesa prevaleceu a linha da Escola do Serviço Público de Duguit, que se opôs duramente à denominada École de Puissance Publique. É de se reconhecer, no entanto, que este afastamento do elemento estadual permite a superação dos diversos equívocos que se constatam nas tentativas de conceituação de Estado e Constituição, cujos conteúdos têm sido também objeto de controvérsias por consequência da indeterminação dos respectivos objetos, o que se agrava pelas hesitações nas opções metodológicas e pela interdisciplinaridade que permeiam ambos os conceitos.

    No século XXI, a ideia de constituição se desprendeu da figura do Estado e até mesmo do dogma da vontade do povo, com projeção para o âmbito de proteção de qualquer pessoa, passando a ser vista como forma de assegurar o exercício dos direitos fundamentais consubstanciados em princípios garantidores e modelados pelo estado democrático de direito que assenta nos postulados da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade

    A existência de uma Constituição sem Estado, ou não centrada em um Estado, tem sido objeto de debate por uma corrente internacionalista, cujo projeto máximo é a instituição de uma Constituição Global, que se baseia na proteção supraestatal dos direitos do homem.

    Jorge Miranda¹⁰ chama a atenção para o que denomina de heteroconstituições decretadas fora do Estado por outro ou outros Estados, ou até mesmo por uma organização internacional. Exemplifica com as primeiras Constituições dos países do Commonwealth, aprovadas por leis do Parlamento britânico (Canadá, Nova Zelândia, Austrália, Jamaica, Maurícia etc.); cita ainda a primeira Constituição da Albânia (obra de uma conferência internacional, de 1913) ou a Constituição cipriota (procedente dos acordos de Zurique, de 1960, envolvendo a Grã-Bretanha, a Grécia e a Turquia). Mais recentemente, viu-se a Constituição da Bósnia-Herzegovina resultante do denominado acordo de Dayton (EEUU), em 1995.

    Referida constituição desvinculada de Estado é compreendida como sendo teleologicamente voltada a atribuir garantia de eficácia não circunscrita à mera positivação em determinado ordenamento jurídico e tem pretensão de dotar o mesmo ordenamento jurídico de uma máxima hierarquia e de uma máxima força jurídica asseguradas por um eficiente subsistema de tutela judicial. Disto resultou um processo de otimização constitucional, o qual, para exercer a proteção dos direitos reconhecidos, cria uma barreira de proteção para si mesma e depois se projeta pela via de mecanismos procedimentais, alcançando força normativa, com superação do paradigma vigente na Europa até meados do século XX no qual a Constituição exercia função eminentemente política e adotava o Estado como seu sujeito principal. O Estado, assim considerado, movimentava-se com grande desenvoltura pela via da denominada teoria do órgão imaginada pelo direito administrativo para justificar atuação autoritária do ente estatal por intermédio das figuras de governantes e administradores públicos, sob o disfarce de um poder administrativo que se revelava mediante variados mecanismos burocráticos, dos quais cita-se como paladino exemplo a denominada discricionariedade administrativa aninhada na ideia de legalidade como produção do próprio Estado.

    Em verdade, o denominado poder administrativo exercia autêntico poder político pela vertente do poder regulamentar, produtor de norma administrativa ou regulamento, que, em antiga e simples definição de F. Moreaux, era conceituada como regra obrigatória, imposta por uma autoridade pública diversa do Parlamento. Nesta proposição constam os três elementos essenciais do regulamento: a) uma estatuição; b) emanação de uma autoridade pública; c) ato estranho ao Parlamento.

    O regulamento devia limitar-se sempre a executar leis prévias, com a única finalidade de explicar o seu conteúdo ou tornar possível sua aplicação. No entanto, em muitos países (como a própria França, alguns Estados alemães, Portugal ou

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