A tecnologia é um vírus: Pandemia e cultura digital
By André Lemos
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Homem e tecnologia não são entidades separadas (sujeito e objeto), assim como o vírus não pode ser entendido como unidade biológica isolada (natureza e cultura). São modos de existir, formas de agir, tipos de arranjos (dispositif, assemblage) que revelam soluções particulares de uma coletividade (o social). A técnica não é ferramenta ou instrumento nas mãos do sujeito que domina o sentido (como significação e direção) da agência, ou sofre as consequências retroativamente. A tecnologia é como um vírus, e o vírus como uma tecnologia: eles disparam ações, mobilizando amplas redes, afetando o coletivo.
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A tecnologia é um vírus - André Lemos
PARTE 1
Cultura digital
1. Dobras tecnológicas do tempo
¹
Salvador, janeiro de 1979. Estamos há 15 anos sob ditadura militar, em meio a uma cultura de massa restritiva e americanizada. Assisto pela nossa primeira TV colorida ao Jornal Nacional da Globo, com Cid Moreira informando que em março o general Figueiredo começará o processo de abertura democrática. O tripé informática – engenharia genética (a primeira bebê de proveta nasceu em 1978) – energia nuclear
é a locomotiva do mundo. Ao mesmo tempo, o gap tecnológico entre países centrais e periféricos é de décadas. O polo petroquímico de Camaçari começa as suas operações, mas já nasce superado pela divisão internacional do trabalho. A infraestrutura urbana e os serviços públicos são muito deficientes na capital baiana.
Eu me preparo para o terceiro ano e o funil do vestibular. Nas escolas, poucos recursos audiovisuais. Computadores? Ouvíamos falar! Estudamos pelos livros didáticos comprados nas poucas e deficientes livrarias da cidade. Os mais abastados têm enciclopédias que os pais exibem com orgulho. Nas bancas, apenas jornais e revistas locais (com poucos exemplares vindos do Sudeste). Para ter acesso a mais informações sobre arte e cultura, temos que ir ao aeroporto comprar revistas estrangeiras, ou viajar para visitar lojas de vinis e livrarias de São Paulo ou do Rio de Janeiro, onde, com sorte, podemos assistir a shows com estrelas mundiais. Os poucos canais de TV e rádio locais não são atraentes para adolescentes ávidos por novidades. Estou de férias. Ligo para os amigos que têm telefone (fixo, alguns alugados – era caríssimo ter uma linha) para irmos a um dos poucos cinemas, ao único shopping, à praia, ou jogar Pong e Space Invaders na casa de um deles (o pai trouxe um console dos EUA).
Salvador, janeiro de 2019. Primeiro militar eleito pelo voto popular toma posse. O desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação nos leva da era da escassez à do excesso de informação, jogando-nos no capitalismo global de dados e na plataformização digital da sociedade. A história mundial pode ser definida como antes e depois da internet. Hoje a vida é produzir, consumir e distribuir informações digitais.
Minha filha busca no aplicativo do seu celular informações sobre o ônibus no ponto mais próximo de casa. Hoje ela não vai pegar um Uber. Eu, apressado, consulto o tablet para saber quanto tempo levarei até o meu destino. Escolho o caminho e vou deixar o Waze me levar. Recebo, pelas redes sociais e jornais online, informações locais e mundiais que não cessam de dizer que o mundo não anda bem. Muita certeza e pouco diálogo entre humanos e bots nas redes sociais. Ligo a TV por satélite. Passo pelo canal japonês e paro na TV francesa para ter informações sobre o movimento dos coletes amarelos, o perigo do Antropoceno, ou os problemas da África, continente ausente dos noticiários locais. No carro, pelo bluetooth, recebo ligações e, por comando de voz, peço para a assistente digital deixar lembretes e tocar músicas em