Medicalização do parto: Saberes e práticas
By Andreza Pereira Rodrigues, Fernanda Loureiro Silva, Luiz Antonio Teixeira and Marina Fisher Nucci
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As mulheres se fortalecem grandemente no processo da reprodução, quando sentem a força da natureza gerando vida dentro do seu corpo. Vida que vai gerar outras vidas, numa repetição diversificada dos seres humanos, semelhante ao das outras espécies animais, dos vegetais, numa comunhão com a natureza que precisa ser resgatada para a recuperação da nossa empatia com o ambiente que nos cerca e com o universo. Temos aí uma oportunidade para recuperar a nossa consciência cósmica.
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Book preview
Medicalização do parto - Andreza Pereira Rodrigues
Saúde em Debate 323
direção de
Gastão Wagner de Sousa Campos
José Ruben de Alcântara Bonfim
Maria Cecília de Souza Minayo
Marco Akerman
Yara Maria de Carvalho
ex-diretores
David Capistrano Filho
Emerson Elias Merhy
Marcos Drumond Júnior
É por certo a saúde coisa mui preciosa, a única merecedora de todas as nossas atenções e cuidados e de que a ela se sacrifiquem não somente todos os bens mas a própria vida, porquanto na sua ausência a existência se nos torna pesada e porque sem ela o prazer, a sabedoria, a ciência, e até a virtude se turvam e se esvaem.
— Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592).
Ensaios. Da semelhança dos pais com os filhos
.
Trad. Sérgio Milliet
Saúde em Debate
TÍTULOS PUBLICADOS APÓS DEZEMBRO DE 2018
A Ampliação do processo de privatização da saúde pública no Brasil, Jilia Amorim Santos
Escola para todos e as pessoas com deficiência: contribuições da terapia ocupacional, Eucenir Fredini Rocha, Maria Inês Brito Brunello, Camila Cristina Bortolozzo Ximenes de Souza
Bases teóricas dos processos de medicalização: um olhar sobre as forças motrizes, Paulo Frazão e Marcia Michie Minakawa
Corpo com deficiência em busca de reabilitação? A ótica das pessoas com deficiência física, Eucenir Fredini Rocha
Crianças e adolescentes com doenças raras: narrativas e trajetórias de cuidado, Martha Cristina Nunes Moreira, Marcos Antonio Ferreira do Nascimento, Daniel de Souza Campos & Lidiane Vianna Albernaz (orgs.)
Bases da toxicologia ambiental e clínica para atenção à saúde: exposição e intoxcação por agrotóxicos, Herling GregorioAguilar Alonzo & Aline de Oliveira Costa
Pesquisar com os pés: deslocamentos no cuidado e na saúde, Rosilda Mendes, Adriana Barin de Azevedo & Maria Fernanda Petroli Frutuoso (orgs.)
Percepções amorosas sobre o cuidado em saúde: estórias da rua Balsa das 10, Julio Alberto Wong Un, Maria Amélia Medeiros Mano, Eymard Mourão Vasconcelos, Ernande Valentin do Prado & Mayara Floss
Atividades humanas e Terapia Ocupacional: saber-fazer, cultura, política e outras resistências, Carla Regina Silva (org.)
A experiência do PET-UFF: composições de formação na cidade, Ana Lúcia Abrahão & Ândrea Cardoso Souza (orgs.)
Olhares para a saúde de mulheres e crianças: reflexões na perspectiva das boas práticas de cuidado e de gestão, Maria Auxiliadora Mendes Gomes, Cynthia Magluta & Andreza Rodrigues Nakano (orgs.)
Técnicas que fazem olhar e da empatia pesquisa qualitativa em ação, Maria Cecília de Souza Minayo & António Pedro Costa
Tempos cruzados: a saúde coletiva no estado de São Paulo 1920-1980, André Mota
Unidade Básica: a saúde pública brasileira na TV, Helena Lemos Petta
Decisões políticas e mudanças limitadas na saúde, Carmem E. Leitão Araújo
Ambulatório de especialidades: subsídios conceituais e organização de serviços a partir das experiências da enfermagem, Carla Aparecida Spagnol & Isabela Silva Câncio Velloso (orgs.)
Clínica comum: fragmentos de formação e cuidado, Angela Aparecida Capozzolo, Sidnei José Casetto, Viviane Maximino & Virgínia Junqueira (orgs.)
Contribuições do Mestrado Profissional para o ensino da enfermagem: experiências inovadoras no âmbito do SUS, Cláudia Mara de Melo Tavares, Lucia Cardoso Mourão, Ana Clementina Vieira de Almeida & Elaine Antunes Cortez (orgs.)
O método apoio como ferramenta de prevenção e enfrentamento da judicialização da saúde no SUS, Tarsila Costa do Amaral
Violências e suas configurações.Vulnerabilidades, injustiças e desigualdades sociais, Lina Faria (org.)
Quando a história encontra a saúde, Ricardo dos Santos Batista, Christiane Maria Cruz de Souza & Maria Elisa Lemos Nunes da Silva (orgs.)
Atenção Básica é o caminho! Desmontes, resistencias e compromissos: contribuições das universidades brasileiras para avaliação e pesquisa na APS. A resposta do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) para a avaliação da Atenção Primária à Saúde, Marco Akerman, Patricia Rodrigues Sanine, Maria do Carmo Guimarães Caccia-Bava, Felipe Alvarenga Marim, Marilia Louvison, Lucila Brandão Hirooka, Cecília Kayano Morais & Maria Cristina da Costa Marques (orgs.)
Atenção Básica é o caminho! Desmontes, resistencias e compromissos: contribuições das universidades brasileiras para avaliação e pesquisa na APS. Perspectivas: Avaliação, Pesquisa e Cuidado em Atenção Primária à Saúde, Marco Akerman, Patricia Rodrigues Sanine, Maria do Carmo Guimarães Caccia-Bava, Felipe Alvarenga Marim, Marilia Louvison, Lucila Brandão Hirooka, Cecília Kayano Morais & Maria Cristina da Costa Marques (orgs.)
Entre o Público e o Privado: Hospital São Paulo e Escola Paulista de Medicina (1933 a 1988), Ana Nemi
Sobre a pandemia: experiências, tempos e reflexões, André Mota (org.)
Formação e Educação Permanente em Saúde: Processos e Produtos no Âmbito do Mestrado Profissional, volume 3, Benedito Carlos Cordeiro, Helen Campos Ferreira & Miriam Marinho Chrizoztimo (orgs.)
Atenção primária e atenção especializada no SUS: análise das redes de cuidado em grandes cidades brasileiras, Cristiane Pereira de Castro, Gastão Wagner de Sousa Campos & Juliana Azevedo Fernandes (orgs.)
Itinerários de Asclépios: para a compreensão da gestão da clínica, Giovanni Gurgel Aciole
Medicalização do parto: saberes e práticas, Luiz Antonio Teixeira, Andreza Pereira Rodrigues, Marina Fisher Nucci & Fernanda Loureiro Silva
as demais obras da coleção saúde em debate
acham-se no final do livro.
Representação de uma figura humana dividida em duas partes: na metade esquerda o homem-cirurgião, com um acervo de instrumentos de intervenção no parto, e na metade direita uma mulher, onde ao fundo se vê os recursos domésticos, como calor, água e ervas. A imagem é um protesto contra a figura do parteiro (masculino) como um perigo para a mulher e o desenvolvimento natural do parto. Fonte: Man-mid-wife, Isaac Cruikshank, 1793. The British Museum. Coleção online.1868,0808.6299.
© Direitos autorais, 2020, da organização de,
Luiz Antonio Teixeira, Andreza Pereira Rodrigues,
Marina Fisher Nucci & Fernanda Loureiro Silva
Direitos de publicação reservados por
Hucitec Editora Ltda.
Rua Dona Inácia Uchoa, 209
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Depósito Legal efetuado.
Direção editorial
MARIANA NADA
Produção editorial
KÁTIA REIS
Assistência editorial
MARIANA BIZZARRO TERRA
Circulação
ELVIO TEZZA
Conversão para eBook
SCALT SOLUÇÕES EDITORIAIS
CIP-Brasil. Catalogação na Publicação
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
M442
Medicalização do parto : saberes e práticas / organização Luiz Antonio Teixeira... [et al.]. – 1. ed. – São Paulo : Hucitec, 2021.
412 p. ; 23 cm. (Saúde em debate ; 323)
Inclui índice
ISBN 978-65-86039-80-1 e-book
1. Humanização dos serviços de saúde – Brasil. 2. Parto (Obstetrícia) – Brasil. 3. Serviços de saúde à maternidade – Brasil. 4. Cuidado pré-natal – Brasil. 5. Política de saúde – Brasil. I. Teixeira, Luiz Antonio. II. Série.
21-69950
CDD: 362.19820981
CDU: 614:618.4
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439
Parir e nascer,
Algo novo que se
Revela em um fato… um ato!
Todos estamos e somos envolvidos.
Os caminhos são vários, cada um faz o seu…
Exposição Parto e Nascimento no Brasil, 2019
Sumário
Prefácio
Maria do Carmo Leal
Apresentação
Luiz Antonio Teixeira, Andreza Pereira Rodrigues, Marina Fisher
Nucci e Fernanda Loureiro Silva
Introdução
Luiz Antonio Teixeira, Andreza Pereira Rodrigues, Marina Fisher
Nucci e Fernanda Loureiro Silva
PARTE 1 – ATORES, LOCAIS E CENÁRIOS DO PARTO
Capítulo 1
Em casa é mais seguro!
: o olhar do refúgio, do privilégio e da política pública
Rosamaria Carneiro
Capítulo 2
Parteiras tradicionais e políticas culturais: reconhecimento, hierarquia de saberes e desconstruções pertinentes
Elaine Müller e Júlia Morim de Melo
Capítulo 3
Parteiras e medicalização: estudo de caso de uma comadrona guatemalteca
Sheila Cosminsky
PARTE 2 – PRÁTICAS E INTERVENÇÕES NO PARTO
Capítulo 4
A arte de auxiliar
e corrigir
a natureza: os debates obstétricos sobre intervenção, indução e condução do parto em meados do século XX
Marina Fisher Nucci, Fernanda Loureiro Silva, Andreza Pereira Rodrigues e Luiz Antonio Teixeira
Capítulo 5
Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual>
Maria do Carmo Leal, Ana Paula Esteves Pereira, Rosa Maria Soares Madeira Domingues, Mariza Miranda Theme Filha, Marcos Augusto Bastos Dias, Marcos Nakamura-Pereira, Maria Helena Bastos e Silvana Granado Nogueira da Gama
Capítulo 6
Cesáreas no Brasil: o novo parto normal?
Andreza Pereira Rodrigues, Luiz Antonio Teixeira e Claudia Bonan
PARTE 3 – NASCIMENTO E RISCO
Capítulo 7
A ascensão do gerenciamento de riscos, industrialização e medicalização do parto em Porto Rico no final do século XX
Isabel Cordova
Capítulo 8
Onde longe demais para andar
encontra com muito, cedo demais
: vida de mães à beira da transição obstétrica
Maria Openshaw
PARTE 4 – VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
Capítulo 9
Violência obstétrica
na Maternidade de Laranjeiras: fontes para pesquisas futuras
Cassia Roth
Capítulo 10
Violência Obstétrica em perspectiva histórica (1950-2012)
Larissa Velasquez
Capítulo 11
Medicalização do parto
e violência obstétrica
: olhares complementares sobre o mesmo fenômeno
Carmen Simone Grilo Diniz, Janaína Marques Aguiar e Denise Yoshie Niy
PARTE 5 – MEDICALIZAÇÃO DA MATERNIDADE E DO NASCIMENTO
Capítulo 12
Conselhos às mães: a medicalização da maternidade em revista
Maria Martha de Luna Freire
Capítulo 13
Medicalização do parto: combinaram com o bebê?
Luciana Borges, Nina Lucia Prates Nielebock de Souza
PARTE 6 – SABERES SOBRE O PARTO
Capítulo 14
A construção de uma nova profissão: a Obstetrícia – O caso do Universidade de São Paulo
Gabriela Macedo Hugues e Maria Luiza Heilborn
Capítulo 15
Saberes no parto: a visão de um obstetra
Marcos Augusto Bastos Dias
Capítulo 16
Medicalização e racismo
Ariana Santos
Capítulo 17
Como é a interface entre o fazer/saber da Doula e a medicalização do parto?
Fadynha
Capítulo 18
O exercício da maternidade potente no reconhecimento dos saberes e na ocupação dos espaços públicos
Luanda de Oliveira Lima, Josefina Mastropaolo e Helena Fialho de Carvalho Torres
Sobre as autoras e autores
Prefácio
Maria do Carmo Leal
Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz
O parto e nascimento são simultaneamente eventos naturais, sociais e culturais da espécie humana que afetam a todos nós e se revestem de grande curiosidade e expectativa porque por meio deles é garantida a nossa sobrevivência como espécie e os nossos genes, perpetuados. Exatamente por se tratar desse ponto crucial, todas as mudanças vivenciadas pela sociedade humana foram inscritas aí, na nossa reprodução.
Assim, este livro ao falar sobre a história do parto e nascimento no Brasil, aborda também o lugar da mulher na sociedade, seu lugar na família, em acordo com as classes sociais às quais pertencem. Inicialmente, como um evento de mulheres, o parto acontecia na casa, no domicílio, acompanhado de perto por outras mulheres, a parteira, a mãe, as irmãs e amigas, e, um pouco mais de longe por toda a família, aí incluídos o marido e os irmão maiores de recém-nascido.
À medida que avança o conhecimento sobre o corpo humana e a medicina, o acompanhamento da nossa reprodução foi se distanciando do âmbito familiar e indo para o profissional, culminando na hospitalização para o parto, reconhecida, à época, como uma necessidade para maior controle sobre todos os eventos que pudessem representar um risco à mulher e ao seu recém-nascido.
O maior controle sanitário, aliado ao desenvolvimento de novas técnicas, inclusive cirúrgicas e de cuidado intensivo, tiveram um importante papel na redução da mortalidade materna e de recém-nascidos. Ao lado disso, foram realizadas muitas tentativas e experimentações sobre o corpo das mulheres, buscando contribuir para a facilitação do trabalho de parto.
Recentemente, nos últimos 20 anos, pode se constatar que muitas daquelas intervenções foram introduzidas sem uma adequada avaliação da sua efetividade, e que algumas delas produziam mais danos que benefícios para a mãe e o seu bebê. Esta é a fase atual que vivemos na atenção ao parto: desfazer práticas que redundaram em danos e selecionar as que são, de fato, benéficas.
A grande surpresa é a recomendação, com base em estudos científicos bem conduzidos, para o retorno à autonomia da mulher de como vivenciar esta experiência em partos de baixo risco, que corresponde a mais de 80% do total, mesmo em ambiente hospitalar. Em vez de deitada e presa ao leito com tubos, durante o trabalho de parto a mulher deve ser estimulada a se alimentar, tomar líquidos, banho morno, receber massagens, caminhar, exercitar-se, ouvir música e escolher a posição conveniente para parir. Esta liberdade é reconhecida como grande impulsionadora da melhor maneira de se dar à luz, favorecendo sentimentos de controle, comando e realização para a mulher.
Parir é um ato de criação e a importância da presença do companheiro, ou de outra pessoa da escolha da mulher, para o seu bem estar, em todos os momentos deste cenário, fez os serviços de saúde inclui-los. Conduzir o parto com autonomia e sob o controle da mulher é fundamental para o bom resultado do nascimento. Acolhimento, respeito e dignidade são coadjuvantes essenciais.
Estas recomendações de mudanças implicam também em um novo desafio e, por vezes, em um difícil exercício para os profissionais de saúde, que colocados no comando da atenção ao parto necessitam agora compartilhar o lugar com as mulheres e serem seus parceiros de jornada. Necessitam perguntar como elas querem conduzir o seu trabalho de parto e parto e saberem gerenciar mudanças nos planos de parto iniciais das mulheres, quando necessário.
No nosso país estamos neste momento de mudança, que implica em avanços, incompreensões e às vezes resistências. Já tivemos a oportunidade de vivenciar desafios semelhantes quando a ciência recomendou o retorno ao aleitamento materno, ou quando modificou o manejo das diarreias infantis para o uso da reidratação oral, ou mesmo quando a recomendação de vacinas passou a ser universal, antes reservada a uma prescrição médica.
Passo a passo, através dos seus capítulos, este livro vai deslindando todo este movimento sociocultural do parto e nascimento no Brasil, apresentando as novas evidências científicas e convidando as mulheres e seus familiares a conhecerem, refletirem e compartilharem entre si e com os profissionais de saúde os seus projetos para o nascimento dos seus filhos. O desejo da mulher quanto ao tipo de parto que ela programou foi o fator mais importante para a sua realização com satisfação materna, como mostrado na Pesquisa Nascer no Brasil.
As mulheres se fortalecem grandemente no processo da reprodução, quando sentem a força da natureza gerando vida dentro do seu corpo. Vida que vai gerar outras vidas, numa repetição diversificada dos seres humanos, semelhante ao das outras espécies animais, dos vegetais, numa comunhão com a natureza que precisa ser resgatada para a recuperação da nossa empatia com o ambiente que nos cerca e com o universo. Temos aí uma oportunidade para recuperar a nossa consciência cósmica.
Apresentação
Luiz Antonio Teixeira
Andreza Pereira Rodrigues
Marina Fisher Nucci
Fernanda Loureiro Silva
Na primeira década dos anos 2000, no Brasil, o parto aparece mais fortemente no debate público. O que antes ocupava uma agenda para pensar os serviços de saúde, a assistência e as políticas públicas vêm à cena com base em outras perspectivas, muito fortalecidas pelas diferentes disciplinas acadêmicas e movimentos sociais que passam a pautar também o parto. Por dentro dos serviços, em um sistema de saúde com configurações tão distintas entre os subsetores público e privado, era preciso mapear como acontecia a atenção ao parto e como as mulheres vinham vivenciando esse evento singular.
Foi neste contexto que, entre 2011 e 2015, pesquisadores do Instituto Fernandes Figueira e do Observatório História e Saúde do Departamento de Pesquisas da Casa de Oswaldo Cruz se uniram em torno de um projeto que buscava investigar questões relacionadas ao parto e nascimento no Brasil. Projetos iniciais coordenados por Claudia Bonan e Luiz Teixeira impulsionaram trabalhos de mestrandas e doutorandas, em especial o de Andreza Rodrigues sobre o uso da cirurgia cesariana no Brasil. Com a formação de um grupo de pesquisa, as reuniões sistematizadas e os trabalhos alinhados (e por vezes complementares) houve um aprofundamento nas reflexões que o grupo vinha fazendo no âmbito dos estudos sobre as práticas de parto, mais especificamente sobre a Medicalização dos Nascimentos no Brasil. Conjugando aportes da História e da Saúde Coletiva, as perspectivas dos estudos sociais da ciência e das tecnologias e da biomedicalização, levou o grupo a descortinar fontes e análises que foram caras a este campo de estudo.
Em 2016, o grupo obteve um auxílio/apoio financeiro em um edital da Casa de Oswaldo Cruz (Edital PROEP), o que lhe favoreceu uma trajetória fértil e exitosa. A publicação de artigos em diferentes periódicos, cursos nos Programas de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (Casa de Oswaldo Cruz) e em Saúde da Mulher e da Criança (Instituto Fernandes Figueira) e orientações de alunos no tema do parto e nascimento passaram a ser a tônica do trabalho. Nesse momento, as pesquisadoras Marina Fischer Nucci e Fernanda Loureiro foram incorporadas à equipe do projeto, que também passou a contar com a participação das queridas colaboradoras Ilana Lowy, Larissa Velasquez, Lucia Regina Nicida e Wanda Weltman. O ingresso desse conjunto de profissionais ampliou o rol de preocupações do projeto — traduzidos nos objetos de estudo das participantes — que até então estava focado nas vias medicalizadas do parto e passou a incorporar questões como a violência obstétrica e o uso de diferentes intervenções no parto hospitalar.
Nesta apresentação é importante destacar três atividades que contribuíram para a consolidação do grupo de pesquisa e que culminaram na publicação deste livro. A primeira foi a publicação do dossiê na Revista História, Ciência e Saúde – Manguinhos em 2018. Intitulado Parto, nascimento e mortalidade infantil: saberes, reflexões e perspectivas
, reuniu publicações de pesquisadores brasileiros e da América Latina, que através de chamada pública enviaram artigos que trazem diferentes perspectivas sobre o tema. A outra atividade foi a criação da exposição Parto e Nascimento no Brasil, cujo objetivo é circular por diferentes espaços culturais e em serviços de Atenção Primária em Saúde.1 A exposição apresenta ao público, em linguagem acessível, os resultados das pesquisas desenvolvidas pelo grupo, que ganharam ainda mais expressão com a generosa contribuição de um time de fotógrafas brasileiras que tem o parto visto através de suas lentes.2 A terceira atividade foi realizada também em 2018, quando o grupo de pesquisa promoveu o Seminário Internacional Medicalização do Parto, no qual contamos com a participação de pesquisadores e pesquisadoras brasileiras e estrangeiras, além de representantes de movimentos de mulheres, profissionais da atenção ao parto e um grande público que esteve presente no evento e ainda hoje podem acompanhar desdobramentos daquele encontro através dos vídeos disponibilizados no site do Observatório História e Saúde, que também abriga uma versão virtual da exposição Parto e Nascimento no Brasil (
Para a realização dessas atividades foi fundamental o auxílio de um financiamento do CNPq (MCTIC/CNPq N.º ٢٨/٢٠١٨ – Universal), e de bolsas de produtividade do CNPq (CNPq N.º ٠٩/٢٠١٨ – Bolsas de Produtividade em Pesquisa) e da Universidade Estácio de Sá (Pesquisa Produtividade, Extensão Social e Extensão Inovadora da UNESA-RJ).
1 A exposição foi à público na Semana Científica da FIOCRUZ e hoje integra as ações do projeto de extensão Saberes em Saúde da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ, coordenado pela professora Andreza Rodrigues.
2 Nossos sinceros agradecimentos às fotógrafas Adriana Medeiros, Amanda Nunes, Bia Fioretti, Carla Raiter, Débora Silveira, Eduardo Queiroga, Helena Silva, Lu Figueiredo, Margot Fontaine, Mari Ricci por contribuírem nesta atividade.
Introdução
Luiz Antonio Teixeira
Andreza Pereira Rodrigues
Marina Fisher Nucci
Fernanda Loureiro Silva
Oparto e o nascimento são eventos que mobilizam permanente reflexão na sociedade. Eles são marcados por características culturais, normas e recursos disponíveis e variam não somente de lugar para lugar como também de acordo com o momento histórico. O modo como se nasce, as práticas e saberes envolvidos, têm estado cada vez mais em discussão pelos mais diferentes grupos sociais, sendo que profissionais e mulheres são os atores que impulsionam os debates. E é por meio de discussões cada vez mais públicas que novos engajamentos sobre o tema se constituem. Políticas públicas, atores políticos, movimentos sociais, ativismo, militância e grupos profissionais distintos fazem parte do cenário onde o parto e o nascimento ocupam a cena. Os modelos de atenção ao parto compõem essa discussão há algumas décadas, mobilizando diferentes perspectivas disciplinares.
A partir das últimas décadas do século XIX, o parto ingressou definitivamente no âmbito da medicina e, aos poucos, foi se transformando em um evento completamente medicalizado. Esse processo histórico se ampliou fortemente no decorrer do século XX, em diversas regiões do globo, trazendo consigo importantes vantagens relacionadas, principalmente, à diminuição dos índices de mortalidade materna e neonatal. No entanto, a intensificação da medicalização do nascimento também aponta para problemas, uma vez que a excessiva tecnologização tem gerado críticas e insatisfações principalmente no que concerne às consequências clínicas, físicas e emocionais do excesso de intervenções.
A partir de meados do século XX, com deslocamento dos nascimentos, do domicílio para o hospital, a intervenção médica, através de normas e protocolos, ganhou formas muito variadas de acordo com os diferentes contextos. Se o controle da medicina sobre o nascimento representa um desafio comum à maioria dos países do mundo, verificam-se diversas particularidades de um contexto nacional a outro, no que tange às trajetórias seguidas por inovações técnicas e médicas. Algumas técnicas são quase normalizadas em certos países, ao passo que em outros ocupam um lugar apenas marginal, na prática médica. De forma semelhante, as competências profissionais em relação ao nascimento, assim como os questionamentos sociais diante das formas de assistência variam em relação a diferentes regiões.
No Brasil, o parto realizado em ambiente domiciliar e com o amparo de parteiras predominou desde o Período Colonial. Somente na primeira metade do século XIX, a estruturação das profissões e das instituições médicas abriu caminho para a medicalização do nascimento. Esse processo teve início nas últimas décadas desse mesmo século, num contexto de desenvolvimento da ginecologia e da busca de conhecimento médico do corpo feminino (Martins, 2004). A partir do início do século XX, com o surgimento das primeiras maternidades, também direcionadas para o ensino, esse movimento se ampliou e possibilitou o desenvolvimento de técnicas médicas mais complexas em relação ao parto. Apesar disso, seria somente, a partir de meados do século XX, num contexto de forte urbanização, que os partos hospitalares começariam a se tornar mais numerosos no país. Para a ocorrência dessa mudança, foi central o desenvolvimento do setor hospitalar da medicina previdenciária e o surgimento dos grandes hospitais gerais (de gestão estadual), nas principais capitais do país. Tal processo faria com que nos anos 1970, o nascimento hospitalar se generalizasse, trazendo consigo a questão da ampliação desmesurada de práticas desnecessárias ou inadequadas, em especial no campo da cirurgia (Nagahama & Santiago, 2005).
Durante o século XX, a generalização do uso de tecnologias, em matéria da obstetrícia ampliou-se vis a vis ao desenvolvimento da hospitalização dos nascimentos. Tal processo, à proporção que buscou enquadrar os nascimentos nas rotinas hospitalares, traduziu-se na ampliação de intervenções medicalizadas. Hoje a desmedida utilização de intervenções no parto — como a episiotomia, a restrição da parturiente ao leito (geralmente em posição litotômica), a infusão venosa continuada (via de acesso para o uso de ocitocina), e a não utilização de anestesias peridurais — é realidade, em especial, nos hospitais públicos. No setor privado, os altíssimos índices da cesariana são parte de um problema de amplas consequências, uma vez que além da intervenção há ainda as consequências de sua realização antes da prova de trabalho de parto, ou seja, as situações de agendamento da cesárea antes mesmo que se iniciem os pródromos, o que se relaciona ao crescente aumento dos números de prematuridade e comprometimentos ao recém-nascido.
No Brasil, vive-se um momento de mudanças e desafios à assistência obstétrica impulsionados pelo movimento de humanização do parto e outros agentes. A resistência a um modelo medicalizado e ao uso abusivo de intervenções é pauta na agenda de grupos de mulheres e profissionais, que avançam também na proposição de ruptura com uma compreensão do parto centrada na sua dimensão fisiológica. No campo da pesquisa acadêmica também vêm surgindo iniciativas que, a partir de diferentes campos disciplinares, se voltam para a temática das práticas de parto, os usos e abusos da cesariana, as questões referentes à escolha da via de parto e a violência obstétrica. Entre elas destaca-se a pesquisa Nascer no Brasil: inquérito nacional sobre parto e nascimento
, realizada pela Fiocruz, com o objetivo de conhecer os determinantes, a magnitude e os efeitos das intervenções obstétricas no parto, que trouxe à luz o complexo quadro de iniquidades relacionadas à medicalização do parto no Brasil. Esses estudos são cruciais para a reflexão sobre as transformações nas práticas de parto e sobre a utilização cada vez mais intensa de intervenções. No entanto, identificamos como lacuna nesse campo de conhecimento a reflexão sobre os processos que favoreceram a incorporação de tais intervenções e as mudanças que elas provocaram nas práticas de nascimento no Brasil. A fim de contribuir em preencher tal lacuna, e com o objetivo de colaborar com as iniciativas de âmbito nacional de redução das intervenções no parto, desenvolvemos, desde 2015, a Pesquisa Medicalização do Parto e Nascimento no Brasil.3 Tendo como âncora a perspectiva histórica e como referencial o conceito de medicalização, o grupo vem analisando a incorporação das técnicas e tecnologias, dos processos regulatórios de sua utilização e dos efeitos que provocaram nos nascimentos, buscando compreender meandros do processo local de desenvolvimento da medicalização do parto.
A medicalização do parto, além de um ponto de enfrentamento é também uma matriz analítica amplamente aplicada para investigar as formas de parir e nascer em cada sociedade. O conceito, utilizado de diferentes formas pela literatura que examina as transformações dos nascimentos nos últimos séculos, se mostra como uma ferramenta útil, dependendo da maneira que é utilizado. Pensado como um processo teleológico de ampliação de intervenções profissionais num evento natural apresenta pouca valia e o risco de gerar tensões inúteis e sem base empírica entre diferentes agentes relacionados ao nascimento. Por outro lado, se mediado pela compreensão de seu caráter histórico — processual, não linear, eivado de incertezas e atinente a agentes externos a prática da saúde e a profissão médica — ganha importância na compreensão das diferentes dimensões das transformações do nascimento e do parto. Neste livro, a medicalização do parto é vista dessa segunda forma, como um reflexo setorizado da medicalização da sociedade e da vida, relacionado a diferentes aspectos de construção sociocultural que conformam as práticas científicas e assistenciais. Entre seus diversos aspectos encontra-se a ampliação da utilização de aparatos técnicos e tecnológicos no âmbito da vida.
No âmago das questões sobre a medicalização do parto encontra-se o problema da ampliação do uso da tecnologia. O uso crescente de técnicas e tecnologias médicas no trabalho de parto e no parto — até mesmo para gestações que evoluíram sem riscos médicos claros e partos eutócicos — é uma dimensão relevante das transformações nos nascimentos que pode ser vista a partir de diferentes campos disciplinares. No âmbito da História das Ciências, a incorporação de novas tecnologias ao nascer, se vincula à intensificação dos processos de medicalização da sociedade, sendo que esses dois aspectos dão a tônica a este livro.
A percepção de que a interação dos usuários com as tecnologias promove mútuas modificações nesses dois polos é fundamental para a compreensão do contexto de intensificação das intervenções no parto. Tal processo, denominado, coconstituição usuário-tecnologia, tão bem trabalhado por Oudshoorn & Pinch (2003), mostra que por um lado os usuários têm um papel no desenvolvimento das tecnologias, de outro, são também afetados por elas. A observação dessa coconstituição permite ultrapassar as visões essencialistas sobre os usuários, e também transcender as observações determinísticas sobre as tecnologias. Ou seja, refletir sobre o papel dos usuários no desenvolvimento das tecnologias em geral, mas em especial sobre a forma como eles consomem, modificam, reconfiguram, desenham, domesticam, e resistem à tecnologia (Oudshoorn & Pinch, 2003). Como apontam esses autores, o importante seria acrescentar à pergunta o que os usuários fazem com a tecnologia?
outra: o que as tecnologias fazem aos usuários?
.
No âmbito do processo histórico de medicalização do parto, tal diretriz aponta para uma ampliação de foco em relação às permanências e rupturas, com fortes consequências diante das visões que naturalizam e tornam a-históricos diferentes concepções e práticas relacionadas ao parto e ao nascimento. Em geral, a literatura acerca da incorporação de tecnologias e procedimentos médicos no parto caminha para asserções de um inerente potencial lesivo desses recursos ao corpo da mulher. Acreditamos que a incorporação dos recursos técnicos e tecnológicos e a medicalização de processos naturais devem ser pensadas de modo mais abrangente do que um imperialismo médico
. É preciso considerar que a medicalização é uma via de mão dupla — como argumenta Peter Conrad (1992) — visto que as usuárias (no caso do parto, as mulheres) não são passivas nesse processo; ao contrário, podem incorporar ativamente tais recursos médicos em suas vidas, e também no parto.
Seguindo a linha das mudanças nas práticas de parto à luz dos processos de medicalização, vemos o florescimento das formas de vigilância em saúde, que se intensificam na gravidez. As grávidas consideradas saudáveis, ou seja, não enquadradas entre os problemas médicos, passam a figurar como potencialmente de risco e incorporam rotinas médicas de mensuração e de acompanhamento, configurando um status de risco habitual
. Essa vigilância abre um leque de intervenções contextualizadas às necessidades da gravidez. Esse enquadramento da gravidez e do parto sob vigilância e cuidados médicos é a crítica central de estudiosos que defendem a desmedicalização do parto. No entanto, o processo de medicalização está muito difundido nas sociedades contemporâneas, assumindo novas formas por meio de lógicas disciplinadoras do biopoder e biopolítica, propagadas através da intensa produção e difusão de informações que apoiam o discurso do risco e vigilância. É nesse sentido que as novas tecnologias médicas produzem uma reorganização da medicina, remodelando a ideia de que os problemas se tornavam médicos quanto mais se afastavam das linhas de normalidade: o foco, antes na doença, enfermidade e lesão, agora se estende à própria saúde e à sua mercantilização. Há uma política de medicalização da própria vida, que se moleculariza e coloca em xeque as possibilidades de quaisquer estratégias desmedicalizadoras. Não se pode falar, portanto, de práticas isoladas de intervenção no parto, mas de todo um conjunto de práticas medicalizadas e biomedicalizadas que engendra a cultura material do parto na contemporaneidade.4Nossa era é marcada pela mercantilização da saúde, pela elaboração do risco e de vigilância e pelas inovações e intervenções controladas não somente pelos profissionais, mas pelos próprios sujeitos (Clarke et al., 2003).
As transformações nas práticas de parto acompanham essas transformações no campo da biomedicina e da vida. A experiência de parto e nascimento passa a ser mediada pelas tecnologias, incorporando-as às próprias possibilidades corporais. A dor, o sangramento, a laceração do períneo, o tempo do parto são então interpretados à luz de um novo ideal de parto, que passa a conter normas de segurança, de limpeza, de logística, de uso de tecnologias, entre outros. O cenário de práticas biomedicalizadas, se desdobra em uma dinâmica contingente e cumulativa de cada vez mais inovações tecnocientíficas, desde as últimas décadas.
As perspectivas analíticas anteriormente discutidas conformam as bases em que foram desenvolvidos os diferentes capítulos que compõem este livro. Também dão o tom às pesquisas que nosso grupo vem desenvolvendo e ao diálogo que buscamos com outros pesquisadores e com a sociedade.
O livro é dividido em seis partes. A primeira delas, intitulada Atores, locais e cenários do parto
, é composta por três capítulos. No primeiro, «Em casa é mais seguro!»: o olhar do refúgio, do privilégio e da política pública
, Rosamaria Carneiro nos apresenta os diferentes locais e cenários de parto no Brasil contemporâneo (o hospital, o centro de parto natural, a casa de parto e o domicílio), tecendo reflexões sobre seus atravessamentos, sentidos políticos e hierarquias sociais. Para a autora, todos esses cenários giram em torno das diferentes noções de casa: uns mais distantes, outros mais próximos, a depender do significado que ela assume. Assim, a ideia de parir em casa
poderia representar não só uma forma de privilégio de classe ou um lugar de perigo e abandono, mas, também, a base para construções políticas.
O segundo capítulo, Parteiras tradicionais e políticas culturais: reconhecimento, hierarquia de saberes e desconstruções pertinentes
, de Elaine Müller e Júlia Morim de Melo, fala sobre o lugar reservado às parteiras tradicionais no cenário obstétrico e nas políticas públicas brasileiras, especialmente nas políticas culturais. Apesar de serem referências em suas comunidades e de compartilharem a mesma realidade sociocultural das mulheres que assistem, no Brasil, as parteiras possuem um campo de atuação cada vez mais reduzido, uma vez que a assistência obstétrica medicalizada se expande. As autoras observam que o processo de patrimonialização e musealização desse ofício, ao ressaltar sua importância cultural e promover desconstruções de ordem técnica, estéticas e de gênero, representa uma alternativa para o reconhecimento e valorização das parteiras tradicionais e de seus saberes e práticas, abrindo caminho para o diálogo entre essas mulheres e o sistema oficial de saúde.
As parteiras tradicionais também são tema do terceiro capítulo. Sheila Cosminsky, em "Parteiras e medicalização: estudo de caso de uma comadrona guatemalteca analisa o que ela chama de
área cinzenta" na interação entre parteiras leigas na Guatemala, que assistem a mais de dois terços dos nascimentos no país, e os profissionais biomédicos. A partir de uma extensa pesquisa de campo realizada em plantações de açúcar e café, a antropóloga nos apresenta à parteira dona Siriaca e suas práticas, e nos mostra a dinâmica do processo de medicalização do parto no contexto rural guatemalteco, que envolve tanto a rejeição quanto a incorporação de elementos do sistema biomédico e das culturas maia e espanhola.
A segunda parte do livro, Práticas e intervenções no parto
, possui dois capítulos. O primeiro deles, o capítulo 4, A arte de «auxiliar» e «corrigir» a natureza: os debates obstétricos sobre intervenção, indução e condução do parto em meados do século XX
, traz alguns resultados de nosso projeto de pesquisa, tendo sido escrito por Marina Nucci, Fernanda Loureiro Silva, Andreza Pereira Rodrigues e Luiz Antonio Teixeira. Nesse capítulo, partimos da observação de que as altas taxas de cesariana e o uso excessivo de intervenções no parto, que marcam o cenário obstétrico brasileiro na atualidade, não podem ser descolados de um intenso processo histórico de medicalização das práticas de parto e nascimento. Desse modo, a partir do levantamento de artigos publicados em periódicos brasileiros de obstetrícia em meados do século XX, analisamos os debates médicos da época acerca da melhor forma de se conduzir o parto nos hospitais. Assim, observamos como, nesse período, a crescente mudança dos partos do domicílio ao hospital implicou em uma nova roteirização e ordenação da assistência, uma vez que a lógica médico-hospitalar exigia que o parto passasse a acontecer a partir de uma temporalidade distinta daquela que tradicionalmente ocorria nos domicílios.
O capítulo 5, Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual
, de Maria do Carmo Leal et al., analisam a assistência ao parto de mulheres de risco habitual no país, na atualidade, a partir de dados da pesquisa Nascer no Brasil
coletados em 2011 e 2012. Assim, o trabalho investiga o uso de boas práticas (como a possibilidade da parturiente se alimentar durante o trabalho de parto, a deambulação, o uso de métodos não farmacológicos para alívio da dor e do partograma), e de intervenções (como a amniotomia, ocitocina sintética, episiotomia e a manobra de Kristeller) realizadas em partos, tanto nos setores públicos como nos privados, das diferentes regiões brasileiras. O capítulo fornece dados valiosos para se entender o cenário atual da assistência obstétrica no país, mostrando não apenas a alta presença de intervenções no parto, como as especificidades e as desigualdades entre cada região. No capítulo 6, Cesáreas no Brasil: o novo parto normal?
, Andreza Pereira Rodrigues, Luiz Antonio Teixeira e Claudia Bonan analisam o largo uso da cesariana no Brasil. Em especial, os autores procuram investigar o papel das tecnologias médicas na reorganização de ideias e valores, práticas, relações e interações entre indivíduos, grupos e instituições.
A terceira parte do livro, Nascimento e risco
, possui dois capítulos. No capítulo 7, A ascensão do gerenciamento de riscos, industrialização e medicalização do parto em Porto Rico no final do século XX
, Isabel Cordova analisa o emaranhado processo de medicalização dos nascimentos em Porto Rico após a acelerada industrialização do país. A autora examina o importante papel que a gestão e a prevenção dos riscos desempenhou na redefinição do parto, e argumenta que a ascensão e a consolidação do modelo tecnocrático de nascimento foi resultado de mudanças profundas no ambiente sociocultural e político, que visavam reduzir riscos e controlar a natureza por meio do desenvolvimento tecnológico e científico. Esse processo não só transferiu os nascimentos em Porto Rico das casas para o hospital, mas também levou ao estabelecimento do médico obstetra como especialista responsável pelos partos, o consequente desaparecimento das parteiras da ilha. Já no capítulo 8, Onde «longe demais para andar» encontra com «muito, cedo demais»: vida de mães à beira da transição obstétrica
, Maria Openshaw traz o problema da morbidade e da mortalidade materna e neonatal para o centro do debate sobre cuidados com a saúde materna em contextos de baixa e média renda. Nesse capítulo, a autora conta a história de Mwayi, uma mulher da zona rural de Malaui que teve acesso aos programas de promoção da Maternidade Segura
no seu país, mas acabou sofrendo complicações após o nascimento do seu sexto filho. Enquanto narra a trajetória dessa mulher, Maria Openshaw apresenta um debate no qual aciona três conceitos muito difundidos no campo da saúde materna: o modelo dos três atrasos
, a noção de "too little, too late and too much, too soon e a de
transição obstétrica". A autora ressalta que, apesar das estratégias governamentais para aumentar o acesso ao cuidado médico e promover o parto seguro, as taxas de morbidade e mortalidade continuam altas no Malaui. Esses resultados revelam os desafios no cuidado com mulheres grávidas e parturientes em sistemas de saúde que passam por uma transição, e sinalizam para a necessidade de ampliação no foco, de modo a ir além da questão do acesso à saúde, passando a considerar também a qualidade da assistência e as experiências das mulheres.
Nos três capítulos que compõem a parte 4 do livro, são abordados a temática da violência obstétrica. O capítulo 9, «Violência obstétrica» na Maternidade de Laranjeiras: fontes para pesquisas futuras
, de Cassia Roth, apresenta uma valiosa fonte para os pesquisadores da história da obstetrícia no Brasil. A partir da análise de relatórios clínicos de mulheres atendidas na Maternidade de Laranjeiras, publicados em uma importante revista científica da década de 1920, a autora explora as tendências históricas daquilo que é atualmente denominado como violência obstétrica. Segundo Roth, essas notas clínicas são uma fonte abundante de informações sobre a prática clínica dos obstetras da época, configurando um importante recurso para a investigação histórica das experiências das mulheres no decorrer do processo de medicalização e de hospitalização do parto. Já no capítulo 10, Violência Obstétrica em perspectiva histórica (1950-2012)
, Larissa Velasquez analisa a historicidade do conceito violência obstétrica a partir dos movimentos de contestação do parto medicalizado
. Transformações na visão sobre a gravidez, o parto e o nascimento, impulsionadas pela noção de direitos humanos e legitimadas pela medicina baseada em evidência, promoveram um processo de ressignificação de uma série de práticas no âmbito da assistência obstétrica. Nesse processo, alguns procedimentos tidos como essenciais na assistência ao parto foram questionados quanto a sua eficácia e segurança, sendo que muitos deles passaram a ser considerados como formas de violência contra a mulher. A autora ressalta a não linearidade e a não uniformidade dessas mudanças, chamando a nossa atenção para permanências e rupturas no processo de medicalização do parto no Brasil. No capítulo seguinte, 11, «Medicalização do parto» e «violência obstétrica»: olhares complementares sobre o mesmo fenômeno
, Carmen Simone Grilo Diniz, Janaína Marques Aguiar e Denise Yoshie Niy analisam a articulação entre medicalização e violência no âmbito da saúde reprodutiva das mulheres, bem como seus atravessamentos de gênero e raça e seus desdobramentos políticos e sociais. Os problemas no modo de como as mulheres são assistidas durante o parto no Brasil, apesar de conhecidos há muito tempo, passaram a ser conceituados mais recentemente como uma forma de violência institucional, ou violência obstétrica, a partir das demandas do movimento social de mulheres, cujo discurso se ampara na linguagem acadêmico-científica e dos direitos humanos. No entanto, as autoras apontam que embora o problema da violência obstétrica tenha ganhado mais visibilidade na sociedade brasileira, o entendimento e o enfrentamento desse tipo de violência ainda é um grande desafio.
A parte 5 do livro, Medicalização do nascimento e da maternidade
é composta por dois capítulos. No capítulo 12, Conselhos às mães: a medicalização da maternidade em revista
, Maria Martha de Luna Freire analisa publicações de duas revistas brasileiras voltadas para mulheres na década de 1920. Mais especificamente, a autora discute a pedagogização e medicalização da maternidade através de matérias nessas revistas, que versavam sobre as melhores formas de se cuidar de bebês e crianças. Assim, Freire aponta como tal meio de comunicação serviu como importante difusor dos ideários da maternidade científica, isto é, de uma série de ensinamentos
e prescrições
acerca da criação de filhos, calcada na racionalidade científica da época, que por sua vez estava ligada a um processo mais amplo de higienismo e medicalização da vida. No capítulo seguinte, 13, Medicalização do parto: combinaram com o bebê?
, de Luciana Borges, trata dos impactos da medicalização do nascimento para o bebê, a partir da perspectiva da pediatria e neonatologia. Dentre os riscos de intervenções e procedimentos tais como a cesárea eletiva, a autora destaca o risco da prematuridade e as complicações dela decorrentes. Borges argumenta também em favor da necessidade de uma assistência menos intervencionista e mais respeitosa para a parturiente e o bebê que irá nascer.
A sexta e última parte do livro, Saberes sobre o parto
, tem o objetivo de apresentar diferentes olhares sobre o parto, por meio da perspectiva de profissionais da assistência — obstetrizes, enfermeiras obstetras, médicos obstetras, doulas — e de mulheres, sendo composta por cinco capítulos. O primeiro deles, o capítulo 14, A construção de uma nova profissão: a Obstetrícia
, de Gabriela Hugues e Maria Luiza Heilborn, nos traz a perspectiva das obstetrizes, profissionais habilitadas para a assistência de partos de risco habitual. As autoras apresentam a história do atualmente único curso brasileiro de obstetrícia, na Universidade de São Paulo (USP), que havia sido fechado no início da década de 1970 com a reformulação das universidades brasileiras, sendo reaberto em 2005. Como observam as autoras, o compromisso do curso é formar profissionais que atuem dentro da perspectiva da humanização e do cuidado integral, a partir de um diálogo e relação horizontal com a gestante e sua família. No capítulo 15, Saberes no parto: a visão de um obstetra
, Marcos Dias reflete sobre a formação obstétrica no Brasil, e como muita das verdades científicas
que haviam sido ensinadas e incorporadas por essa especialidade médica precisaram ser desconstruídas ao longo das últimas décadas. Assim, mais recentemente, a partir de movimentos críticos à medicalização do parto, diversos procedimentos que eram ensinados e adotados com o objetivo de diminuir o risco
, controlar
e auxiliar
os nascimentos, foram revistos e considerados inadequados, sem eficiência comprovada, ou mesmo prejudiciais e violentos. Em seu texto, Dias discute, a partir da perspectiva de um obstetra, esse processo de desconstrução, chamando atenção para os avanços já conquistados, e o trabalho que ainda precisa ser feito. No capítulo 16, Medicalização e racismo
, Ariana Santos traz a perspectiva da enfermagem