Proteger a infância: Proteção integral e garantia dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes
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Proteger a infância - Carina Rossa
APRESENTAÇÃO
Nos últimos anos, tem-se destacado o triste fenômeno de abusos de crianças e adolescentes, o qual envolveu muitas instituições e até mesmo figuras eclesiásticas, que se incriminaram com esta horrível culpa. Isso impôs um profundo exame de consciência sobre essa situação.
Após haver condenado claramente esses fatos dolorosos, o papa Francisco instituiu, em 22 de março de 2014, a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores
, com o objetivo de propor as iniciativas mais oportunas para a proteção de crianças, adolescentes e pessoas vulneráveis, a fim de que esses crimes não se repitam na Igreja.
Inclusive recentemente, quando se encontrou com os membros desta comissão, em 21 de setembro de 2017, após haver reafirmado que a Igreja quer responder ao problema dos abusos aplicando normas severas para todos os que traíram seu chamado pessoal de seguir a Deus, o papa Francisco voltou a sublinhar o compromisso de desenvolver iniciativas adequadas relacionadas com esse argumento. O Papa elogiou as propostas educativas e formativas promovidas para dar às pessoas responsáveis pelas instituições os instrumentos necessários para enfrentar e prevenir esse
triste fenômeno.
O anúncio da mensagem evangélica que a Igreja e todos os seus membros são chamados a difundir no mundo inclui, naturalmente, a proteção efetiva de crianças e adolescentes, além do compromisso de garantir-lhes o desenvolvimento humano e espiritual no processo de formação e crescimento de sua personalidade.
De acordo com essa perspectiva, o Movimento dos Focolares também instituiu uma Comissão para a Proteção Integral e Garantia dos Direitos Fundamentais de Crianças e Adolescentes, a qual elabora diretrizes para essa finalidade. Os princípios derivados dessas diretrizes podem ser aplicados em todas as atividades que os educadores realizam com crianças e adolescentes em ambientes educativos, associações lúdicas e esportivas e em comunidades paroquiais de todo o mundo. Trata-se de uma iniciativa louvável, fruto de um longo trabalho de preparação com especialistas e educadores que lidam com as jovens gerações.
Esta publicação enfrenta o argumento com grande clareza e sob vários pontos de vista, considerando os aspectos psicológicos da violência, os direitos da criança, as legislações em matéria de proteção de crianças e adolescentes, a posição da Igreja Católica e, sobretudo, os aspectos pedagógicos. Considero que se trata de uma opção inteligente e construtiva propor programas de formação e sensibilização destinados, de modo particular, aos formadores e educadores que atuam em contextos sociais e culturais muito variados. De fato, o caminho por excelência para proteger as crianças e os adolescentes é o de acompanhá-los em sua trajetória de crescimento para que, por meio do processo educacional, adquiram valores, atitudes e capacidades de discernimento que os ajudem a enfrentar os desafios e as dificuldades da vida. No entanto, isso só pode acontecer efetivamente se houver formadores preparados e responsáveis.
Neste contexto, é importante que as pessoas comprometidas com a educação de crianças e adolescentes disponham de orientações, como as indicadas no manual prático que aqui se apresenta, que não podem ser reduzidas a um conjunto de normas e critérios frios e formais, mas que devem ser a tradução prática dos princípios pedagógicos inspirados nas várias dimensões de uma antropologia sã, tal como são apresentados nos capítulos finais. Com efeito, é preciso aplicar a pedagogia da centralidade da pessoa
, com seus direitos à plena e responsável liberdade, à realização das aspirações de justiça e amor e, em particular, o direito a orientar a vida de cada um conforme os supremos valores espirituais e ético-religiosos que encontram em Cristo, o homem novo, sua plenitude.
Para um educador, colocar a pessoa no centro significa, como primeira iniciativa, encaminhar um processo de libertação dos vários condicionamentos – físicos, psíquicos, socioeconômicos e de experiências particulares vividas – que limitam a plena realização da própria dignidade pessoal; junto a essa ação de deixar de lado os condicionamentos
, não se deve esquecer a função da proteção que educa para enfrentar consciente e responsavelmente a vida, para que sejam construtores de uma sociedade melhor. Portanto, é preciso que a educação ajude a ser mais
e não somente a ter mais
, em uma escolha de disponibilidade e de serviço aos irmãos. Essa é a função da orientação e abertura da pessoa às grandes opções vocacionais e profissionais da vida, para que toda pessoa seja protagonista de um mundo novo, caracterizado pela fraternidade, unidade e paz.
As reflexões propostas nessa publicação ressaltam, muito oportunamente, que todos esses princípios são eficazes somente quando aplicados não de um modo isolado, por um só formador, e sim quando são vividos no contexto da comunidade educadora
, que é a condição mais segura de sua realização.
A tarefa educacional apresenta-se cada vez mais como algo árduo e importante, sendo por isso de realização delicada e complexa, sobretudo em uma sociedade em profunda transformação, como a que vivemos, em que vemos desaparecer gradualmente todos os pontos de referência. Assim sendo, essa função vinculada a crianças e adolescentes exige, dos formadores, calma, paz interior, ausência de sobrecarga de trabalho e um contínuo enriquecimento cultural e religioso, todas estas condições que dificilmente podem ser encontradas, no contexto atual, em uma única pessoa. Por um lado, o educador não pode prescindir de fundamentos e preparação específica e, por outro lado, não pode ser deixado sozinho ou agir sozinho, e sim – ao contrário – sempre deve contar com uma comunidade de referência que o sustenta, na qual deve verificar e corrigir sua própria tarefa e onde a criança pode encontrar muitas outras figuras para relacionar-se. O educador, então, deve ter competências cada vez mais de melhor qualidade; contudo, seu protagonismo deve ser verificado e concretizado dentro da comunidade. Isso permite estabelecer um relacionamento educativo aberto a todos os sujeitos que intervêm no processo formativo e assim reconstruir o pacto educacional
entre educadores, família, escola e as várias instituições que participam da preparação de futuros cidadãos maduros e responsáveis na vida social, religiosa e civil.
+ A. Vincenzo Zani
Secretário da Congregação
para a Educação Católica
INTRODUÇÃ0
Como uma mãe amorosa, a Igreja ama todos os seus filhos, mas cuida e protege com um afeto muito especial
dos menores e indefesos. Trata-se de uma tarefa que
o próprio Cristo confia a toda a Comunidade cristã em seu conjunto. Consciente disso, a Igreja dedica um cuidado vigilante à proteção de crianças e adultos vulneráveis.
Papa Francisco
Nos últimos anos, a Igreja Católica, com uma coragem crescente, reconheceu que ela mesma viveu, em seu interior, a chaga da pedofilia e da violência contra crianças e adolescentes. Dirigiu um convite a todas as Conferências Episcopais do mundo – e, portanto, a todas as formas associativas e instituições católicas – a adotar procedimentos de transparência e de rigor, tanto para prevenir quanto para lidar, no caso concreto, com os episódios de abuso de crianças e adolescentes.
A proteção integral e a garantia dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes sempre estiveram no centro da atenção de Chiara Lubich¹.
O Movimento dos Focolares, no desejo de apoiar o que a sociedade civil e religiosa está realizando para o bem de crianças e adolescentes, tem sentido a exigência de enfrentar esta temática de uma maneira mais profunda. Por este motivo, constituiu uma Comissão para a Proteção Integral e Garantia dos Direitos Fundamentais de Crianças e Adolescentes, que vem realizando um percurso preciso e capilar com o objetivo de promover as boas práticas que favorecem o crescimento integral de crianças e adolescentes e, ao mesmo tempo, sensibilizar e formar toda a comunidade com o objetivo de prevenir as situações de violência de qualquer tipo. Trata-se, na verdade, de um percurso já iniciado há muito tempo em vários países do mundo, porém intensificado e sistematizado nos últimos anos em nível mundial. Estamos convencidos de que a consciência de construir ambientes seguros deve chegar a ser patrimônio de todos, bem como o compromisso de favorecer e proteger o crescimento integral de crianças e adolescentes que, de diversas maneiras, se relacionam conosco.
O projeto de publicar um livro sobre a Proteção Integral e Garantia dos Direitos Fundamentais de Crianças e Adolescentes é o resultado de um caminho de crescimento no campo da formação, justamente o que essa Comissão Central Internacional está realizando.
Durante nossos itinerários formativos e de sensibilização, dirigidos aos membros do Movimento dos Focolares em todo o mundo, constatamos a carência de material de divulgação que parta de uma antropologia cristã. Trata-se de um material que pode oferecer informação clara e orientações concretas, de maneira sistemática e prática, para planejar os processos de formação e prevenção no âmbito da proteção de crianças e adolescentes. Com efeito, vários membros de algumas instituições locais, como paróquias, ordens religiosas, movimentos eclesiais etc., que têm participado de nossos cursos de formação, nos pedem o material utilizado e, a seguir, nos comunicam que este último foi de grande utilidade para suas comunidades no campo da prevenção.
Assim nasceu esta publicação, em parceria com a Editora Cidade Nova, com o desejo de responder a uma necessidade real e de oferecer um serviço à Igreja local, às instituições, à comunidade em geral, disponibilizando nossa experiência formativa nesse setor.
Somos conscientes da imensidade dessa temática e da dificuldade em aprofundá-la sem descuidar, involuntariamente, de seus aspectos fundamentais. Nosso objetivo não é oferecer uma informação exaustiva; ao contrário, gostaríamos de que estas páginas fossem tão somente o início de um intercâmbio de experiências profissionais e de um trabalho educativo verdadeiro.
Por meio da formação, é possível gerar e difundir a cultura do encontro. A formação promove reflexões e ações que se expressam no cotidiano; trata-se de um aspecto fundamental para a vida da comunidade. Às vezes, é preciso programar momentos e espaços de encontro com o outro, para aprender a debater, escutar e ser escutado, aprender a superar as barreiras pessoais e culturais, para se sentir parte de um corpo e, juntos, com coragem, enfrentar as fragilidades pessoais para dialogar sobre argumentos incômodos… O caminho da conscientização e da prevenção começa quando uma comunidade tem a coragem de verbalizar o inenarrável
. Tudo isso ativa um modo de comunicar e de enfrentar a vida cotidiana, contribui para que nos sintamos menos sozinhos e mais participantes de uma comunidade.
Essas mesmas dinâmicas que estão na base da cultura do encontro podem ser propostas a nossas crianças e adolescentes, sendo transmitidas e experimentadas de maneira que eles aprendam a proteger-se reciprocamente, porque quem experimenta relacionamentos interpessoais sadios sabe reconhecer aqueles que são perigosos e doentios. Esse livro oferece chaves de leitura úteis para avaliar nossos contextos educacionais, ao mesmo tempo que facilitam o reconhecimento de sinais de bem-estar e de periculosidade.
O livro, portanto, foi concebido como um instrumento de estudo e de trabalho para educadores de todo tipo, tanto para os professores do ensino fundamental e médio quanto para catequistas ou agentes da pastoral, ou ainda monitores de grupos juvenis, treinadores esportivos e, inclusive, genitores ou grupos de famílias.
Essa publicação se organiza em três partes: a primeira contém as contribuições que propõem uma visão da criança e do adolescente da perspectiva de seu bem-estar. Estão mencionados os direitos inalienáveis da infância, os princípios pedagógicos e de direitos da criança no mundo.
Na segunda parte, estão os capítulos vinculados à proteção da criança e do adolescente e são contemplados os terríveis aspectos psicológicos da violência, os abusos e danos, do ponto de vista do Direito, além da resposta da Igreja Católica a esse tipo de violência. Na terceira parte, encontram-se a proposta de um manual prático para a aplicação dos princípios enunciados e um modelo de curso de formação dirigido aos educadores.
Por último, cada capítulo está acompanhado de uma ficha didática na qual se encontram uma síntese dos conceitos principais do capítulo, perguntas para a reflexão e indicadores para a avaliação dos centros educativos. Convida-se, assim, o leitor a confrontar-se com sua própria realidade educativa, aumentando a responsabilidade e, esperamos, também a paixão por esta delicada tarefa.
Almejamos que a leitura destes textos seja estimulante e embase a ação pedagógica. Queremos que ajude a aumentar o sentido de comunidade ao redor da figura do educador e renove a confiança no bem das novas gerações que muito o merecem.
1 Chiara Lubich (1920-2008), nascida em Trento (IT), é fundadora do Movimento dos Focolares. Alcançou notoriedade especialmente por seu trabalho em favor do ecumenismo, do diálogo inter-religioso e de várias iniciativas sociais e culturais para promover a fraternidade universal. Dentre os reconhecimentos recebidos por suas atividades no campo espiritual, social e cultural, destacam-se: Prêmio Unesco de Educação para a Paz (1996), Ordem do Cruzeiro do Sul, Honra ao Mérito (USP) e 16 títulos de doutora honoris causa.
CAPÍTULO 1
AS CRIANÇAS: NECESSIDADES E DIREITOS
Raffaele Arigliani²
Quem é o homem
Deixando de lado os aspectos filosóficos e religiosos, e somente a partir da perspectiva biológico/clínica, podemos definir o homem, em seu conjunto, como um ser relacional que precisa de cuidado amoroso
. Múltiplas são as demonstrações científicas que confirmam esta tese.
O homem funciona por meio de traçados genéticos e bioquímicos diferentes, mas é certo que um gene não pode se expressar sem seu companheiro mais íntimo, sem o ambiente e as interações com o mundo circundante. Além disso, as conexões neuronais, em grande parte produto da experiência
e dos estímulos, mais que do número de neurônios, são as que determinam o funcionamento do cérebro. Portanto, natureza e cultura interagem em uma simbiose que promove o desenvolvimento³. As experiências interativas podem determinar até mesmo a mudança de função das células: neurônios que normalmente deveriam enxergar
, em uma criança cega de nascimento, aprendem a ouvir, por exemplo.
O próprio desenvolvimento orgânico está condicionado à relação de cuidado: observemos que um recém-nascido que recebe determinadas calorias, mas não é acalentado nem acariciado ou não tem um contato contínuo com adultos não cresce em peso e em suas funções intelectivas (síndrome de carência afetiva, tristemente conhecida nos últimos anos).