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Gerenciando as Emoções: Conselhos Afetivos e Experiências Femininas
Gerenciando as Emoções: Conselhos Afetivos e Experiências Femininas
Gerenciando as Emoções: Conselhos Afetivos e Experiências Femininas
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Gerenciando as Emoções: Conselhos Afetivos e Experiências Femininas

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"As mulheres amam demais", "Você não deve demonstrar interesse pelo homem pretendido", "Avalie bem antes de investir em um relacionamento", "Uma mulher poderosa sabe que...": esses são alguns dos conselhos sugeridos às mulheres ou publicados em manuais de aconselhamento que prometem estratégias para evitar o sofrimento amoroso, estimulando mudanças no comportamento feminino.

Em Gerenciando as Emoções: conselhos afetivos e experiências femininas, a autora analisa os conselhos afetivos publicados em manuais de autoajuda best-sellers no Brasil e as experiências de leitoras que fizeram usos dos aconselhamentos, buscando identificar o contexto de difusão desse segmento literário e os sentidos produzidos pelos conselhos nas vidas das mulheres. Sob um referencial feminista, a autora discute os padrões de gênero subjacentes aos discursos de aconselhamento, os arranjos afetivos estimulados pelos manuais e as implicações vivenciadas nas experiências femininas, tendo em vista o custo emocional demandado ao gerenciar as emoções, diante de relacionamentos afetivos que não deram certo.
LanguagePortuguês
Release dateMay 13, 2021
ISBN9786558206613
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    Gerenciando as Emoções - Rossana Maria Marinho Albuquerque

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    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2019 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    APRESENTAÇÃO

    Algum tempo se passou desde que concluí a pesquisa que resultou neste livro. O Brasil viveu mudanças profundas, os feminismos têm protagonizado muitos acontecimentos e entraram para o repertório da vida cotidiana de muitas mulheres. Por outro lado, algumas concepções de gênero veiculadas nos manuais de aconselhamento, que me pareciam tão conservadoras e talvez anacrônicas para o nosso tempo, também entraram para a cena pública, e chegamos a um contexto em que a frase meninos vestem azul e meninas vestem rosa foi proferida por uma autoridade pública, em tom normativo, pretendendo afirmar um modelo de masculinidade e feminilidade hegemônicos.

    De lá para cá, outros manuais já viraram best-sellers, mais conselhos sobre gerenciamento emocional foram vendidos para mulheres, temos coach para quase todas as dimensões da vida, tutoriais e sugestões para gerenciar muito da nossa vida cotidiana. Alguns dos manuais que analisei saíram das prateleiras e deram lugar a outros. Manuais de autoria brasileira caíram no gosto do público de leitoras. Os discursos de empoderamento feminino chegaram a quase todos os lugares. A identidade de feminista passou a ser mais aceita pelas mulheres e também mais rechaçada pelos homens que reivindicam um modelo de masculinidade que se afirma desprezando o gênero feminino.

    Voltar para o conjunto de questões abordadas, agora no formato de livro, me fez perceber que parte das tensões que estavam presentes nos dilemas vivenciados pelas mulheres que entrevistei na pesquisa era parte de um Brasil que estava caminhando progressivamente para tensões políticas, econômicas, culturais, e o gênero não ficou fora disso. Os padrões de gênero veiculados nos manuais de aconselhamento, que reivindicavam certos arranjos afetivos ao tempo que tentavam capturar as liberdades e conquistas femininas, faziam sentido para muitas mulheres que buscaram as fontes de aconselhamento e foram também questionados por outras que não se reconheciam naqueles estereótipos. Quanto mais as tensões se acirraram no Brasil, mais o gênero foi disputado por diferentes discursos.

    O gênero é produzido em diferentes sociedades, em conjunto com expectativas sociais que requerem determinadas classificações dos corpos, atribuições generificadas, arranjos emocionais, de modo que compreender o lugar dos afetos na dinâmica social pode nos conduzir a questões muito relevantes para a análise das relações sociais. Ao adentrar o universo dos manuais de aconselhamento e nas experiências das leitoras, fui acessando as demais dimensões da vida das mulheres e compreendendo como o gênero está presente nas práticas sociais para além das classificações identitárias. Nesse sentido, as emoções comunicam sobre as relações históricas, sobre quais indivíduos são produzidos em um dado contexto e sobre como as transformações sociais também afetam o âmbito emocional.

    Por esses e outros motivos que possam ser encontrados ao longo das páginas, penso que as questões aqui discutidas se encontram bastante atuais e podem contribuir para que percebamos nos detalhes, nas coisas aparentemente sem importância, aquilo que elas manifestam de complexidade.

    Teresina, fevereiro de 2020

    A autora

    PREFÁCIO

    BURILANDO CONSELHOS AFETIVOS E EMOÇÕES: MULHERES E AUTOAJUDA

    Há um aspecto muito original na obra de Rossana Maria Marinho Albuquerque sobre best-sellers de aconselhamento para mulheres, em especial sobre os relacionamentos amorosos: ela articula a análise de quatro manuais de autoajuda com a visão de um grupo de leitoras sobre a influência de tais livros na vida delas. O caminho da investigação foi amplo o suficiente para que a autora pudesse identificar as fórmulas prescritas pelos experts em vendas nessa literatura, e as maneiras como o público aplicava os conselhos, fosse memorizando-os e seguindo fielmente os mandamentos, fosse manuseando-os e adequando-os à realidade, fosse distanciando-se das condutas propostas em uma perspectiva crítica.

    A seleção dos best-sellers foi combinada à disponibilidade de grupos de discussão de leitoras para que fosse possível realizar os dois movimentos da pesquisa, o de focar nos livros e nas mulheres que conversavam sobre eles. A Prof.ª Rossana é doutora em Sociologia, e seu estudo parte desse prisma. Ela destrincha os conteúdos dos manuais enfocando as concepções de gênero neles difundidas, que moldam um lugar de predomínio masculino nas relações heterossexuais. Os livros apresentam receitas para as mulheres atuarem sobre si mesmas, visando administrar as emoções, elevar a autoestima e mudar o comportamento em busca de um relacionamento bem-sucedido com um homem. A autora também ouviu várias leitoras sobre tais estratégias, e as respectivas interpretações de seus resultados.

    Embora esse tipo de literatura seja denominado autoajuda, é fornecido por profissionais considerados especialistas em relacionamentos afetivos e na venda desses conselhos. Os livros selecionados dirigem-se ao público feminino, sendo um deles escrito por mulher e os demais por homens, tendo uma coautora ou como único mentor. A pesquisa da Prof.ª Rossana mostra que, embora a autoajuda seja um fenômeno associado ao individualismo da sociedade contemporânea, na qual predomina a crença de que os sentimentos são do âmbito da interioridade dos sujeitos que lidam com eles por meio de técnicas de si, o compartilhamento dessas preocupações mostrou-se social, com as leitoras formando grupos de discussão e ajuda mútua para compreender o problema e enfrentá-lo.

    A multiplicação dos manuais de aconselhamento ocorre simultaneamente às mudanças no papel das mulheres na vida pública, conquistando novos espaços no acesso ao ensino superior, no mercado de trabalho profissional, no poder sobre sua vida e seu corpo. É o deslocamento da ordem estabelecida, vista como tradicional, para algo tido como moderno, que motiva a produção e o consumo dos livros. Eles chegam com a promessa de dar dicas para a autoestima e o amor, fazendo um contraponto aos discursos feministas. A maioria desses manuais mantém o homem no centro das relações afetivas, e a mulher como satélite a orbitar em sua volta para ser bem-sucedida no relacionamento.

    Gerenciando as Emoções: conselhos afetivos e experiências femininas demonstra como o contexto que se tornou global é reinterpretado localmente pelas leitoras. As polaridades que opõem tradicional x moderno, relacionamentos permanentes x relações fluídas, pensamentos estratégicos x reações emotivas mostram-se hibridizadas, ressignificadas por várias entrevistadas – seguidoras dos conselhos ou não. Os sentidos atribuídos ao tradicional e ao moderno são manuseados por elas, muitas vezes combinando o convencional e o novo, retrocedendo na valorização de conquistas obtidas pelas mulheres quanto à sua autonomia.

    Uma qualidade desses manuais é ser capaz de falar para uma audiência, que, tendo no Brasil alguma homogeneidade em termos de escolaridade relativamente elevada, é mais diversa nas suas visões de mundo, na sua religiosidade, nas suas experiências amorosas e nas suas angústias. Isso se reflete na forma como as entrevistadas compreendem o que é ser uma mulher tradicional e uma mulher moderna, atribuindo valores que mais aproximam esses termos que os distanciam. A rejeição ao feminismo – no singular – parece ser um ponto de aproximação para a maioria delas nesse hibridismo, quando reduzem um amplo movimento de luta contra a discriminação e a desigualdade de gênero a uma conduta que quer colocar a mulher na frente do homem, e quer expor o corpo publicamente como alguma forma de contestação.

    Os best-sellers, ao fornecerem receitas para realocar o feminino em relações de gênero com predomínio masculino, facilitam a ressignificação do tradicional. Mesmo a mulher que se torna financeiramente independente, conquistando poder de decisão em sua vida, vai atuar sobre si mesma para mudar sua conduta e agir racionalmente nessa relação, contornando os obstáculos para seduzi-lo e ter sucesso em manter o homem no centro do relacionamento.

    Com o entendimento de que as conquistas feministas desorganizaram a ordem social, os best-sellers vão produzindo uma nova adequação, substituindo a noção de que a mulher moderna é uma lutadora que obteve vitórias na redução de desigualdades, para colocar no lugar a ideia de que ela perdeu a segurança e a autoestima, que será restabelecida seguindo as dicas propostas.

    A suposta desorientação feminina em função da menor imposição social, da liberdade de escolhas em um conjunto diverso de comportamentos, de vínculos e pertencimentos mais frouxos que da sociedade precedente, seria atenuada pela expertise em aconselhamento, levando a ações individuais de autocontrole e de gerenciamento das emoções. Se a nova ordem tem seu foco no indivíduo, a regra é a autoajuda. Dessa forma, os manuais preparam o terreno para um novo conservadorismo, no qual o masculino retoma a centralidade nesses relacionamentos, apesar de ter sido deslocado no enfrentamento das desigualdades de gênero.

    A análise que a autora faz desses best-sellers revela que eles se dirigem a mulheres que conquistaram mais autonomia, enfatizando os custos dessas conquistas para os relacionamentos, com responsabilidade delas por tais resultados. Entram no pacote da culpa e do peso a ser carregado os sentimentos e as emoções, por um lado; por outro lado, o feminismo e a construção social do gênero.

    O jeito informal desses livros é parte da desconstrução da crítica feminista à concepção naturalizada de que, com base na determinação biológica, nasce-se mulher e assim se permanece, fixando a origem em papéis sociais binários femininos e masculinos, sem a possibilidade de distinguir sexo, gênero, desejo e sexualidade. Feminismo e gênero como problemas para reflexão são contestados por meio de regras a serem seguidas pelas leitoras como mandamentos para o relacionamento amoroso com os homens.

    A difusão desses manuais no Brasil ocorre no contexto conhecido como a quarta onda do feminismo, no qual sobressaem a sua intersecção com a raça e sexualidade, e a presença dos movimentos feministas negro, lésbico, entre outros, diferenciando-se das pautas das mulheres brancas e heterossexuais. É com o século XXI em marcha que esse tipo de aconselhamento feminino vira sucesso de vendas no Brasil, seguindo fenômeno editorial observado internacionalmente um pouco antes. A quarta fase do feminismo que desvincula gênero e sexualidade é contestada na prática pelas orientações de vida que os manuais oferecem às suas leitoras. Estes ajudam a trabalhar a interioridade feminina, de forma a produzir nela os sentimentos e as emoções para alcançar o objetivo de ser inteligente, sedutora e poderosa para a conquista do parceiro e a preservação da relação.

    As entrevistas com as leitoras que participaram dos grupos de discussão on-line mostraram que, nesse período, os livros atraíam mulheres com motivações diversas para buscar essa autoajuda, tendo ideários e estilos de vida distintos. Embora a maioria fosse crítica dos exageros do feminismo, reconheciam que as mulheres tinham conquistado direitos. Algumas mais conservadoras preferiam reforçar o lugar dos cuidados para elas e o de provedor para eles. Outras reforçavam sua adesão à luta contra as desigualdades, a discriminação de gênero e destacavam sua autonomia para divergir de visões hegemônicas e adotar condutas diferentes sobre seu corpo, a sexualidade, a maternidade, o amor, a família, a visibilidade pública e o trabalho.

    Esse modelo de aconselhamentos que se dirigia a um público feminino em mobilidade social em relação à escolaridade de seus pais, diversificado quanto à visão de mundo, funcionou bem em um Brasil onde se pregavam valores democráticos e pluralidade. As entrevistadas avaliam que essas leituras tiveram impacto positivo nas suas vidas, dando dicas, ajudando a compreender a si e os erros no relacionamento. Se os manuais chegaram nesse momento da sociedade brasileira, o cenário político do país mudou bastante e os discursos de tolerância deram lugar à polarização político-ideológica, ao ódio do diferente, ao ataque frontal à ideologia de gênero e ao Estado laico.

    Os conselhos afetivos ganharam novos contornos, com segmentação religiosa, guiada pela fé sob orientação de suas lideranças espirituais. Além de produzirem livros de aconselhamento, esses grupos sociais agem coletivamente, buscando enfrentar as dificuldades de relacionamento em cultos e liturgias, não se restringindo à autoajuda aos devotos. A concepção de que a sociedade contemporânea é marcada pelo individualismo, dando os contornos dos best-sellers voltados para o eu, desenvolvendo competências próprias, técnicas de si, gerenciamento das emoções, diferenciar-se-ia da ação comunitária, com a articulação coletiva inclusive para atuação política visando ao enfrentamento público de problemas construídos como privados, inclusive com manifestações contra a abordagem pelas escolas de temáticas relativas a gênero e sexualidade. De modo geral, a intolerância estende-se às identificações não hegemônicas.

    Embora os manuais analisados nesta pesquisa tenham se apresentado com um discurso liberal sobre a mulher moderna, inteligente, poderosa, atraente e sedutora, o receituário que estabeleciam se distanciava de uma perspectiva reflexiva, por meio de uma abordagem normativa. Com dicas de âmbito privado e íntimo, eles reproduziam os lugares fixos de gênero. O sucesso de vendas obtido naquele contexto político-social parece desafiado na atual realidade brasileira, mas as estratégias de marketing possuem instrumentos para aferir essas mudanças, e estimular novos produtos.

    O livro que a Prof.ª Rossana nos oferece é uma obra muito original, escrita para nos encantarmos com as descobertas desta leitura. É uma viagem rica e saborosa pelas formas como os manuais se propõem a influenciar as relações de gênero em uma perspectiva individualizante mantida no âmbito privado. A autora mostra como as mulheres entrevistadas reagem coletivamente à leitura desses conselhos, articulando grupos de discussão e de apoio mútuo para lidar com algo que foi proposto como autoajuda. Identificar cada significado dessa ação criativa das leitoras é a revelação desta pesquisa desenvolvida com tanta sensibilidade, pela escuta atenta como método e pelo conhecimento partilhado sobre o tema.

    Fica aqui o convite para essa aventura sobre como mulheres manuseiam conselhos afetivos e emoções com imaginação.

    Maria da Gloria Bonelli

    Professora sênior do Departamento de Sociologia

    da Universidade Federal de São Carlos

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    1

    interpretando AS EXPERIÊNCIAS FEMININAS NA PERSPECTIVA DE GÊNERO

    1.1 – Do Segundo Sexo aos Problemas de Gênero: desnaturalizando

    as experiências femininas

    1.2 – O gênero na perspectiva sociológica de Raewyn Connell 

    1.3 – construindo a interlocução com as leitoras

    1.3.1 – Escolhendo os manuais de autoajuda

    1.3.2 – A seleção de leitoras entrevistadas

    1.3.3 – A elaboração das entrevistas

    2

    DE SAMUEL SMILES AOS BEST-SELLERS CONTEMPORÂNEOS: O FENÔMENO DA LITERATURA DE ACONSELHAMENTO

    2.1 – GÊNERO, AUTOAJUDA E TRABALHO DAS EMOÇÕES

    2.2 – ACONSELHAMENTO AFETIVO E CULTURA DE MASSA

    2.3 – ACONSELHAMENTOS À BRASILEIRA

    3

    CONSELHOS PARA GERENCIAR AS EMOÇÕES: ANALISANDO OS MANUAIS DE AUTOAJUDA

    3.1 – AS DIFERENÇAS BIOLÓGICAS ENTRE OS SEXOS NA NARRATIVA DO CASAL PEASE

    3.1.1 – Justificando as diferenças sexuais

    3.1.2 – O eixo antifeminista da narrativa

    3.1.3 – A biologização da cultura e a culturalização da biologia

    3.1.4 – Sexualidades e diferenças sexuais

    3.2 – A MULHER INTELIGENTE, DE CARTER E SOKOL

    3.2.1 – Receitas para um amor sem dor: a linguagem terapêutica como

    guia sentimental

    3.2.2 – Como devem agir as mulheres inteligentes

    3.2.3 – Investimento e retorno: princípios racionais do amor

    3.2.4 – Mulher moderna, mas não supermulher

    3.3 – AS MULHERES PODEROSAS DE SHERRY ARGOV

    3.3.1 – Transformando a boazinha em poderosa

    3.3.2 – Linguagem racional e trabalho das emoções 

    3.3.3 – Objetos de desejo e consumo: o negócio dos relacionamentos

    3.3.4 – Boazinha, poderosa, mãe, amante, falsa ingênua: os modelos

    femininos de Argov

    3.3.5 – Novos rótulos, padrões bem conhecidos

    3.4 – TÉCNICAS DE SEDUÇÃO: OS CONSELHOS DO COACH

    3.4.1 – O dicionário da Sedução

    3.4.2 – Os caminhos da sedução

    3.5 – ACONSELHAMENTOS AFETIVOS, GERENCIAMENTO EMOCIONAL

    E IMPLICAÇÕES DE GÊNERO 

    4

    AS EXPERIÊNCIAS FEMININAS

    4.1 – A BUSCA DOS MANUAIS PELAS LEITORAS

    4.2 – AS EXPERIÊNCIAS DO GRUPO 1: ACONSELHAMENTO E GERENCIAMENTO EMOCIONAL

    4.2.1 – A condução racional dos sentimentos

    4.3 – AS EXPERIÊNCIAS DO GRUPO 2: ACONSELHAMENTOS RESSIGNIFICADOS 

    4.4 – NARRATIVAS BIOGRÁFICAS E TRAJETÓRIAS DE GÊNERO

    4.5 – a análise multidimensional do gênero 

    5

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    REFERÊNCIAS

    ÍNDICE REMISSIVO

    INTRODUÇÃO

    Uma capa rosa, uma mulher falando ao telefone e segurando uma fotografia de um rosto masculino. Enquanto a fila das pequenas compras do supermercado não avançava, aquele livro me despertou curiosidade: O que toda Mulher Inteligente Deve Saber, de Steven Carter e Julia Sokol. Um livro que informava ter como tema fundamental a autoestima nos relacionamentos amorosos.

    Ao folhear o livro, houve uma inquietação com seus tópicos. Para quais mulheres este livro se direciona? E o que poderia ter se encerrado na fila do supermercado tornou-se motivo de mais curiosidade. Encontrado o arquivo disponível na internet, li o livro por inteiro. Em seguida, fiz uma busca por livros com títulos similares. Todos estavam classificados entre livros mais vendidos no Brasil. Naquele momento, havia mais do que curiosidade: nasceu o tema deste estudo.

    A mesma capa que despertou a atenção de inúmeras leitoras foi o marco inicial desta pesquisa. Por ter bastante interesse em refletir sobre discursos direcionados às mulheres ao longo da história, os tópicos daquele livro alimentaram meu interesse em pesquisá-los. Busquei informações sobre os manuais de autoajuda com características similares, pesquisas sobre o assunto, explicações sociológicas sobre o tema, e assim surgiram as primeiras questões de investigação.

    Após a análise inicial, selecionei quatro manuais para estudo, todos eles classificados entre livros mais vendidos, os chamados best-sellers: Por que os Homens Fazem Sexo e as Mulheres Fazem Amor?, de Allan Pease e Barbara Pease; O que toda Mulher Inteligente Deve Saber e Os Segredos das Mulheres Inteligentes, de Steven Carter e Julia Sokol¹; Por que os Homens Amam as Mulheres Poderosas?, de Sherry Argov.

    Adentrar no universo da literatura de aconselhamento significava compreender os modelos generificados de individualidade e emoções subjacentes ao conteúdo publicado nos livros. Se interessava a um grande número de mulheres, no Brasil e em outros países, algo precisava ser identificado, para além da força editorial desses livros. Aproximar-me das experiências das leitoras foi fundamental para acessar as questões vivenciadas pelo público consumidor dos manuais e quais motivações mobilizavam a grande procura. Estudar os manuais de aconselhamento best-sellers me possibilitou perceber experiências de feminilidade vivenciadas em diferentes contextos do Brasil, caracterizadas por conquistas de espaços em vários âmbitos e, por outro lado, dilemas relacionados às expectativas sociais direcionadas às mulheres. Da análise das emoções, cheguei a práticas e discursos generificados sobre e para as mulheres, de modo a contextualizar como se produzia o sofrimento amoroso, a busca por evitar a dor do amor e como os manuais serviam como um socorro emocional para as leitoras.

    Ao estudar a temática da autoajuda na perspectiva de gênero, a complexidade do tema foi se revelando, pois este mesclava influências de discursos terapêuticos, feminismo, mercado, cultura de massa, noção de indivíduo, requerendo mediações que pudessem explicar sua difusão no recente contexto brasileiro, seus lugares no topo das listas de vendas.

    Algumas pesquisas desenvolvidas no Brasil que discutiam o tema da autoajuda em sua articulação com gênero auxiliaram nas primeiras reflexões, a exemplo de Alves (2005), Castro (2009), Mocci (2006) e Rudiger (2010). Com elas, reuni elementos para discutir os pressupostos de gênero sugeridos pelos manuais, o contexto que explicava sua difusão, bem como as implicações decorrentes das concepções de feminilidade veiculadas pelos livros, principalmente considerando o modo de incorporar o diagnóstico e os conselhos por eles oferecidos.

    Uma vez que havia um certo número de pesquisas concentradas na análise dos manuais, considerei necessário incluir o público de leitoras no estudo. Era necessário identificar quem constituía o público dos manuais, quais as motivações apresentadas para a leitura deles, quais usos faziam dos livros, se havia identificação com os conselhos sugeridos pelos autores e autoras, entre outras questões que norteavam minha curiosidade. Assim, realizei 23 entrevistas com leitoras de diferentes estados do Brasil e construí um perfil com dados das entrevistadas, indicando escolaridade, profissão, origem regional, raça, classe, faixa etária, estado civil, orientação sexual. Os dados obtidos expressam o perfil das entrevistadas, e, embora não haja pretensão de generalizá-los ao conjunto de leitoras desse segmento, sugiro que há características que provavelmente se manifestariam em maior escala, a exemplo da faixa etária prevalecente, ingresso no ensino superior e profissões de carreira, estado civil e classe social.

    Por meio do roteiro de perguntas elaborado para as entrevistas, busquei identificar as motivações das leitoras ao procurarem o manual de aconselhamento, além de abordar questões sobre diferenças e estereótipos de gênero, emoções, comportamentos, no intuito de pensar as experiências de gênero em seu caráter multidimensional.

    Optar por ouvir as leitoras teve importância fundamental para pensar na difusão dessa literatura com base nas trajetórias de gênero. Os depoimentos forneceram elementos para analisar o contexto que justificava a grande busca por esse ramo editorial, considerando os repertórios de gênero das entrevistadas e os contextos vivenciados, caracterizados em sua maioria pelas conquistas de posições sociais em termos profissionais e de escolaridade.

    Os manuais de autoajuda para mulheres constroem narrativas nas quais se abordam as dificuldades contemporâneas de estabelecer relacionamentos afetivos duradouros, para isso partindo de pressupostos que consideram diferenças comportamentais entre homens e mulheres, recomendando a estas a adoção de técnicas de gerenciamento emocional que, se seguidas adequadamente, resultariam em sucessos amorosos. Embora haja algumas especificidades nas abordagens de cada um dos manuais analisados, o pano de fundo são as receitas para evitar o sofrimento amoroso. Segundo as técnicas sugeridas, falta às mulheres o uso racional dos sentimentos e análises mais ponderadas sobre o homem pretendido, antes de se deixarem tomar pelas emoções. Os aconselhamentos são constituídos por argumentos que privilegiam a heterossexualidade, de modo que há sempre uma mulher em busca de um relacionamento com um homem. Aquilo que se configura como um padrão hegemônico das relações de gênero aparece nos manuais como características inerentes aos comportamentos masculinos e femininos. Um dado modelo de feminilidade e de masculinidade acaba pressupondo um arranjo emocional específico. Ao mesmo tempo que esse arranjo é reiterado, todas as chaves que livrariam as mulheres do sofrimento amoroso levam ao modelo heteronormativo. Mais que isso: responsabilizam o comportamento feminino pelo fracasso nos relacionamentos. Estão excluídas desse imaginário outras possibilidades afetivas, não necessariamente heterossexuais. O foco nesse modelo heterossexual, desse modo, invoca aspirações sociais mais complexas, e, na análise, buscamos compreender essa dinâmica. Se é um relacionamento afetivo, por que o sofrimento seria especialmente feminino? Por que as preferências masculinas são apresentadas como o parâmetro para a mudança comportamental das mulheres – e as masculinidades nem sequer são problematizadas? Pensar essas experiências na perspectiva aqui proposta significa observar não só o gênero produzido socialmente, mas também a desigualdade constituinte nos modelos de relacionamentos considerando o contexto empírico tratado. Se os manuais mencionam as mulheres poderosas, independentes, inteligentes, por que caberia a elas se ajustarem para contemplar os modelos de masculinidade? Seguir a trilha dos depoimentos das entrevistadas permitiu observar como o gênero era vivenciado por essas mulheres e por que as escolhas amorosas passavam por racionalizar as emoções.

    Ao estudar essa temática foi necessário observar um conjunto de influências históricas e culturais que constitui o discurso de autoajuda em uma perspectiva de gênero. Cultura terapêutica, noções de individualidade, feminismo, racionalização, mercado dos relacionamentos são elementos que, em conjunto e ressignificados, ajudam a explicar a difusão da literatura de aconselhamento afetivo para mulheres no Brasil, processo que se consolidou nas últimas décadas.

    Em se tratando de livros que são, em sua maioria, de autoria norte-americana e traduzidos para o português, houve a necessidade de situar o contexto brasileiro nesse circuito de comercialização de produtos que tratam dos relacionamentos afetivos, sendo os manuais de autoajuda uma das opções oferecidas.

    A pesquisa foi construída numa perspectiva teórica feminista. Nesse sentido, as concepções de gênero são compreendidas enquanto históricas e culturais, portanto sujeitas a modificações

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