Livro em Roda: Elos entre Aldeia, Escola Indígena e Universidade
By Cacá Fonseca, Laura Castro and Márcio Junqueira
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Livro em Roda - Cacá Fonseca
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIDADE
PREFÁCIO
Pedagogia da roda
Trinta raios convergem, no círculo da roda
E pelo espaço que há entre eles
Origina-se a utilidade da roda.
A argila é trabalhada na forma de vasos
E no vazio origina-se a utilidade deles
Origina-se a utilidade da roda
Abrem-se portas e janelas nas paredes da casa
E pelos vazios é que podemos utilizá-la
Assim, da não-existência vem a autoridade
Da existência, a posse.
(Tao Te King, tradução de Norberto de Paula Lima)
Livro em Roda/Livro Vivo/Livro da Floresta/Livro de Saúde são nomes projéteis que jamais abolirão o acaso. Ninguém sabe o que lhe atingirá. Lacan, teórico da letra e um dos meus mestres, escreveu: O estilo é o homem, e acrescentaríamos à fórmula, somente para alongá-la: o homem a quem nos dirigimos?
(LACAN, 1996, p. 14).
O prazer de estar junto foi o que senti lendo este Livro em Roda, feito para cair no colo de quem quer continuar a brincadeira do passa-anel.
Mas a quem se deve a transmissão? À trela-letra, o fio que liga tudo a tudo… E que só a tradução e a leitura clareiam no lusco-fusco da cópula. A esse método outra mestra, Llansol, deu as formulações mais precisas, quando escreveu Onde Vais, Drama Poesia? (2000). Uma linhagem que não posso deixar escapar, ao escrever sobre este livro que ora prefacio e que passa pela poesia Pau-Brasil (Oswald de Andrade). Ao invés de legislação, o ensino das literaturas indígenas e africanas e brasileiras vai pelos Roteiros… Roteiros… Roteiros…
O ato com seus reflexos caleidoscópicos, isso eu vi neste livro que diz dessa escola Pataxó, Kijetxawe Zabelê, no Sul da Bahia, na aldeia Kaí, firmada justamente no ensino da mestra Zabelê.
Uma pedagogia libertadora não se preocupa com o ser ou não ser
da metafísica ocidental, mas com o quem me chama
da desconstrução, da partida, do movimento em intenção e extensão. Essa liberdade de consciência e esse dom poético, que, com o convívio estético, em vez da melancolia e da representação ou do discurso sentado, trazem a alegria da presença, é o ensino que os autores deste livro deixam nas experiências pedagógicas relatadas.
Essa pedagogia poderia também ser chamada de drama-poesia
. Assim como cada prática de ensino que se mostra neste livro: uma roda de gente bonita passando suas pedrinhas do método, que se inventa a cada vez. Método sem método?
O tema deste livro indica, no entanto, a consolidação de um método. Por isso fiquei muito feliz com o convite para escrever seu prefácio. Lendo o Livro em Roda, vislumbrei o devir Literaterras (nome de um núcleo de pesquisas em que as autoras Cinara Araújo e Cynthia Barra também trabalharam na UFMG). Senti o compromisso com esse nome com que a letra foi designada por Lúcia Castello Branco, a partir do termo Lituraterra de Jacques Lacan. Essa letra/terra, em suas dimensões verbivocovisuais, foi realmente praticada na confecção de muitos livros, naquele espaço sob os riscos de Lúcia, Sônia, Inês e quantos pesquisadores mais desejaram a experiência literária. Nosso agrupamento transdisciplinar, afinal, deu-se em torno desse conceito universal de letra, que alcançou terras e línguas indígenas de todas as regiões do Brasil. No curto período de duração dessa escola dentro da escola (1994 a 2016, se contarmos desde a primeira publicação no rumo da diferença até o encerramento das atividades oficiais do núcleo Literaterras na UFMG), editamos mais ou menos uns 130 livros.
Quando me refiro à prática e ao ensino da letra como universais, falo no sentido cósmico (como o de Galáxias, o de Coup des dés.). Sim, há algo de mítico nesse conceito de letra apropriado por nós. Transcende a racionalidade ancorada na sociedade a que pertencemos. Assim, de forma livre e inconsequente, fizemos da prática editorial uma forma de escrita e um processo tradutório, para além das línguas envolvidas e sem compromisso com as tradições acadêmicas (a perspectiva é transdisciplinar, o que não exclui o rigor). Com Llansol, optamos por trabalhar com as textualidades extraocidentais (quem são os autores? Loucos
, Negros
, Índios
).
O que esses extraocidentais possuem em comum? Ou melhor, o que os congrega na comunidade? O gosto pelos livros, no que estes contêm de mais vivo: o movimento. As figuras atuantes nesses movimentos, como, desde Mallarmé, encaramos os livros, não são menos vivas porque não se reproduzem pelo sexo, mas são imortais, ressuscitadas a cada leitura.
As experiências tão vivamente narradas neste livro lindo nascido no sul da Bahia, para além das Minas Gerais, mostram-me essa prática da letra, na sua litoralidade, estendidas como uma rede sem fim, chegando também ao Acre, ao Pará… As águas cristalinas das Minas sempre refrescando.
Penso agora na voz de Milton Nascimento, um lamento, quando ele canta Minas/Paula e Bebeto
(no disco MINAS de 1975), passando pelas montanhas, pelo Jequitinhonha… E, mais além, desde Portugal, da África, navios negreiros… Fragmentos de tudo quanto é lado… E os improváveis encontros aqui, nas terras de além-mar, com outras formas de escrita.
Temos que aprender a ler.
Maria Inês de Almeida
Coordenadora do Laboratório de Interculturalidade da UFAC
Referências
LACAN, J. Écrits. São Paulo: Perspectiva, 1996.
LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, drama-poesia?. Lisboa: Relógio D’Agua Editores, 2000.
NASCIMENTO, Milton. Minas. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1975.
Sumário
INTRODUÇÃO 11
Márcio Junqueira, Laura Castro, Cacá Fonseca
1
O TEMPO E O LIVRO: MIRADAS DE UM PROCESSO CRIATIVO NA ALDEIA KAÍ 13
Laura Castro
2
PEDAGOGIAS, POLÍTICAS E ENCANTAMENTOS: FLUIÇÕES DO SEMINÁRIO ITINERANTE EDIÇÕES ZABELÊ
27
Clarissa Santos Silva
3
LIVROS – PLURAIS: ENCONTRO, TROCA E METAMORFOSE 37
Cacá Fonseca
4
AS POTÊNCIAS DO ALFABETO, DA PAISAGEM E DA RESISTÊNCIA PATAXÓ NO EXTREMO SUL DA BAHIA 51