Uma nova (des)ordem organizacional
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Uma nova (des)ordem organizacional - Marco Ornellas
Capítulo 1
Ressignificando o futuro
Imagine um shopping center no horário do almoço. Em qualquer lugar do mundo, o cenário é o mesmo. Muita gente circulando. O barulho das conversas encobre o som ambiente, enquanto o aroma das mais diferentes comidas se mistura no ar. Em horário de pico, encontrar uma mesa vazia é um verdadeiro desafio. Sozinho ou em grupo, não há tempo a perder. É escolher a opção e se acomodar o mais rápido possível.
Imagine que, para ter mais sossego e até conforto, você e um grupo de colegas fujam da praça de alimentação e escolham um restaurante. Você fica à espera do garçom. Nada. Onde ele está? Procura e não vê nenhum circulando. Há somente uma pessoa no balcão, completamente alheia ao movimento. Você olha para os lados e não encontra nem o cardápio. Nas mesas próximas, algumas pessoas conversam completamente despreocupadas, enquanto outras já saboreiam seus pratos. O cheiro está delicioso! Que fome! E nada do garçom ainda. A pessoa do balcão também continua distraída. Nada tira mais a paciência do ser humano do que a fome. Então, você se levanta e vai até lá. Que outra solução há?
O atendente não fala a sua língua, nem mesmo inglês ou espanhol. Na tentativa de se comunicar, já com o desespero comprimindo o estômago, você apela para a mímica. Tenta reproduzir um cardápio, faz gestos que indicam fome, comida… Nada. A pessoa continua olhando para você visivelmente confusa, murmurando poucas palavras ininteligíveis. Você volta para a sua mesa completamente desolado. Parte dos seus amigos ri, outros mostram-se mais nervosos. Que descaso! Que loucura! O que é que está acontecendo? Que serviço é esse?!
Uma família, então, se acomoda na mesa ao lado. Você e seus amigos observam sem dar um pio. O pai tira o celular do bolso, coloca-o sobre a mesa e mexe mais um pouco nele, enquanto faz perguntas, naquela língua estranha, para os filhos e a esposa. Então, após alguns minutos, coloca o celular de volta no bolso e continua a conversa em família. Estava só mandando mensagens? Compartilhando fotos e impressões no WhatsApp ou no Instagram? Logo você descobre que não. Em alguns minutos, eles se levantam, retiram suas bandejas e passam a degustar alegremente refeições que exalam uma fumacinha perfumada pelo ambiente. Surreal?
Pois essa história é real e aconteceu, talvez de uma forma um pouco menos dramatizada, com o COO de uma startup brasileira durante uma visita à China. A cena se passou em um shopping center de Shenzhen, conhecido destino de compras de uma das cidades mais tecnológicas do mundo. O coitado do atendente, que só falava mandarim, ficou desbaratinado com a saraivada de perguntas, seguidas de mímicas, daquele grupo de turistas. Somente ao ver a família escaneando o discreto QR Code deixado na mesa é que os brasileiros entenderam como se faz um pedido no país de Xi Jinping. Sem garçom, sem cardápio físico, sem rolo de dinheiro, cartão de crédito ou confusão para pagar a conta. Me senti um homem das cavernas visitando o futuro
, resumiu, no artigo Por que 9 dias na China me deixaram apavorado…
, Lucas Marques¹.
O dicionário Houaiss define futuro como um substantivo masculino que representa, por exemplo, o tempo que se segue ao presente
ou o conjunto de fatos, acontecimentos relacionados a um tempo que há de vir; existência futura; destino, sorte
. O futuro sempre foi objeto de curiosidade da humanidade, que desde a Grécia Antiga procura formas de antecipar os acontecimentos que estão por vir. Se podemos dizer algo sobre o século XXI, é que nunca foi tão difícil prever o que virá pela frente. Daí ter virado tamanha fonte de ansiedade e depressão.
Nada torna esse futuro mais aterrorizante do que sua velocidade e seu impacto. Parece ter se aliado às máquinas, criação do próprio ser humano, para roubar nosso sossego e nos tornar… substituíveis, em uma escala jamais vista. Viramos, praticamente da noite para o dia, se considerarmos o ritmo das evoluções humanas até então, seres insignificantes. Ou inúteis, como diz o professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, autor dos bestsellers Sapiens e Homo Deus, Yuval Noah Harari. Em artigo publicado no jornal inglês The Guardian², ele diz que, em um mundo sem trabalho, essa é a nova classe de pessoas que deve surgir até 2050. Pessoas que não serão apenas desempregadas, mas que não serão empregáveis
, explicou o historiador.
Em Shenzhen, como se viu, os humanos já não precisam mais gastar sola de sapato para servir os clientes. Alguns toques no celular foram suficientes para eliminar uma função existente há séculos. Se essa moda se alastrar (e vai), as futuras gerações só saberão o papel exercido por um garçom pela literatura.
O FUTURO NÃO É MAIS COMO ERA ANTIGAMENTE
Não pense que o futuro só chegou àquela parte do mundo. Na zona oeste da cidade de São Paulo, mais especificamente no bairro do Itaim Bibi, já existe um mercado 100% autônomo. As portas do estabelecimento são destravadas com o aplicativo, por meio do qual o cliente também paga as compras. No Zaitt, não há interação humana, nem monetária, assim como acontece na Amazon Go, desde 2018, e também em outros estabelecimentos ao redor do mundo.
Essa revolução silenciosa também já acontece na indústria. Segundo o Mapa do Trabalho Industrial 2019-2023, elaborado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), as funções ligadas à tecnologia começam a crescer no mercado de trabalho brasileiro, ainda que em um ritmo inferior ao de outros países, devido à baixa intensidade tecnológica nacional³. O mesmo acontece na academia. A Universidade Federal de Goiás⁴ é a primeira do País a ter um curso de graduação em Inteligência Artificial. Com duração de quatro anos, um período longo para o ritmo atual de mudanças, a primeira turma deve se formar em 2023. Até lá, calcula-se que o Brasil terá de qualificar um contingente de 10,5 milhões de trabalhadores⁵, mais do que a população de Portugal, para ocupar posições na indústria.
E, atenção ativistas, esse é um movimento completamente democrático, que não discrimina nacionalidade, gênero, setor, área ou status social. Alcança da base da pirâmide, ou do chão de fábrica, ao topo. O Grupo Habib’s trocou toda a equipe de tecnologia da informação (TI), enquanto a rede de atacado Tenda testou o conhecimento sobre internet, e-commerce e comunicação em tempo real do candidato a diretor financeiro, aquele que zela pelos números e protege o interesse dos acionistas⁶. Na alta liderança, o executivo que não entende de cultura digital, gestão da informação, comunicação e identidade digital, trabalho em rede e segurança de dados recebe agora uma nova classificação, um apelido feio, que denota um defeito
cada vez mais grave. É considerado analógico
e sumariamente substituído. Tão século passado, tão revolução industrial passada.
Parece terrorismo? Pode até ser. Mas será que não estamos apegados demais à segunda Revolução Industrial, rejeitando novas formas de fazer, por adorar, ainda que secretamente ou inconscientemente, o conceito de hierarquia e de especialidades, sem contar a prática orgulhosa do comando e do controle?
Talvez você nem tenha percebido a existência dessa ferida, mas ela existe. Eu acompanho de perto a complexidade e a aflição desse momento nas empresas. Em parte, o faço por curiosidade; em parte, por pura empatia, já que também sou tomado pela mesma angústia. Há mais de duas décadas, trabalho como consultor e sei que esse posto também não está a salvo da extinção. Tenho vivência suficiente para saber que, se ficar parado, posso entrar para a história, como ocorreu com empresas e profissões que, em algum momento, fizeram parte da minha vida, como Kodak, Blockbuster, telefonistas e datilógrafas.
Nessas horas, tento colocar em prática o que ensino. Como faria um designer organizacional, que se preocupa em olhar para fora antes de tomar decisões, mergulho no desafio de desvendar esse futuro e, até meu último respiro como consultor, pretendo ajudar as empresas a desatar esse nó ou a afrouxar, pelo menos, a pressão que recai sobre todos os profissionais – não só os de RH.
Mas como olhar para algo que nunca ninguém viu e saber o que fazer, sem saber o que fazer? Como abrir mão de garantias e certezas nesse mundo competitivo? Como criar valor quando tudo muda o tempo todo?
Decidi deixar o misticismo de lado e mergulhar na Ciência do Futuro. Recorri à Rosa Alegria, pioneira em futurismo no Brasil, além de fundadora e vice-presidente do Núcleo de Estudos do Futuro (NEF), da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Há duas décadas, ela deixou a vida executiva para buscar um novo caminho e optou por algo completamente inusitado: o primeiro mestrado em Futurismo do mercado, na Universidade de Houston (nos Estados Unidos), referência durante anos por incorporar ao currículo disciplinas como métodos intuitivos e modelos de aprendizagem que integram os lados esquerdo e direito do cérebro para entender a realidade.
Com a experiência que tem, Rosa logo alivia a tensão que esse mundo volátil, incerto, complexo e ambíguo – representado pela sigla em inglês VUCA (volatile, uncertain, complex e ambiguous) – provoca ao explicar que a melhor forma de entender o futuro é lembrar que esse é um talento inerente ao ser humano. Nós somos a única espécie com essa capacidade de se deslocar no tempo. O futurismo é uma ciência advinda justamente dessa capacidade, aliada a uma forma estruturada e aplicada na gestão moderna
, esclarece.
De acordo com Rosa, o estudo do futuro não é algo novo. Começou de forma científica, isto é, mais estruturada, na segunda metade do século XX, após a Segunda Guerra Mundial, em um momento em que o mundo, ainda instável, temia um terceiro conflito. Grandes cientistas e pensadores reuniram-se em torno da grande pergunta: qual vai ser o futuro do mundo?
, explica.
A partir desses exercícios estratégicos e de origem militar, passou-se a se estruturar métodos e ferramentas. Aos poucos, surgiram escolas que passaram a difundir essa disciplina, já utilizada por organizações muito avançadas, interessadas em sintonizar-se com o futuro e antecipar-se às mudanças. O futurismo ajuda a estudar o futuro e tirar proveito dele ao aplicá-lo no presente
, diz a especialista, que reforça que nesse mundo VUCA não há nada mais importante do que pensar lá na frente.
Acontece que só conseguimos fazer isso quando desarmamos nosso cérebro reptiliano, que interpreta a mudança como uma ameaça à sobrevivência, e não como o que realmente é: um universo de possibilidades.
ORGANIZAÇÕES REPTILIANAS
Em meu primeiro livro, DesigneRHs para um Novo Mundo, relatei a visão de quinze heads de Recursos Humanos (RH) sobre a área que surgiu com a Primeira Revolução Industrial e foi evoluindo junto com a indústria. Entrevistei profissionais maduros, com pelo menos dez anos de experiência na área, que ocupam cargos de liderança (vice-presidência ou diretoria). Foi consenso a falência do modelo atual e a dificuldade de dar o salto estratégico, tornando-se uma fonte de moléstias no indivíduo e no coletivo. Estou aqui para sustentar um velho que está morrendo. Estou dando eletrochoque, botando marca-passo e fazendo não-sei-mais-o-quê para o coraçãozinho continuar batendo, em vez de sustentar o novo
, relatou-me um entrevistado. Feitas à imagem do seu criador, boa parte das organizações continua operando no modo reptiliano, isto é, resistindo a mudar suas estruturas, seus processos e sua visão de mundo.
Em um mundo VUCA, é preciso abrir mão do controle para enxergar e aproveitar as possibilidades e oportunidades, mesmo que pareçam, em um primeiro momento, desconexas e desordenadas.
Fonte: Imagem em circulação na Internet, autor não localizado
Sedento por mudanças, acompanho diversos grupos de RH, on-line e off-line, e me surpreendi com o uso indiscriminado da palavra inovação
. É um termo da moda, que beira a vulgaridade ao ocultar a busca constante por fórmulas prontas, na esperança de que atitudes do passado, como adaptações e cópias descaradas de benchmarks, alonguem a vida útil das organizações, além do próprio emprego.
Só para deixar claro, refiro-me a criações sem equivalente, sem padrões anteriores. Inovações geram rupturas, entregam valor, geram novos caminhos. Há anos busco essas transgressões dentro dos RHs. Conheço vários profissionais, mais jovens e mais experientes, que alimentam essa ânsia, que vivem inconformados com o modus operandi e… nada! Maldade? Pessimismo?
Para rejeitar essas hipóteses, resolvi sondar informalmente os grupos de que participo, além da base de dados da Ornellas Consultoria. Cheguei a 80 respondentes em um mês de pesquisa. Mais de 60% desse total se compõe de profissionais maduros, com mais de dez anos de atuação. Quase 60% também atua na área de RH. Enquanto 70% dos respondentes confirmaram minha suspeita de que o RH não consegue acompanhar o ritmo das inovações, 74% afirmaram, ainda, que não conseguem investir em soluções próprias, coerentes com suas necessidades e as de seu público-alvo. Menos de um terço desse montante restringe sua atuação às exigências da legislação vigente, enquanto o restante consegue ir um pouco além, copiando fórmulas testadas por empresas consideradas benchmark. A sondagem também mostrou que a liderança é tida como fator primordial para a inovação, além de ser responsável por acelerar ou retardar o ingresso nessa revolução, de acordo com os respondentes.
É por isso que voltei a falar com os líderes que generosamente dividiram sua visão e suas angústias comigo há alguns anos. O papel ideal do RH ainda não mudou. Ser estratégico é um sonho antigo. Talvez agora seja mais urgente e uma questão de sobrevivência
, relatou-me um deles. Outro, que já tira proveito da tecnologia em vários processos e vê mais abertura para o RH em um ambiente de negócios em que as pessoas são estratégicas para a entrega de planos futuros, contou-me que o que emperra a mudança é ainda o apego pelo antigo. "Ainda temos as mesmas demandas,