O Caso Julgado Inconstitucional
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O Caso Julgado Inconstitucional - Eduardo Silveira
CAPÍTULO 1: ONCEITO, FUNDAMENTOS E ALCANCE DA AUTORIDADE DO CASO JULGADO.
1.1 – CONCEITO
CONSTITUI CASO JULGADO a decisão que, tomada em sede do exercício do poder jurisdicional⁴, já não admita recurso ordinário ou extraordinário⁵ (art. 6º da LIDB) e não permita, portanto, a repetição de uma causa já decidida por sentença (art. 29º, nº 5, da CRP e art. 580, CPC Português). Implica necessariamente no atributo de inalterabilidade de decisão judicial, seja da relação material controvertida, caso em que resolve a lide também em relação a terceiros (arts. 55º, 320º e 349º do CPC Português), ou meramente das questões internas do processo (arts. 91º e 620 do CPC Português), quando opera efeitos apenas entre as partes.
O caso julgado formal é, ao mesmo tempo, a qualidade da sentença enquanto ato do Estado, uma vez que respeita a condições procedimentais de formação e validade da relação processual, e o pressuposto de existência do julgado material, que, com o objetivo de estabilizar as controvérsias levadas ao poder judiciário, imuniza os efeitos⁶ da decisão judicial⁷. Significa dizer que os pronunciamentos jurisdicionais passados em julgado ganham autonomia em relação ao processo de cognição que os precederam, operando efeitos concretos protegidos pelo atributo de caso julgado. Não é, portanto, um efeito decorrente da sentença⁸, mas sim, um escudo protetor de suas consequências materiais.
A relação existente entre o respeito à autoridade do caso julgado e o direito fundamental de acesso aos tribunais, além da estreita conexão com os primados da segurança jurídica e da proteção da confiança, revelam que o instituto não se restringe ao âmbito do direito processual ordinário. A disciplina constitucional do respeito à autoridade do caso julgado emerge, dessa forma, dos axiomas primaciais do Estado de Direito.
Na ordem jurídica portuguesa, a tutela do caso julgado em relação tem previsão expressa do nº 3, do art. 282 da Constituição, se bem que restrita a sua preservação em caso de posterior decisão de acolhimento de inconstitucionalidade da lei de fundamento. Sem embargo, sua essência pode ser extraída do atributo de soberania (art. 110º e 111º da CRP) que predica a função jurisdicional e de sua supremacia quanto à guarda da ordem jurídica (art. 202º e 205 da CRP). Decorre, igualmente, da própria substância o direito de acesso aos tribunais, a teor o que expressamente estabelece, nomeadamente, o art. 2º da Lei Adjetiva Civil Portuguesa.
1.1.1 – A TUTELA DO CASO JULGADO NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS.
A proteção do caso julgado é marcante no constitucionalismo brasileiro desde o início do século passado.
Em tempos remotos, a Constituição do Império de 1824 não trouxe menção expressa à tutela do caso julgado. Entretanto, seguindo os princípios dos movimentos liberais da época, estabeleceu o alicerce do instituto em causa ao adotar, como compromissos primaciais, a inviolabilidade dos direitos civis a segurança do indivíduo e da propriedade (Art. 179, caput) e a proibição de retroatividade da lei (Art. 179, III). A Constituição Republicana de 1891, de fortíssima influência norte-americana, também foi silente quanto à estabilidade das decisões judiciais. Entretanto, no art. 72, assegurou a brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, os quais, como se verá, formam o núcleo da dignidade humana, axioma congênito do imperativo de segurança jurídica. O Constituinte Republicano também reeditou a vedação à anterioridade da lei penal e introduziu na ordem jurídica brasileira os princípios da legalidade (Art. 72, § 1º) e da igualdade (Art. 72, § 2º) e, dessa forma, avançou um pouco mais na busca de confiabilidade dos atos estatais em relação aos particulares.
Foi com a Carta de 1934 que deu abrigo constitucional à coisa julgada material através do art. 113: lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada
. A autoritária Carta de 1937 suprimiu a previsão, que re-apareceria, in verbis, na Constituição democrática de 1946. As Cartas de 1967, 1969⁹ e 1988 mantiveram o preceito sem qualquer alteração (Arts. 141 §3º, 150 §3º e 153 §3º, respectivamente). A atual Constituição repete o texto das anteriores no art. 5º, XXXVI.
1.1.2 – O CASO JULGADO NA JURISPRUDÊNCIA DO STF.
A jurisprudência tradicional do Supremo Tribunal Federal reconhece a força da autoridade do caso julgado como expressão dos ideais cimeiros de segurança jurídica e proteção da confiança, indispensáveis ao Estado Democrático de Direito¹⁰. Decorrido o prazo decadencial de ajuizamento da medida rescisória prevista pelo legislador ordinário como único meio apto à destruição do julgado, a jurisprudência do órgão jurisdicional de topo fala em coisa soberanamente julgada
(RE 594350)¹¹.
A firmeza do posicionamento adotado pela Suprema Corte Brasileira foi, contudo, suavizada em função da rediscussão do alcance da coisa julgada em contraposição ao axioma constitucional da moralidade pública e do macro axioma da dignidade da pessoa humana¹². O primeiro colocou em causa a força da autoridade da res judicata em decisões baseadas em laudos periciais incorretos emitidos em sede de processo de desapropriação, determinantes ao pagamento de indenizações muito superiores às realmente devidas. O segundo diz respeito às demandas de reconhecimento de paternidade julgadas improcedentes por falta de prova antes do surgimento do exame de DNA, atualmente imprescindível à resolução do mérito de questões dessa natureza. Através do exercício de ponderação, a tese da relativização da coisa julgada material ganhou espaço através do sopesamento entre, de um lado, os macro princípios da dignidade humana e da justiça e, de outro, o primado da segurança jurídica¹³ como axioma cimeiro do Estado de Direito¹⁴.
Na doutrina, o princípio da constitucionalidade protagoniza os questionamentos acerca da força do julgado em casos de violação direta ou indireta da Constituição por uma decisão judicial transitada em julgado, considerada posteriormente desconforme e sede de controle de constitucionalidade.
1.2 – OS FUNDAMENTOS ENDÓGENOS DO CASO JULGADO.
O respeito à autoridade do caso julgado é uma característica indispensável ao Estado de Direito na medida em que representa a materialização (i) do direito fundamental de acesso aos tribunais e suas decorrências, (ii) da prerrogativa primacial de salvaguarda dos direitos do cidadão, (iii) da estabilização dos conflitos e (iv) da confiança legítima depositada pelo cidadão na palavra do Estado. Nessa condição, no que diz respeito à atuação dos órgãos jurisdicionais, a autoridade do caso julgado protege a própria sindicabilidade de direitos eventualmente violados uma vez que confere à sentença efetividade definitiva.
Por outro lado, fora do âmbito do processo, assegura a higidez da ordem jurídica, dependente que é do respeito aos predicados de unicidade e coerência, condição de validade de todas as decisões públicas emitidas dentro de seus limites.
A presente rubrica cuida dos fundamentos próprios da autoridade do caso julgado em relação ao ambiente em que atua, ou seja, da sua condição de pressuposto para o exercício da função jurisdicional dos atos jurisdicionais. O axioma central da segurança jurídica e seus afluentes serão tratados em sede própria (vide infra, capítulo II)
1.2.1 – A IMPORTÂNCIA REFORÇADA DA JURISDIÇÃO COMO FATOR DE ESTABILIDADE.
Nos dias atuais, designadamente em função das transformações no direito constitucional ocorridas no segundo pós-guerra, a previsibilidade que caracteriza o primado da segurança emerge cada vez menos da lei e mais da atuação de juízes e tribunais¹⁵.
Na Alemanha devastada que emergiu no final da segunda grande guerra, verificou-se uma intensa produção normativa a respeito de direitos fundamentais que, juntamente com a facilidade de acesso direto do cidadão ao Tribunal Constitucional, resultaram na altura numa ampla sindicabilidade desses direitos. Por outro lado, nas situações de vazio legislativo, a doutrina germânica cuidou da tutela dos direitos fundamentais protegidos pela Lei de Bonn através da tese da aplicabilidade direta dos direitos fundamentais constitucionais, nomeadamente no âmbito das relações laborais. Por outras palavras, a atuação do Tribunal Constitucional Alemão deu origem a um farto repositório de decisões de forte influência nos ordenamentos europeus e no direito brasileiro, nomeadamente em relação à relevância da tutela judicial dos direitos fundamentais.
O Estado social, que emergiu num cenário de tensões, crises e disputas, ficou caracterizado pela expansão sem precedentes do papel do legislador, pela atuação intensa do executivo na efetivação dos direitos sociais legalmente introduzidos na ordem jurídica e, por conseguinte, do reforço do controle judicial da atividade pública. Todos esses fatores imbricados resultaram no surgimento de um estado-juiz ativo, marcado, nos dias atuais: i) pela importância crescente da tutela jurisdicional na garantia da ordem pública¹⁶ em função da litigiosidade originada pela abundância de instrumentos normativos (legais e infralegais); ii) pelo consequente protagonismo do Poder Judiciário como promotor da concretização de direitos fundamentais prestacionais frustrados pela atuação da Administração¹⁷, incapaz de atender a demanda imposta pelo legislador; iii) pela judicialização da política seguida da politização da atividade jurisdicional e; iv) pelo aumento das expectativas depositadas pela sociedade na atuação Poder Judiciário. Tais condições deram causa ao deslocamento do foco da fundamentação das decisões emitidas por juízes e tribunais, cada vez mais distante de critérios essencialmente jurídicos. A consequente relativização da força e do significado do direito positivo por juízes e tribunais promoveu, igualmente, uma sobrevalorização da hermenêutica como método de aplicação do direito, dando à pessoa do intérprete uma maior importância na determinação do conteúdo do direito. Dessa forma, a objetividade da lei como parâmetro de atuação de juízes e tribunais passou a ceder lugar a decisões caracterizadas por alta carga de subjetividade. Por conseguinte, isso significou o surgimento de uma jurisprudência instável.
No Brasil, tome-se como exemplo dessa atuação cambiante o paradigmático caso da discussão sobre a capacidade ativa para cobrança do imposto sobre serviços (ISSQN, já mencionado acima), de competência municipal. Discutia-se a que ente tributante empresas com sede em um dado município, mas prestadoras de serviços em outros, deveriam recolher o tributo (capacidade fiscal ativa). A jurisprudência brasileira era sólida no sentido de outorgar ao poder local onde efetivamente ocorrera a prestação a capacidade de cobrar a exação¹⁸. Nada obstante, quando, a bem desse entendimento, os contribuintes adotavam tal orientação jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça, órgão responsável por uniformizar a jurisprudência infraconstitucional, modificou radicalmente o entendimento e fixou o município sede do contribuinte como competente para a cobrança do imposto¹⁹, frustrando a confiança legitimamente depositada pelos contribuintes.
O HC 126.292²⁰ ,por sua vez, demonstra o grau de descolamento dos tribunais brasileiros em relação ao direito decidido. No caso, o plenário do STF, à revelia do que dizem a Constituição e o Texto do Código de Processo Penal e do entendimento jurisprudencial até então adotado pelo próprio Tribunal, considerou ser admissível o cumprimento da pena privativa de liberdade antes da formação definitiva da culpa pelo trânsito em julgado de sentença penal condenatória. A decisão, por não ser vinculante, já foi rejeitada por alguns juízes de base e ministros da própria Corte Suprema, causando uma enorme incerteza na sociedade e violando, via de consequência, o imperativo de isonomia que submete todas as funções do Estado.
Portanto, a história demonstra que, desde o surgimento do Estado Social, a atividade jurisdicional sofreu uma mudança de paradigmas, privilegiando a realização da justiça²¹ como axioma humanístico. Nessa perspectiva, a crítica que parte da doutrina²² dirige à intangibilidade do caso julgado ganha medida em que a sociedade exige a concretização de direitos protegidos pela Constituição, mas nem sempre realizados pelas outras funções do Estado, o que resulta na atuação fortemente ativista do juiz.
Contudo, esse cenário, ao contrário do que pretendem demonstrar as teses em causa, reforça a necessidade de valorização da autoridade do caso julgado como fator estabilização dos conflitos, nomeadamente diante da fluidez que marca a tutela jurisdicional nos dias de hoje. Na medida em que o poder do Estado se faz mais presente pela atuação dos juízes, mais importa assegurar a efetividade de seus pronunciamentos e a previsibilidade de suas decisões dentro de um sistema de axiomas que privilegie a coerência e a unicidade.
1.2.2. – A QUESTÃO DO CONFLITO
ENTRE SEGURANÇA JURÍDICA E JUSTIÇA COMO FUNDAMENTO DA RELATIVIZAÇÃO DO CASO JULGADO.
Sob a batuta da Constituição de 1988, a ordem jurídica brasileira, até então fruto de uma tradição positivista, passou a ser marcada por técnicas legislativas muito próprias da promoção do estado social, repletas de conceitos indeterminados, cláusulas gerais e princípios a la carte. Nesse contexto, parte da doutrina e da jurisprudência²³ passou a proclamar uma necessidade de reflexão
sobre a amplitude da força do caso julgado, alegando não ser legítimo "eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas"²⁴.
O contraponto, promove, contudo, a ponderação entre princípios estruturantes do Estado de Direito, incorporados nas constituições democráticas com fim comum. A querela parte do vício de origem decorrente da confusão entre justiça
, tida como valor individual, e Justiça
(J maiúsculo), desiderato cimeiro do Direito²⁵, valor que subjaz à justa convivência e se traduz, no âmbito do Estado, em paz jurídica. A relação entre segurança jurídica e Justiça é melhor explicada por Carlos Blanco de Morais que, ao contrário de apontar uma pretensa tensão entre segurança jurídica e Justiça, demonstra sua afinidade congênita²⁶. Fato é que o Justo (com J maiúsculo) nasce e se desenvolve em ambiente jurídico que respeite a proteção da dignidade humana através da não instrumentalização do ser humano, designadamente pela preservação de condições heterônomas estáveis de escolha individual.
Direito, enquanto ordem jurídica, é um conceito empírico, sem, portanto, um conteúdo essencial unitário. Entretanto, a definição de direito, nas lições de RADBRUCH²⁷, arranca da ideia do direito, que, por sua vez, incorpora Justiça
(com J maiúsculo) como valor fundacional. E a ideia de Justiça que melhor se concilia no conceito de direito é a que se traduz no valor primacial da igualdade de tratamento e de oportunidade. Portanto, o direito só é Justo na medida que for, também, isonômico e estável. Por outras palavras, para que não corrompa sua essência, a ordem jurídica deve ser imune a instrumentalizações e casuísmos, o que é próprio da ideia de Justiça. Isso somente é possível num ambiente seguro, em que as relações intersubjetivas não fiquem subjugadas à manipulação das condições jurídicas paramétricas.
A teleologia processual, excepcionadas as hipóteses de imputação de penalidade pelo poder estatal, dirige sua atenção à eleição de critérios seguros e racionais de cognição judicial e ao deslinde das demandas judiciais ao desfecho firme e seguro. Muito embora desejável, justiça, individualmente considerada na forma de verdade material, não é conditio sine qua non de validade processual, desde que respeitados os parâmetros exaustivos de formação do juízo estatal. Preclusão, prescrição, decadência e revelia são institutos reveladores nesse sentido. O conceito de justiça adequado à ciência jurídica descabe ao que individualmente pode se considerar justo ou injusto, sentimentos, por natureza, subjetivos e descompromissados com a coerência discursiva.
Assim considerando, os ideais de Justiça, segurança jurídica e dignidade da pessoa formam um tripé de estabilização do Estado de Direito. E, nessa tarefa, não geram sismos significativos com força de danificar seus pilares estruturantes. O processo, ferramenta constitucionalmente desenhada ao exercício do direito de ação e à prestação da tutela jurisdicional, convive com certas situações pontuais de injustiça
, dentro de limites toleráveis de inconformidade.
O instituto da res judicata constitui atributo específico da jurisdição e se projeta na dupla qualidade que tipifica os efeitos emergentes do ato sentencial: a imutabilidade, de um lado, e a coercibilidade, de outro. A proteção constitucional dispensada ao caso julgado material revela-se tão intensa que impede sejam alterados os atributos que lhe são inerentes, a significar, portanto, que nenhum ato estatal posterior poderá, validamente, afetar-lhe a integridade, ainda que seus fundamentos sejam inconsistentes²⁸. Os atributos que caracterizam o caso julgado, notadamente a imutabilidade dos efeitos inerentes ao comando sentencial, recebem da Constituição especial proteção destinada a preservar a inalterabilidade dos pronunciamentos emanados dos juízes e tribunais, criando, desse modo, situação de certeza, de estabilidade e de segurança, e, portanto, Justa, para as relações jurídicas (STF, RE 594.350).