Se eu não te amasse tanto assim
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Paulo Sergio Valle
é um dos nomes mais importantes da MPB. Nas últimas décadas, compôs para os principais intérpretes brasileiros. É autor de centenas de músicas e dezenas de sucessos inesquecíveis cantadas por nomes como: Roberto Carlos, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Herbert Viana, Marcos Valle, Ivete Sangalo, Alcione, Chitãozinho e Xororó, Zezé de Camargo e Luciano, José Augusto entre outros. Atualmente é presidente da UBC - União Brasileira de Compositores. Este é o seu sétimo livro publicado.
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Se eu não te amasse tanto assim - Paulo Sergio Valle
Copyright desta edição © 2008 by Paulo Sergio Valle
Direitos em Língua Portuguesa reservados a Litteris Editora.
ISBN - 978-85-374-0419-5 (2019)
ISBN - 978-85-374-0071-5 (versão impressa)
Conversão: Cevolela Editions
Capa: André Siqueira
440Litteris Editora Ltda.
Av. Marechal Floriano, 143 - Sl. 805 - Centro | 20080-005 Rio de Janeiro - RJ
tel (21) 2223-0030; (21) 2263-3141
litteris@litteris.com.br
www.litteris.com.br
Dedicado a Armando Nogueira,
o irmão mais velho que nunca tive.
Agradecimento:
a Malena, minha mulher.
Índice
Prólogo
O Baterista
O Animal Político
A Disputa
Se Eu Não Te Amasse Tanto Assim...
O Duelo
Libório Ramos
O Garimpo
A Volta
Uma Foto em Três por Quatro
O Segredo
Blood Mary
O Jogador
Epílogo
Prólogo
Recebi a notícia e resolvi conferir. Saí de casa, e dirigi 40 quilômetros em meio a um trânsito atravancado, na direção do Jardim Pernambuco. Na minha cabeça, um endereço: Rua Félix Pacheco, no 333, casa dos meus pais, onde, por muito tempo, entre idas e vindas, eu morei.
Vim pela orla da praia do Recreio dos Bandeirantes e da Barra da Tijuca, e, ao passar pelo Túnel do Joá, foi como se eu houvesse entrado no túnel do tempo, de tal forma que se avivaram na memória os sucessos naquela casa. Primeiro, a prancha de surfe que eu levava todos os dias para o Arpoador; depois, o piano de cauda que meu irmão dividia com minha avó. Ele tocando música popular; ela, com suas velhas partituras, interpretando Bach e Chopin. Lembrei-me do meu pai que, depois de passar o dia todo no seu escritório de advocacia da cidade, fechava-se em seu gabinete domiciliar para dar conta de tantos processos. Lembrei-me de minha mãe e dos meus outros irmãos: Flávio, Ângela e Patrícia.
Avançando no tempo, cantarolei mentalmente as primeiras canções que Marcos e eu fizemos. Quantos artistas essas canções trouxeram àquela casa. Dorival Caymmi, Tom Jobim, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Leni Andrade, Eumir Deodato, Jardel Filho, Vinícius de Moraes, Lula Freire, Agostinho dos Santos, Milton Nascimento, Dori e Nana, Nelson Motta, Francis Hime, Edu Lobo, Gilberto Braga, Carlinhos de Oliveira, Pingarilho, Marcos Vasconcellos, Carlos Lyra e tantos outros. Gente da música, do teatro, da televisão, da literatura, do esporte e de muitas outras atividades. Era uma festa permanente, em que os convidados chegavam sem data nem hora marcada. A porta estava sempre aberta.
Mesmo depois que eu e Marcos nos mudamos, Dorival Caymmi, Tom e Dori continuaram a freqüentá-la, onde permaneciam em longas conversas com meu pai.
A porta só se fechou quando meu pai morreu, e minha mãe teve que vender a casa.
Agora, muitos anos depois, eu vinha me lembrando dessas coisas quando cheguei à Rua Félix Pacheco. Mas, infelizmente, a triste notícia era verdadeira: tinham derrubado a velha casa. Iam construir outra.
Confesso que senti um vazio, porque, embora eu tivesse morado em outros lugares, Tijuca, Copacabana, Flamengo, era para lá que eu sempre voltava quando alguma coisa não dava certo.
Sentei-me na calçada, observando os escombros e, subitamente, me veio à mente: E agora, o que fomos?
. Atrelada a essa pergunta, invadiu-me outra inquietação: E o que somos?
.
Essa relação entre o que fomos e o que somos tornou-se uma obsessão para mim. Será que mudamos tanto com o passar do tempo que já não nos reconhecemos no que éramos? Ou será que há um fio condutor, uma espécie de coerência existencial que mantemos a vida toda, e nos identifica para nós mesmos e para os outros?
Começo por mim: tenho certeza de que mudei muito. Depois, pensei nos meus amigos. Creio que todos também mudaram: alguns, por circunstâncias da vida; outros, devido a acidentes; alguns por insatisfação consigo.
Desde que vi aquela casa em ruínas, acalento a vontade de escrever sobre a ação do tempo em nós. Nada pretensioso, apenas contos, contos sobre fatos e pessoas reais, nem todas famosas, nem todas freqüentadoras da casa da Félix Pacheco, mas todas relevantes em minhas impressões. Em alguns casos, mudo nomes; em outros, mantenho os verdadeiros, certamente por serem as que mais me marcaram.
O primeiro título para o livro que me acorreu foi O que fomos e o que somos. Talvez o mais concernente, contudo não refletiria minhas perplexidades diante da vida, sempre repleta de questionamentos e incertezas. Optei por Se eu não te amasse tanto assim..., algo tão vago, tão amplo, tão reticente como a própria existência.
O baterista
Como não me lembro bem da data em que o fato se deu, digo apenas que é do tempo em que se gravava em quatro canais. Os técnicos de som faziam verdadeiros milagres, condensando, naquelas mastodônticas máquinas, os arranjos sofisticados de Lyrio Panicalli, Orlando Silveira, Gaya, Radamés Gnatali, Eumir Deodato e tantos outros maestros de igual valor. Era também rotineiro, às quintas-feiras, o maestro Mário Tavares e a Orquestra Sinfônica Brasileira gravarem todas as sessões de cordas que os arranjos prescreviam.
Mas, para que isso tudo acontecesse, era preciso antes gravar a base, os teclados, o violão, o baixo, a bateria e outros instrumentos que os compositores queriam em suas músicas. Era a melhor fase das gravações, antecedidas e sucedidas por conversas animadas, em que nem sempre a música era a tônica, já que os assuntos prediletos eram o futebol, as mulheres, a política e as maledicências. Eram intervalos, pausas de que o espírito necessitava para retemperar-se.
E assim estavam todos, naquela noite chuvosa de sexta-feira, no estúdio da Odeon, quando Deodato propôs continuar a gravação na segunda-feira. Era uma música difícil, e o cansaço estava prejudicando o rendimento.
Depois que todos se retiraram, o técnico de som fez seus procedimentos de desligamento das máquinas, e trancou as portas do estúdio e da companhia que, por serem tempos mais amenos, nem vigia tinha.
Ninguém se deu conta de que, lá dentro, no compartimento da bateria, ficara dormindo Vitor Manga.
Quando Vitor acordou, já era quase meia-noite. Ele estranhou o silêncio e a escuridão. Levantou-se e, às apalpadelas, procurou a porta do estúdio. Trancada. Gritou.
Bateu com os punhos nas paredes à prova de som. Sabia que ninguém o ouviria. Começou a suar, embora fosse inverno e ainda houvesse um resquício de frio do ar refrigerado central desligado.
Tentou se acalmar. Lembrou-se de que, do lado esquerdo da porta do estúdio, havia um interruptor de luz. Tropeçou numa estante de partituras e caiu pesadamente ao solo, ferindo a testa. Permaneceu no chão por alguns minutos. Pensou que não havia razão para se desesperar. Iam dar por sua falta, e alguém viria tirá-lo daquele pesadelo. E quem viesse sentiria sua raiva. Como é que se abandona um músico assim?
Depois, preocupou-se. Era sexta-feira, sábado não tinha gravação, nem domingo, e, se ninguém sentisse sua falta, iria ficar ali até segunda-feira.
Precisava encontrar o comutador de luz, levantou-se e começou a esfregar as mãos pelas paredes. Finalmente o encontrou. Por sorte ou descuido, não haviam desligado a chave geral. A luz era tênue, mas era tudo o que ele queria naquele momento.
Depois, sentando-se à bateria, pensou sem música, pra que serve isso?
. Deu um golpe com a baqueta no tarol. Um só, como um gongo. Ecoou e desapareceu no silêncio.
Olhou o aquário, onde ficava a mesa de gravação. Lá estavam os telefones e o interfone. Esmurrou o vidro. Impossível quebrá-lo. Muito grosso.
Sentou-se novamente à bateria. Bateu no ritmo do tempo como a reproduzir os segundos passando. Bateu forte, com raiva, com raiva da vida quando se lembrou de que uma moça morrera na garupa de sua motocicleta. Acidente. Trágico. Causa: bebedeira. Mania de dirigir alcoolizado. Bateu com mais força. Na vida. Cansado, parou.
Sentiu o coração bater forte e apurou os ouvidos para escutá-lo. Era o ritmo, a pulsação de que precisava. Como um metrônomo. Com as baquetas, acompanhou as batidas do coração. Ficou assim por muito tempo, sem perceber que o andamento era agora mais lento. Como seu coração que se acalmara.
Lembrou-se de uma música, e começou a cantar acompanhando-se na bateria. Era bom instrumentista, sabia disso, mas andava bebendo demais, drogando-se, faltava a ensaios, e muita gente já não o queria mais. Era preciso mudar, antes que fosse tarde, antes que jogasse tudo fora. Como é que o haviam deixado ali? Será que ninguém dava por sua falta?
Andou novamente pelo estúdio. Correu os dedos pelo teclado do piano. Depois ficou ouvindo o som desaparecer no silêncio. Sentiu um enorme cansaço. Não sabia que horas eram, nem que lá fora o dia amanhecia. Deitou-se num canto e adormeceu. Quando foi acordado pelo pessoal da limpeza, julgou ser segunda-feira. Era sábado.
Montou na motocicleta e foi embora. Não sentia mais raiva. Não sentia nada, apenas uma vontade de mudar, de começar outra vida.
Pouco tempo depois, morreu de overdose. Seu amigo Antonio Adolfo, estranhando sua ausência, encontrou-o estirado no chão do apartamento.
O animal político
Não é que ele gostasse de música; na verdade não gostava, mas era louco por Nat King Cole, "They try to tell us we are too young", só Nat Cole, desde o tempo do trio. O resto só parava para ouvir se tivesse mensagem política de esquerda, música de protesto, assim mesmo descartava a melodia e ficava com a letra. Mas isso foi depois, quando já tinha 15 anos, espichara