Os Corpos de Palmas
By Safira Drite
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Os Corpos de Palmas - Safira Drite
Prólogo → 1999 ←
Um lindo bebê nasce no Rio de Janeiro. Enquanto as pessoas correm, rezam e confessam seus pecados pelo temido ano de 2000 que se aproxima (mais um fim do mundo fracassado), Bianca está aos berros fazendo o possível par dar à luz a sua indesejada filha. Vagner, o suposto namorado, se embebedava de novo com amigos que no outro dia não lembrariam dos próprios nomes. A mesma rotina de sempre. → 2003 ← Agora com 4 anos, Aline - como foi chamada por sua mãe - está no canto da sala brincando com um graveto no qual há uma bolinha de papel na ponta, simulando uma boneca. Seus pais mal tinham dinheiro para sustentar a casa, gastar com brinquedos para sua filha, segundos eles, era desperdício. Com a menina no cômodo está Vagner, assistindo um jogo qualquer com uma garrafa de cerveja em mãos, ignorando os gritos de sua mulher vindos do outro cômodo. Ela o culpa por algo que a menina não presta atenção, porém sente um cheiro estranho invadir o ambiente. - Mamãe... Chelo ruim - Fala com um tom elevado a fim de Bianca ouvir, recebendo total atenção de seus pais. Aquelas foram suas primeiras palavras. O atraso no desenvolver da fala na menina causado por falta de comunicação com seus pais não preocupou seus responsáveis. Nem o fato dela só começar a andar sozinha ano seguinte. → 2010 ← O corpo da menina começa a mudar aos poucos e seu pai percebe. Mais um dia alterado e brigado com sua mulher, ele invade o quarto da menor a fim de satisfazer seus próprios desejos. Aline faz o possível para que ele não a toque mas é em vão. Depois daquele ato, ela não sabia descrever o que sentia. Estava com dor, sozinha, suja... E essa foi a primeira de muitas noites assim. A partir de agora, Aline nunca mais falaria. → 2017 ← Como todos os anos, ela não recebeu nenhuma festa ou presente, mas só pelo fato de ficar mais velha, agora maior de idade, uma esperança começava a entrar nos pensamentos da menina. Ela achava que agora seu pai a deixaria em paz e seria tudo diferente, e naquela noite realmente foi. Sua mãe havia saído para ir ao mercado já fazia 20 minutos e seu pai chegou bêbado mais uma vez. Ela estava na cozinha quando sentiu entrar um aroma de cigarro e suor que fez a garota ter náuseas. Ele partiu para cima dela e numa tentativa rápida de se defender, enfiou a faca que estava no balcão em sua garganta. Não houve tempo para pensar. Ele já estava morto. Sua mãe entra pela porta e no instante que vê a cena deixa todas as compras caírem, correndo em seguida. E naquele dia Aline perdeu seus pais. ítulo 1 → 16 de Novembro de 2017 ← Enquanto as sirenes tocavam sinalizando a chegada da polícia, eu continuava a analisar o corpo caído em minha frente. A poça de sangue aumentava e seus olhos ainda esbugalhados me faziam recordar nossos últimos momentos juntos. - AQUI É A POLÍCIA! ESTAMOS CERCANDO A CASA! SAIA COM AS MÃOS PRA CIMA! Um suspiro cansado sai de meus lábios e finalmente mudo a direção do meu olhar para aquele jarro de rosas vermelhas. Retiro uma e me inclino sobre seu corpo, depositando um suave beijo em sua pele já fria e lhe entregando uma das tão amadas rosas de minha coleção. → Exatamente um mês antes ← Toc Toc. Bato com mais força do que gostaria e espero enquanto abraço eu mesma na tentativa vão de me livrar do frio. Serra Álgida é mais fria do que diz o folheto. Toc Toc Toc Toc. A pressa não me permitiu esperar mais que dois segundos. De repente a porta se abre revelando uma silhueta masculina descoberta. Eu poderia ter ficado reparando seus desenhados gomos abdominais ou seu desarrumado penteado, mas ao invés disso caminhei rumo a dentro sem me importar com sua opinião a respeito. - Prima? Vem aqui - Disse ele fechando a porta assim que eu passei e me puxando junto a ele. Eu apenas trouxe meus braços para perto do meu próprio corpo. Aquele tipo de contato não me era familiar e eu não sabia se seria um dia. - Eu sinto muito pelo o que houve com seus pais - Lucas finalmente me soltou - Eu sabia que sua mãe era maluca, mas não a esse ponto. Matar Vagner por ciúmes, aquela mulher é totalmente desequilibrada. Talvez eu devesse ter dito a verdade aos policiais do Rio, algo do tipo; meu pai me estupra todas as noites desde os 10 anos e naquele dia resolvi me vingar, mas eu seria presa justo no dia da minha liberdade. Meu egoísmo não permitia ação tão nobre e não me arrependi depois que vi a repercussão que esse assunto levou consigo. - Vem comigo. Vou preparar algo para você comer. Deve estar faminta. Ele estava certo. Foi uma longa viagem sem direito a refeições no caminho. - Da última vez que eu te vi também não falava uma palavra. Seus pais nunca a levaram para ver isso? - Neguei com a cabeça - É lógico que não. O que esperar de Bianca e Vagner? Revira os olhos. Era curiosa sua maneira de ser e me intrigava um pouco. Mesmo ele não me conhecendo direito, tentava se comunicar comigo de um jeito mais familiar do que meus pais fizeram a vida toda. Eu caminho até que fico ao seu lado passando maionese no pão que ele mesmo cortara, o fazendo sorrir pela ajuda. - Obrigado. Assim que meu sanduíche e chá estavam prontos, me sentei para comer enquanto era observada por Vidal. Ele parecia aflito, cheio de dúvidas, mas dei de ombros, de qualquer jeito não perguntaria sobre seus pensamentos. Que coisa mais intrometida. - Olha, depois de tudo que aconteceu, você acabou de terminar o colégio, perder seus pais, achei que seria uma boa te arrumar um trabalho, sabe?! Pra que você ocupe a sua mente. Então pedi a um amigo uma vaga na loja dele. É bem pequena e você não vai atender as pessoas já que não fala, mas acho que pode te ajudar. Isto era intrigante também. Eu não precisava de ajuda. Estou melhor que nunca; meu pai está morto e minha mãe sumiu da minha vida, como não comemorar? Mesmo assim achei que não deveria expressar este tipo de pensamento. Apenas concordei bebericando um pouco de chá. - Ótimo! Amanhã antes de ir trabalhar eu te levo até ele para você conhecer tudo. Agora vou preparar o sofá. Fique à vontade. Totalmente a vontade aquela noite eu não fiquei. Observava o relógio todo o tempo já acostumada aos horários que meu pai chegava pela madrugada para se divertir
comigo. Finalmente quando deu quatro horas da manhã pude dormir, tendo a certeza de que hoje ele não viria.
ítulo 2 → 30 de Janeiro de 2007 ←
Continuem ouvindo Sinfonia Brasil; o melhor do MPB! Agora Marisa Monte. - Mãe? - Eu caminhava até seu quarto devagar, podendo ouvir sua rádio predileta e um choro abafado. Depois de sonhar tantos anos De fazer tantos planos De um futuro pra nós... - Mamãe? - A cada passo um novo suspiro, uma nova lágrima, e alguns novos versos. Depois de tantos desenganos Nós nos abandonamos como tantos casais... Quando chego no quarto me deparo com a mulher abaixada cobrindo seu rosto com as mãos. Quando percebe minha presença, finalmente fita meus olhos me permitindo ver as marcas vermelhas em seu rosto. - Já falei para não me chamar assim, Aline. → 17 de Outubro de 2017 ← Eu conhecia aquela música. Em cima do balcão daquela singela loja de conveniência, um aparelho de rádio - semelhante ao que minha mãe tinha - tocava depois
de Marisa Monte em sua estação predileta. - Essa é a famosa Aline? - Sim - Lucas sorri aberto para um homem que caminha em nossa direção - Prima esse é Tito. Um amigo de muitos anos de meu pai e dono daqui. - É um prazer conhece-la - Tito estende a mão e eu me apresso em aperta-la - É mais bonita do que ele me disse. Abaixo a cabeça deixando meu cabelo cobrir parte de meu rosto e esconder minha timidez. Não estava acostumada com elogios. Os homens começam uma conversa animada e eu me afasto aos poucos, não querendo parecer antipática, mas é como se eu não conseguisse ficar perto das pessoas por muito tempo. Como se existisse uma barreira entre mim e a sociedade. Ando alguns corredores até avistar pela janela uma menina peculiar. Aparentava ter a minha idade, tinha pele morena e cabelos extremamente brancos, longos e encaracolados. Mas o que mais chamava atenção era sua deficiência. Ela era cega. Usava uma faixa branca tapando seus globos oculares para não mostrar as marcas horríveis que o destino deve ter as colocado. Suas vestes indicavam miséria e ela estava acompanhada de um cão que a ajudava a se guiar. Aquela imagem me deixou paralisada por alguns segundos quando notei que ela parecia conversar com o cão. Ria e gesticulava como se ele pudesse lhe compreender. - Aquela é Tereza - A voz de Tito me tira de meus próprios pensamentos - Desculpe- me, não quis assustar. Fiz um gesto com a mão dizendo que não importava. - Ela vem sempre aqui. Quem sabe não se tornam amigas? Venha, seu uniforme está na dispensa. Pode começar arrumando os produtos novos que chegaram. → . . . ← - Gostou do primeiro dia de trabalho? - Lucas me pergunta enquanto fazemos a janta. Estou tão concentrada no que estou a fazer que deixo esar um uhum
de meus lábios fechados. - Você fala? - Achei que ele faria milhões de perguntas, mas me surpreendeu. Novamente - Ótimo. Prefiro que me responda assim. Não parece que estou falando com as paredes. Abro um sorriso ainda maior e abaixo a cabeça em seguida. Talvez essa fosse a sensação de se ter uma família. Uma de verdade. Toc toc toc. Nos olhamos e Lucas rapidamente caminha em direção a porta murmurando um quem será?
. Eu me apresso para pegar a faca de cima da bancada, segurando com força e a escondendo comigo atrás do pequeno muro. Logo meu primo vem acompanhado de dois homens uniformizados. - Srta. Suaçuna, queira nos acompanhar até a delegacia. E tudo aconteceu mais uma vez como no dia 13 daquele ano. Perguntas, fotos... Queriam ter a certeza de que mamãe havia matado meu pai, e eu daria essa certeza