Qual o Sentido do Voto Nulo?: Reflexões Críticas sobre a Democracia e as Eleições
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Nildo Viana
Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB; Autor de diversos livros, entre os quais: O Capitalismo na era da Acumulação Integral; Quadrinhos e Crítica Social; As Esferas Sociais; Cinema e Mensagem; Manifesto Autogestionário; A Mercantilização das Relações Sociais; A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx; Hegemonia Burguesa e Renovações Hegemônicas; O Modo de Pensar Burguês; Universo Psíquico e Reprodução do Capital.
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Qual o Sentido do Voto Nulo? - Nildo Viana
APRESENTAÇÃO
Lucas Maia
A crítica da democracia, do processo eleitoral, do mito do sufrágio universal como algo libertador, não é recente. Há já muito que se escreve sobre isto e muito já foi, de fato, publicado a este respeito. Contudo, a democracia segue ainda como crença (no sentido de fé) para amplos setores da população, sobretudo os adeptos do bloco progressista, mas não só eles, pois também os representantes do bloco dominante geralmente a defende. As eleições confirmam-se, na maioria dos países, como sendo o método realmente correto e legítimo de decisão política. O sufrágio universal provou-se, dentro dos limites democráticos, ser a maneira mais ampla de envolver a população nos processos de escolha de representantes.
Assim, aparece aos olhos comuns que o máximo que se deve fazer é melhorar a democracia. Dentro deste estrito ponto de vista, só existem duas alternativas de regime político: democracia e ditadura. Portanto, se se critica a democracia, na mente limitada dos que a defendem, está-se a defender a ditadura. Trata-se, para o pensamento crítico, de uma falsa oposição. Não que não existam diferenças entre estes dois regimes políticos. Existem e são muitas. Contudo, ambas expressam o mesmo interesse de classe, apesar das oposições.
Em primeiro lugar, nem a democracia, nem a ditadura se propõe abolir as relações de exploração típicas do modo de produção capitalista. De diferentes maneiras, ambas a reproduzem. Em segundo lugar, tanto uma como outra, necessitam, demandam, almejam o Estado. São, na verdade, duas maneiras pelas quais o Estado capitalista é organizado. Ou seja, a democracia é uma forma de regime político que organiza democraticamente o Estado capitalista. A ditadura é uma forma de regime político que organiza ditatorialmente o Estado capitalista. Perdoem-nos a redundância. Foi intencional.
Para nós, portanto, tanto a perspectiva democrática, quanto a perspectiva ditatorial estão no campo político burguês, pois são somente formas de se organizar o Estado capitalista. Ou seja, está tanto pressuposto, como é condição para existência de ambas as relações de exploração capitalista e a instituição estatal.
Da perspectiva de classe proletária, ambas alternativas devem ser rejeitadas, tanto teórica quanto praticamente. Para o proletariado e demais classes inferiores (lumpemproletariado, campesinato etc.), é certo que lutar em regimes democráticos é mais favorável do que em regimes ditatoriais. Contudo, o século XX prova que inúmeras revoluções proletárias surgiram dentro de ditaduras: revolução russa de 1917, revolução portuguesa de 1975, várias experiências no âmbito do capitalismo de Estado, como a Primavera de Praga em 1968, Polônia em 1980 etc. Elas também emergiram dentro de regimes democráticos: revolução alemã de 1919, revolução húngara de 1919, Maio de 1968 na França, entre outras. Ou seja, se em regimes democráticos a tendência é o processo de repressão aos trabalhadores ser mais brando
(por falta de palavra mais adequada), na ditadura ele é mais amplo e indiscriminado. Contudo, em ambos ele é certo e cumpre o interesse de aniquilar qualquer forma de atividade autônoma de classe.
O que estamos a afirmar com estas declarações? Que, do ponto de vista da crítica revolucionária, ou seja, que almeja abolir o modo de produção capitalista e o conjunto das relações sociais burguesas existentes, não devemos ficar nos limites da oposição existente entre democracia e ditadura. A crítica revolucionária deve expressar a perspectiva da classe revolucionária, ou seja, do proletariado enquanto classe autodeterminada. E para os interesses desta classe, nenhum destes dois regimes políticos interessa. Pelo contrário, interessa à classe operária tanto a superação do modo de produção capitalista quanto do Estado capitalista. Logo, também de seus possíveis regimes políticos.
É exatamente esta tese que perpassa um conjunto de textos presentes neste livro. É desta discussão geral que derivam as reflexões teóricas e as proposições políticas. Defender a abstenção ou o voto nulo é uma proposta política derivada de uma crítica teórica, embasada numa análise histórica do Estado capitalista, da democracia e do sistema eleitoral que invariavelmente deriva dela. Esta crítica só é possível devido à perspectiva de classe expressa em todos os textos. Esta é uma questão decisiva, pois implica em romper radicalmente (no sentido de ir à raiz, à essência) com o ponto de vista burguês. É por isto que o Estado, a democracia, as eleições, são criticados, pois expressam a perspectiva da classe capitalista e suas classes auxiliares (burocracia, intelectualidade etc.). Ao aceitar-se a democracia e o jogo eleitoral, tacitamente aceita-se todo o resto: o modo de produção capitalista, o Estado capitalista, a política burguesa e suas regras e tudo que a isto se relaciona. Ou seja, aceita-se o jogo, as regras, os jogadores, os interesses, enfim, o mundo burguês.
Apesar de muito já ter sido escrito e publicado sobre crítica da democracia e das eleições, este livro ainda se justifica por que o fetichismo da democracia e das eleições é hoje mais mistificador do que nunca. A oposição burguesa entre democracia e ditadura está hoje presente de modo ainda mais extenso do que em outros momentos da história. Vastos setores da população, nos países que estão sob regimes ditatoriais, colocam como bandeira de luta e projeto político a democracia. Nos países democráticos, a ameaça de retorno a regimes ditatoriais reforça, em vastos setores da população, a ilusão democrática. Eis o ciclo vicioso, o qual devemos evitar. Os textos aqui presentes apontam todos para este ponto comum.
Os artigos que compõem este volume foram todos publicados pela primeira vez na Revista Enfrentamento número 08, de 2010¹. Em comparação com os artigos publicados inicialmente na Revista, os textos aqui presentes foram em alguns aspectos revisados por seus autores e em outros casos ampliados e atualizados. Portanto, em vários aspectos, esta obra é inédita, apesar de apresentar textos já publicados anteriormente.
Abre-se o livro com o Editorial da Revista Enfrentamento número 08 de 2010, intitulado O voto é nulo, mas pode ser autogestionário. Na sequência, há a tradução de um capítulo do livro Os Conselhos Operários, de Anton Pannekoek: A democracia. Lucas Maia expõe em seguida o ensaio Teses sobre democracia, eleições, voto e voto nulo. Nildo Viana contribui com o artigo Eleições, voto nulo e autoemancipação. Em seguida, vem o texto de Edmilson Marques, intitulado: Democracia burguesa, voto nulo autogestionário e transformação social. Por último, o artigo de André de Melo Santos: Voto nulo e renascimento da utopia.
Como é perceptível, a crítica da democracia, do Estado, do processo eleitoral vem acompanhada da proposta de voto nulo. Contudo, este só tem algum sentido se articulado com outros elementos, os quais são desenvolvidos de diferentes maneiras nos textos. O voto nulo ou a abstenção é a expressão da crítica e da recusa. A auto-organização e autoformação são as proposições afirmativas e alternativas.
Assim, para além da democracia e da ditadura, há um outro projeto e este só pode ser expressão