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MULHERES NA SOCIEDADE EM TEMPOS DE CRISE
MULHERES NA SOCIEDADE EM TEMPOS DE CRISE
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MULHERES NA SOCIEDADE EM TEMPOS DE CRISE

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Nos primeiros meses de 2020 fomos atropelados pela pandemia do vírus COVID-19. Parte da população se trancou em quarentena, e até o momento vivenciamos as incertezas do futuro sem vacina e sem reduções da epidemia no Brasil. A crise, ampliada sobremaneira pela pandemia, se agrava pelo país. Esse novo contexto exemplifica as questões que vivenciamos no país sob a falsa premissa da neutralidade de gênero. As relações entre homens e mulheres são extremamente desiguais. A maior parte das pessoas envolvidas com tarefas de cuidado são mulheres, que em geral se responsabilizam pelo acompanhamento dos filhos que estão afastados de creches e escolas, as tarefas domésticas e o cuidado dos idosos e dos doentes. Além disso, os casos denunciados de violência doméstica aumentaram muito durante o período de isolamento. Entre as mulheres também existem relações desiguais. É preciso estar atenta ao fato de que nem todas puderam se recolher às suas residências. Muitas mulheres continuam trabalhando como empregadas domésticas durante o período, ou como faxineiras, sem condições de seguir as orientações para a prevenção do contágio.Desse modo, destacamos aqui a essencialidade de trabalhar com o feminismo e suas vertentes, sempre atentas às interseccionalidade que perpassam a temática. Com esse olhar, temos os artigos “Mulheres negras e o genocídio negro brasileiro: entre violências e resistências(in)visibilizadas”, que busca analisar as violências, sobretudo racistas e patriarcais, que atravessam as vivências das mulheres negras e como elas enfrentam o Estado genocida antinegro; “Processos de subjetivação de mulheres negras em situação de rua: perspectivas interseccionais e antirracistas”, com o fim de promover a desconstrução do contexto universalizante da categoria mulher que incide em diversas opressões sobre aquelas que estão alijadas de espaços hegemônicos na sociedade; e “Mulheres indígenas: entrelaçamentos entre violência de gênero, etnicidades e empoderamento para a construção de uma cidadania decolonial” que busca, por meio de uma metodologia etnológica, discorres sobre os inter-relacionamentos entre gênero e a questão étnico-racial e têm como fundamento base, a liberdade e a cidadania decolonial.O livro conta ainda com artigos sobre a construção de discursos contra os direitos humanos no Brasil, especialmente os direitos humanos das mulheres, o papel da mulher na democracia e a importância da participação na política, atuação da biopolítica e do biopoder sobre os corpos femininos e sobre a importância da produção de conhecimento a partir de uma epistemologia feminista.Autoras e autores: Vivane Martins Cunha, Lisandra Espíndula Moreira, Ana Luísa Coelho Moreira, Isabella de Araújo Bettoni, Ricardo Damasceno Moura, Carolina Machado dos Santos, Bruna Camilo de Souza Lima e Silva, Carla Beatriz Rosário dos Santos, Grécia Mara Borges da Silva, Josiene Aparecida de Souza, Damires Rinarlly Oliveira Pinto, Leonardo Custódio da Silva Júnior, Ana Luísa Machado de Castro, Vanessa de Vasconcellos Lemgruber França, Ariadne Araújo Cerqueira Borges, Lili Castro, Laura Mendonça Chaveiro, Thayse Edith Coimbra Sampaio, Marina Almeida Morais
LanguagePortuguês
Release dateAug 25, 2021
ISBN9786587021041
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    MULHERES NA SOCIEDADE EM TEMPOS DE CRISE - Polianna Pereira dos Santos

    PREFÁCIO

    Em junho de 2018 lançamos o livro Mulheres na Sociedade (Plácido Ed.), gerado a partir do encontro de três mulheres com trajetórias e perfis diferentes, mas com anseios e ideais muito similares. Em manhãs com muito café, chás e íntimas conversas, escrevemos o edital para a nossa primeira obra e fomos afinando a nossa sintonia para cada etapa do nosso processo de autoria e organização de uma obra que nasceu grande. Contamos com a confiança de autoras e autores de diferentes formações e de diversas partes do país que nos encaminharam muitos artigos, o que nos permitiu selecionar ótimos textos e nos estimulou a pensar numa futura segunda edição.

    O nosso primeiro livro conjunto foi escrito com muita esperança em dias melhores, sobretudo, para as mulheres na sociedade em que vivemos. Conscientes do momento em que vivíamos, entendemos que as questões apresentadas poderiam contribuir para reflexões e intervenções, dando visibilidade e fortalecendo lutas históricas das mulheres, em diferentes esferas e campos de atuação. Após o golpe político-midiático que resultou no impeachment de Dilma Roussef, primeira mulher presidenta do Brasil, sabíamos da importância das eleições presidenciais de 2018, que se aproximavam.

    Todo conjunto de interesses que subsidiaram o golpe em 2016 criou a ambiência propícia para o crescimento eleitoral de um candidato misógino, machista, lgbtfóbico, racista, armamentista, conservador e tantas outras nefastas características que nem vale elencar. O que sabemos é que a vitória do inominável e de seu(s) grupo(s) político(s) assevera os nossos desafios e nos coloca diante de uma crise preocupante na recente história da democracia brasileira. Nossas reivindicações por mais igualdade, representatividade e direitos, que vinham sendo conquistados ainda em descompasso com a urgência das nossas necessidades e anseios, tiveram que se reordenar em lutas contra os retrocessos, as violências e os silenciamentos que tentam se impor sobre nós.

    Reunimo-nos em 2019 para planejar este livro, certas de que precisávamos dar nossa contribuição, diante dessa perigosa realidade. Alertas ao contexto, entendemos que esta publicação visaria a investigação acadêmica de questões atuais e polêmicas de relevância nacional relacionadas à situação das mulheres em sociedade, ao preconceito de gênero e à violência, no contexto de crise e restrição/supressão de direitos que estamos vivenciando. Lançamos, então, um novo edital de chamada de artigos com a temática As Mulheres na Sociedade em Tempos de Crise.

    Quando esta obra começou a ser gestada, não imaginávamos o que 2020 nos reservava. Um significativo agravamento da crise, em suas múltiplas dimensões: ética, social, econômica, política e democrática. E, como se não bastasse, tudo isso em meio à pandemia da Covid-19. Uma parte da população se trancou em quarentena, e até o momento vivenciamos as incertezas do futuro sem vacina e sem reduções da epidemia no Brasil. Outra parte significativa, sem opção, se manteve exposta à contaminação pela necessidade da sobrevivência. Outros tantos fizeram questão de zombar da gravidade de um vírus que já matou, até o momento, mais de 100 mil brasileiros e brasileiras. E avança, sem vacina e sem medidas, sobre as parcelas da população mais pobre e vulnerável, com destaque para negros e negras.

    Esse novo contexto exemplifica as questões que vivenciamos no país sob a falsa premissa da neutralidade de gênero. As relações entre homens e mulheres são extremamente desiguais. A maior parte das pessoas envolvidas com tarefas de cuidado são mulheres, que em geral se responsabilizam pelo acompanhamento dos filhos que estão afastados de creches e escolas, sobrecarregadas pelas tarefas domésticas e pelo cuidado dos idosos e dos doentes. Além disso, os casos denunciados de violência doméstica aumentaram muito durante o período de isolamento.

    Entre as mulheres também existem relações desiguais. É preciso estar atenta ao fato de que nem todas puderam se recolher às suas residências. Muitas mulheres continuam trabalhando como empregadas domésticas durante o período, ou como faxineiras, sem condições de seguir as orientações para a prevenção do contágio. É muito ilustrativo o caso da primeira vítima fatal no Rio de Janeiro, empregada doméstica que contraiu o vírus de sua patroa, que havia retornado de uma viagem à Itália. Também não podemos esquecer de Miguel, criança de seis anos, que, deixada brevemente aos cuidados da patroa para que a mãe, empregada doméstica, pudesse levar os cachorros para passear durante a pandemia, morreu ao despencar do 9º andar do prédio, após ter entrado no elevador sozinho.

    O caso das mães Yanomami, da aldeia Auaris, que fica em Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela, é outro exemplo dessas diferenças. Elas perderam seus bebês para a Covid-19 e não receberam informações sobre o destino de seus corpos, que podem ter sido enterrados no cemitério local, a despeito de suas crenças. Também cabe citar o caso da mulher negra, vítima de um policial que pisou em seu pescoço e a arrastou, na Zona Sul de São Paulo.

    Desse modo, destacamos aqui a essencialidade de trabalhar com o feminismo e suas vertentes, sempre atentas às interseccionalidades que perpassam a temática. Com esse olhar, temos os artigos: Mulheres negras e o genocídio negro brasileiro: entre violências e resistências(in)visibilizadas, que busca analisar as violências, sobretudo racistas e patriarcais, que atravessam as vivências das mulheres negras e como elas enfrentam o Estado genocida antinegro; Processos de subjetivação de mulheres negras em situação de rua: perspectivas interseccionais e antirracistas, com o fim de promover a desconstrução do contexto universalizante da categoria mulher que incide em diversas opressões sobre aquelas que estão alijadas de espaços hegemônicos na sociedade; e Mulheres indígenas: entrelaçamentos entre violência de gênero, etnicidades e empoderamento para a construção de uma cidadania decolonial, que busca, por meio de uma metodologia etnológica, discorrer sobre os inter-relacionamentos entre gênero e a questão étnico-racial, os quais têm como fundamento a liberdade e a cidadania decolonial.

    Em A fina arte de Capitú: reflexões sobre as convulsões da ordem paternalista brasileira, temos um belo estudo sobre a construção de discursos contra os direitos humanos no Brasil, especialmente os direitos humanos das mulheres, a partir de parte de uma carta deixada por um homem que cometeu assassinato seguido de suicídio em 2017 em Campinas/SP, Brasil. Essa carta mostra como argumentos paranoicos têm se espalhado por amplos setores sociais. Na linha dessa discussão sobre o papel do feminino, o artigo Espaço de ser: O papel infamiliar estabelecido ao feminino a partir de uma narrativa da inquisição medieval problematiza o espaço de ser da mulher na sociedade, contrastando a narrativa do Malleus Maleficarum com a noção de infamiliar desenvolvida por Freud. Nessa linha apresentamos ainda Ecofeminismos e Apanhadoras de Sempre-Vivas: arranjos produtivos, territorialidade e conexão com a terra, que utiliza como base a crítica da construção patriarcal de mundo e das características tipicamente associadas ao signo masculino, tais como exploração, violência e beligerância.

    Considerando a essencialidade da mulher no contexto democrático, temos O movimento das mulheres pela anistia e redemocratização brasileira sob um olhar da justiça de transição, que discorre sobre a mobilização das mulheres brasileiras em prol do Estado Democrático de Direito, durante a Ditadura no Brasil, entendendo o feminismo não só como a luta pelo fim da discriminação contra a mulher, mas contra todo tipo de opressão, até mesmo a estatal; e As vozes dos feminismos: repertórios de interação, participação política e resistência, que visa analisar a atuação dos movimentos feministas brasileiros no período de redemocratização, realizando um estudo de caso sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, investigando os processos de interação com o Estado. O texto Mecanismos de garantia da participação feminina na política sob a luz da teoria da justiça de Rawls, por sua vez, ressalta a importância da discussão do tema da participação feminina na política, entendida como a real possibilidade de acesso a cargos eletivos por mulheres, verificada a partir da necessidade de identificar os pilares dos conceitos de direitos fundamentais e democracia na atualidade.

    Mulheres palhaças dentro e fora do circo: a crise da representação feminina convencional e o poder libertador do riso traz uma reflexão sobre o trabalho das mulheres palhaças dentro e fora do universo circense, entendendo a palhaçaria como uma atividade que se fez presente em diferentes épocas e civilizações, sendo exemplo da dificuldade de acesso a diversas atividades pelas mulheres ao longo da história. Mais à frente, o artigo Corpo, sexualidade e gênero: implicações teóricas sobre o processo decisório que resulta em um aborto conta com o referencial teórico Michel Foucault, com o objetivo de compreender a atuação da biopolítica e do biopoder sobre os corpos femininos, ressaltando que o corpo feminino é controlado, objetificado, erotizado e invisibilizado pela máquina misógina patriarcal.

    Igualmente essenciais para a nossa proposta são os artigos finais, que vão marcar a importância de desenvolver e produzir conhecimento a partir de uma epistemologia feminista. Teorias democráticas contemporâneas: uma análise teórica e feminista apresenta as teorias contemporâneas da democracia e analisa as críticas feministas existentes acerca das teorias democráticas canônicas, com o propósito de construir, por meio dessas críticas, possibilidades de teorias feministas democráticas. Em Ciência e feminismo(s): críticas e diálogos possíveis, o foco é a análise de produção de sentidos, discursos e saberes por atrizes e atores do(s) feminismo(s) no âmbito de sua produção teórica e científica, além da análise da importância destes saberes para reorganizações do movimento e da própria ciência, ao evidenciarem as relações de poder (de gênero, raça, classe, etc) existentes no modo dominante de produção científica moderna, e da propositura de outros modos de construção de conhecimento.

    É importante relembrar que o edital público de chamada de artigos foi lançado no segundo semestre de 2019, e recebemos diversos artigos até dezembro de 2019. A seleção, realizada às cegas e em conjunto pelas organizadoras do livro, aconteceu entre janeiro e fevereiro de 2020. Somente após esse período é que a pandemia se instalou no Brasil, levando a uma série de mudanças no projeto. A reflexão proposta pelo artigo que encerra esta obra, Lugar de fala e Opacidade: visões de mundo não hegemônicas para mais diálogos possíveis, contudo, já se constituiu a partir das impressões causadas por esse novo cenário, e tem por objetivo salientar importantes questões sociais que se acirraram após o início da pandemia no Brasil, bem como ferramentas conceituais que podem nos ajudar nesse momento em que as diferentes vozes brasileiras em diálogo se fazem tão importantes para reduzir os fossos sociais de desigualdade de oportunidades, agravados num cenário de crise, agora também flagrantemente sanitária.

    Dessa forma, nesta obra a leitora e o leitor encontrarão uma abordagem das questões e polêmicas contemporâneas sobre a situação das mulheres em sociedade, em diferentes áreas do saber, considerando-se perspectivas históricas, sociológicas, antropológicas, jurídicas, políticas, econômicas, entre outras.

    Esperamos que esse livro possa nos ajudar a compreender e problematizar um pouco mais da nossa situação, mulheres, agravada sempre em momentos de crise, bem como nos ajude a reconhecer nossa sociedade como desigual, afastando a falsa premissa da neutralidade de gênero e enfrentando o racismo estrutural e todas as formas de opressão. Esperamos ainda que, a partir da reflexão, possamos reforçar nossas resistências e criar novas estratégias de ação. Somos a força motriz das mudanças que almejamos e merecemos, para que possamos viver em uma sociedade mais justa, igualitária e democrática.

    Estamos aqui porque muitas mulheres lutaram antes de nós. E a luta continua, por todas! Vamos juntas?

    Daniella Tiffany Prado de Carvalho

    Psicóloga e mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mulher negra, feminista umbandista. Pesquisadora em gênero e promoção da igualdade racial. Assessora parlamentar da Deputada Marília Campos.

    Elisa Maria Taborda da Silva

    Mestra em Literaturas de Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

    Polianna Pereira dos Santos

    Mestra em Direito Político pela Universidade Federal de Minas Gerais. Presidenta da Associação Visibilidade Feminina. Professora e Pesquisadora de Gênero. Assessora no Tribunal Superior Eleitoral. Coordenadora Institucional da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

    Visibilidade Feminina

    Visibilidade Feminina é uma associação civil de direito privado sem fins lucrativos que tem por finalidade fomentar o protagonismo das mulheres nos espaços de poder público e privado, por meio de ações de conscientização e empoderamento feminino; promoção, em caráter interdisciplinar, de estudos, pesquisas e discussões; publicação de trabalhos sobre a situação da mulher na sociedade; realização de convênios, acordos e parcerias com outras instituições e entidades; entre outros.

    O nome da associação vem do objetivo de promover o empoderamento a partir da visibilidade: quando uma mulher vê outra em um espaço de poder, ela sabe que também pode chegar lá e que aquele é também o seu lugar, porque acreditar em si mesma é o primeiro passo em direção a uma realidade na qual as vozes de homens e mulheres tenham a mesma importância e relevância sobre os rumos da sociedade.

    A Visibilidade Feminina surgiu a partir do Projeto Visibilidade Feminina nas eleições 2016, buscando alertar sobre a importância da representatividade nos espaços de poder, a igualdade de gênero e da emancipação das mulheres como protagonistas na política. Assim, impulsionou-se uma campanha pela votação em mulheres, ajudando a divulgar candidaturas femininas de todo o Brasil. Passadas as eleições e diante do alcance inesperado do projeto, as mulheres envolvidas naquela atividade transitória decidiram tornar permanente o movimento Visibilidade Feminina.

    Em 2017 foi feito o registro como associação civil sem fins lucrativos e a partir de então passamos contar com associadas e associados de todos os cantos do Brasil.

    Em 2020 nos tornamos uma editora feminista, com a pretensão de dar visibilidade às mulheres que se expressam por meio da escrita e das imagens. Entendemos ser necessário conquistar esse espaço da linguagem, que também é um espaço de poder. Lançamos nosso manifesto, Deixa ela falar! Contra os apagamentos do passado, as boas-vindas à Visibilidade na Gramática, de autoria de Elisa Maria Taborda da Silva.

    Também em 2020, a Visibilidade Feminina lançou o livro Entranhas, de autoria de Paula Bernardelli, a Guia Acessível para as Candidaturas de Mulheres, em coautoria com a Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, e o livro mulheres me contaram outro dia, de autoria de Adriana Moro.

    Mulheres negras e o genocídio negro brasileiro: entre violências e resistências (in)visibilizadas

    Black women and Brazilian black genocide: between violence and (un)visible resistance

    Vivane Martins Cunha¹

    Lisandra Espíndula Moreira²

    RESUMO: O presente artigo discute a relevância científica e política de ampliar o debate e o entendimento do genocídio negro no Brasil. É premente o enfrentamento teórico e político da estratificação do genocídio negro, de modo a analisar as violências, sobretudo racistas e patriarcais, que atravessam as vivências das mulheres negras e como elas enfrentam o Estado genocida antinegro. A visibilização das experiências de mulheres negras contribui com o aprofundamento e a qualificação das teorizações no campo do genocídio negro ao evidenciar as violências de gênero constitutivas das políticas genocidas. Para isso, apresentaremos a experiência do grupo Mães que choram, pais que abraçam (BH/MG), por destacar práticas contínuas de violências genocidas e os impactos produzidos nas vidas negras, principalmente, das mulheres, assim como os enfrentamentos as políticas de exclusões e mortes presentes na cotidianidade de mulheres negras, moradoras de periferias e favelas.

    PALAVRAS-CHAVE: Genocídio negro; mulheres negras; diáspora africana/negra; violências e resistências.

    ABSTRACT: This article discusses the scientific and political relevance of sprading the debate and understanding of black genocide in Brazil. The theoretical and political confrontation of the stratification of the black genocide is urgent, in order to analyze the violence, especially racist and patriarchal, that cross the experiences of black women and how to face the anti-black genocidal state. The visibility of the experiences of black women contribute to the deepening and qualification of theories in the field of black genocides by highlighting the gender violence that constitutes genocidal policies. To conclude, we will present the experience of the group Mães que choram, pais que abraçam (BH/MG), for highlighting ongoing practices of genocidal violence and the impacts produce on black lives, mainly, of women, as well as confrontations with exclusions and deaths presents in the daily lives of black women’s residents in peripheries and slums.

    KEYWORDS: Black genocide; black women; African/Black Diaspora; violence and resistance.

    Rotas afrodiaspóricas: O que informam as experiências das mulheres negras?

    Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Luana Barbosa, Elza Soares, Luísa Bairros, Sueli Carneiro, Maria da Conceição (minha mãe), Antonieta de Barros, Claudia Silva Ferreira, Diva Guimarães, Benedita da Silva, Leci Brandão, Preta Rara, Mãe Menininha do Gantois, Adicionina Sotero (minha avó), Débora Silva, Bia Ferreira, Valéria Lúcia dos Santos, Clementina de Jesus, Conceição Evaristo, Marielle Franco, Paula Beatriz Souza entre inúmeras outras mulheres, informam sobre a experiência da mulher negra em diáspora no Brasil. São mulheres que estão (ou estiveram) inseridas em lugares sociais distintos, em diferentes posições profissionais, acadêmicas ou não, com diferentes trânsitos pelo mundo. São (ou eram) lésbicas, heterossexuais, deputadas, artistas, donas de casa, mães, ativistas, poetisas, professoras, conhecidas, anônimas, moradoras de favelas e periferias etc. São muitas as vivências das mulheres negras e cada uma constrói a sua própria história.

    Contudo, as histórias das mulheres negras são marcadas e demarcadas pelo racismo e pelo patriarcado, desse modo, se conectam. Logo, ao olhar para a experiência de cada mulher negra é possível ir além daquilo que é singular e visualizar o que é comum com outras vivências. Nas palavras da antropóloga e feminista³ brasileira Lélia Gonzalez (1988), quando falo de experiência, me refiro a um processo difícil de aprendizado na busca de minha identidade como mulher negra, dentro de uma sociedade que me oprime e discrimina precisamente por causa disso (p. 134). Desse modo, a posição ocupada na sociedade enquanto mulheres negras, por mais que seja entrecortada por outras categorias, tais como classe social e orientação sexual, faz com que elas compartilhem vivências de opressões racistas e patriarcais de modo similar.

    Tal como afirma Patrícia Hill Collins (2016), socióloga e feminista estadunidense, as mulheres negras defendem um ponto de vista ou perspectiva singular sobre suas experiências e [...] existirão certos elementos nestas perspectivas que serão compartilhados pelas mulheres negras como grupo (p. 102). De acordo com essa teórica, destacar as experiências das mulheres negras – que são individuais e ao mesmo tempo coletivas – possibilita examinar (e ampliar) perspectivas epistemológicas a partir de seus posicionamentos singulares nas estruturas de poder. Portanto, escutar relatos de experiências das mulheres negras é fundamental para compreender as condições sociais que constituem o grupo do qual elas fazem parte, contrapondo concepções que intentam deslegitimar suas falas como produtoras de conhecimento (RIBEIRO, 2017). No entanto, é importante considerar que o lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas (Idem, p. 69), que tensionam o que normalmente é tido como verdade universal e os meios pelos quais essa verdade é produzida (COLLINS, 2018).

    Pensar a experiência em diáspora africana/negra tem como objetivo trazer para o centro de análise as condições genocidas que forjam identidades e resistências. O debate do genocídio no Brasil, a partir da experiência diaspórica, mostra o homem, jovem e negro como alvo principal das práticas genocidas, mas buscamos nessa escrita analisar a partir de outra perspectiva. Portanto, iremos localizar a experiência das mulheres negras no campo de teorizações do genocídio negro, e isso implica em romper com teorias universalistas e patriarcais que realizam tais discussões somente pelo prisma normativo da experiência masculina (ROCHA, 2014, 2017; WERNECK, 2017; FLAUZINA, 2016).

    O ocultamento das marcas de gênero na diáspora africana/negra silencia as mulheres negras e nega o genocídio que recai sobre seus corpos, tendo como consequência a visão de que elas não têm dor própria, somente derivada dos seus filhos e maridos. Logo, a dor da mulher negra só seria informada pela dor masculina, sendo esta também raramente reconhecida devido à desumanização que não registra sofrimento em carne negra (FLAUZINA, 2016).

    Não é fácil reconhecer as diferentes formas de violência que atingem as mulheres negras, muito menos as formas de resistência que desenvolvem, especialmente em contextos de disputas entre masculinidades exacerbadas e, paradoxalmente, impotentes. Os discursos sob o racismo patriarcal heteronormativo não produzem imagens onde a participação, o protagonismo e a capacidade de agenciamento sejam cabíveis a tais personagens (WERNECK, 2017, p. 111).

    Caminhando em uma leitura crítica do patriarcado, Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2018), pesquisadora feminista nigeriana, salienta que a organização da sociedade Yorùbá, antes da colonização Ocidental, não era pautada no princípio de gênero. Para essa pesquisadora, a colonização introduziu um processo de inferiorização e subordinação de gênero que expandiu para todo o sistema-mundo moderno-colonial. Destarte, as categorias de gênero e raça emergiram nessa época como dois eixos através dos quais pessoas são exploradas e sociedades estratificadas (OYĚWÙMÍ, 2018, p. 171); sendo gênero, portanto, uma imposição do domínio colonial tal como raça.

    Nessa fundação Ocidental de opressões a partir do gênero, há uma invenção do que é ser mulher baseada em lógicas racistas e patriarcais que excluem as mulheres negras da esfera do reconhecimento. Logo, há uma dupla limitação epistêmica em relação às mulheres negras por serem antítese da branquitude e da masculinidade (RIBEIRO, 2017). Por isso, Sojourner Truth, escritora e abolicionista afro-americana, questionou em seu discurso denominado Não sou uma mulher?, em 1851, na Convenção dos Direitos da Mulher, como ela era vista pela sociedade, uma vez que o modelo universalizado de mulher não condizia com sua realidade. E não sou uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando eu manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher?⁴.

    Na mesma linha argumentativa, Gonzalez expõe em suas escritas como a situação das mulheres negras praticamente não se alterou com o fim da escravidão, dado que as opressões raciais e sexistas continuam colocando-as no nível mais inferiorizado da sociedade brasileira. Diante da permanência de pensamentos e práticas coloniais, a mulher negra continua a desempenhar as funções modernizadas da escrava do eito, da mesma mucama, da escrava de ganho. Enquanto mãe e companheira, continua aí sozinha, a batalhar o sustento dos filhos, enquanto o companheiro, objeto da violência policial, está morto ou na prisão (GONZALEZ, 2018, p. 114)⁵. A partir de suas posicionalidades, as mulheres negras contribuem com seus olhares no entendimento das expressões da violência patriarcal e racista que recaem sobre seus ombros e dos(as) seus/suas filhos(as) e maridos⁶. No artigo intitulado Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero, Carneiro (2003) também interroga o lugar de subjugação destinado às mulheres negras em diáspora, escancarando a permanência da violência colonial. Essa filósofa evidencia como a experiência das mulheres negras é marcada pela coadunação do racismo e do patriarcado.

    Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação (CARNEIRO, 2003, p. 49-50).

    Ochy Curiel (2007), antropóloga social e feminista afro-dominicana, sublinha que as teorizações sobre escravização e colonização, desde os estudos de Frantz Fanon e Aimé Césaire, incluindo os teóricos contemporâneos, tais como Mignolo, Quijano e Dussel, oferecem análises importantes sobre o colonialismo que desafiam o pensamento eurocêntrico de modo a ampliar a compreensão da realidade latino-americana. Entretanto, essa antropóloga destaca que há uma recorrência histórica de apagamentos dos aportes feministas de mulheres racializadas, afrodescendentes e indígenas, principalmente os produzidos a partir da década de 1970, muitos deles pelos teóricos mencionados, apontando os limites de suas teorizações. Desse modo, descolonizar supone registrar producciones teóricas y prácticas subalternizadas, racializadas, sexualizadas, es importante reconocer a tantas mujeres cuyas luchas sirvieron para construir teorías (CURIEL, 2007, p. 95). Somente assim se torna possível construir epistemologias que incluam o que as mulheres negras informam de suas vivências, desde a diáspora africana/negra.

    Curiel (2017) afirma que não há como compreender a condição de mulher separada da condição de negra, como identidades autônomas, para posteriormente fazer uma leitura interseccionada. Para essa teórica, no sistema-mundo moderno-colonial, todas essas condições são produzidas pelos sistemas de opressão, sendo, portanto, construções imbricadas. Entretanto, nem as correntes tradicionais do movimento negro nem as do feminismo (branco) tradicional realizam leituras que correspondem integralmente a perspectivas das mulheres negras em diáspora. Daí, a relevância de desenvolver um feminismo com recorte racial e que combata simultaneamente o domínio patriarcal e racista (SEBASTIÃO, 2010, p. 66).

    O feminismo negro surge para denunciar e romper o silenciamento imposto em torno das experiências das mulheres negras, perpassadas por múltiplas formas de opressão, passando, assim, a orientar e a marcar a produção intelectual e política das feministas afrodescentes (SANTOS, 2007). Para Curiel (2007), o feminismo negro tem contribuído para visibilizar tais aportes teóricos, rompendo com uma visão patriarcal na qual os saberes das mulheres são deslegitimados ou reduzidos a meros testemunhos e nunca qualificados para a produção científica, além de construir epistemologias que analisam articuladamente o racismo, o sexismo e o classismo que afetam as vidas das mulheres negras.

    A filósofa e feminista Djamila Ribeiro (2017) ressalta a relevância de as mulheres negras falarem por si como forma de enfrentar as opressões que as silenciam e de resistir à colonização dos seus corpos e saberes. Quando as mulheres negras se autodefinem, elas saem do lugar de objetificação e desumanização que socialmente lhes é destinado (COLLINS, 2016) e desconstroem os estereótipos que as engessam em papéis, tais como mulata, doméstica e mãe preta (GONZALEZ, 1984). Desse modo, a recusa ao estereótipo e o descortinar ativo de seus modos de agenciamento são ferramentas cruciais contra as políticas de aniquilamento, contra o genocídio (WERNECK, 2017, p. 123).

    As mulheres negras diariamente ressoam gritos-silenciosos (ou silenciados) de violência, solidão, dor, exploração, medo, angústia, luta, resistência, amor, afeto, cuidado. Pode parecer paradoxal vincular grito e silêncio, mas esse contraste possibilita ter a dimensão das estratégias cotidianas de enfrentamento acionadas por essas mulheres ao mesmo tempo que permanecem com pouca visibilidade. São elas que têm preservado as comunidades negras, resistido ao estado de violência e morte presentes desde a diáspora africana/negra.

    Por isso, Carla Akotirene, doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia, ao articular os pensamentos de Audre Lorde, escritora e feminista estadunidense de ascendência caribenha, e Achille Mbembe, escritor e filósofo camaronês, destaca que enquanto as mulheres brancas têm medo de que seus filhos possam crescer e serem cooptados pelo patriarcado, as mulheres negras temem enterrar seus filhos vitimados pelas necropolíticas, que militar e confessionalmente matam e deixam morrer (AKOTIRENE, 2018, p 17).

    As mulheres negras são as principais testemunhas do genocídio negro, como sublinha Luciane de Oliveira Rocha (2017), doutora em Antropologia sobre o tema diáspora africana, uma vez que o sofrimento delas decorre tanto da violência que recai sobre seus corpos quanto da brutalidade efetuada contra os seus/suas filhos(as), parentes e amigos(as). Desse modo, essa pesquisadora conclui que escutá-las é fundamental para compreender como se constituem os processos genocidas e como são tecidas formas de resistência ao Estado antinegro. Além disso, é necessário romper com abordagens nas quais as dores das mulheres não são reconhecidas como próprias, porque elas ainda são desenhadas exclusivamente como mães que choram a dor da perda (FLAUZINA, 2016, p. 70).

    Não há mais lugar para simplesmente assistir de modo passivo o avanço de massacres de corpos negros. Assim sendo, as pessoas e organizações que lutam contra o genocídio negro não têm outra escolha a não ser resistir e lutar por um mundo melhor (VARGAS, 2010). Em vista disso, as teorizações sobre colonização, diáspora e genocídio devem dar conta tanto dos cruzamentos de estruturas concretas de opressão quanto do engajamento em lutas políticas contra a antinegritude.

    Desse modo, torna-se urgente e necessário aprender com o que é informado pelas experiências das mulheres negras. Isso implica em sair do lugar confortável proporcionado pela produção do silenciamento epistêmico e questionar as leituras tradicionais sobre o genocídio que relegam a segundo plano as dinâmicas de gênero (FLAUZINA, 2016), com o objetivo de descortinar a cegueira produzida sob as lentes do racismo patriarcal heteronormativo (WERNECK, 2017, p. 123) que sustenta os apagamentos das vivências de mulheres negras em contextos de violência. Corroboramos, então, com Ana Luiza Pinheiro Flauzina (2016), doutora em Direito e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que não se pode hierarquizar o sofrimento negro. Por conseguinte, é premente o enfrentamento teórico e político da estratificação e da compartimentalização do genocídio negro, de modo a ressituar as leituras sobre as violências e resistências ao Estado genocida antinegro que atravessam as vivências das meninas, das jovens e das mulheres negras.

    Nesse sentido, assumimos o compromisso

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