O Chamado de Cthulhu
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'A coisa mais misericordiosa neste mundo, penso eu, é a incapacidade da mente humana de correlacionar tudo o que nele existe. Nós vivemos numa pacata ilha de ignorância em meio a mares escuros vastos de infinito, e não era a intenção que velejássemos muito longe. As ciências, cada uma vagando em sua própria direção, até hoje pouco mal nos causaram; no entanto, algum dia a junção de conhecimentos desconexos nos abrirá os olhos para visões tão terríveis da realidade, e da nossa posição assustadora em seu meio, que nós deveremos ou enlouquecer diante da revelação ou fugir da sua luminosidade fatal, rumo à paz e a segurança de uma nova idade das trevas.'
O parágrafo acima dá início a este que é o conto mais conhecido de H. P. Lovecraft, o homem que revolucionou a literatura de horror fantástico para sempre. Embora tenha em vida se limitado a escrever em revistas pulp, que ele próprio considerava uma 'literatura menor', pouco após a sua morte os seus amigos deram conta de publicar os seus contos em livros, e a partir daí a sua fama no meio do horror, da fantasia e da ficção científica só fez crescer. Então, o jovem que se encantava com os livros de Edgar Allan Poe e Lord Dunsany acabou influenciando gerações de escritores, notadamente Robert E. Howard (o criador do Conan, que foi seu amigo), Stephen King e Alan Moore. Mas ele não parou por aí: o seu impacto na cultura pop atual é imenso, inspirando games, RPGs, músicas, filmes etc.
Na cosmologia de Lovecraft, os chamados Mitos de Cthulhu, o ser humano é uma coisa insignificante, que mal compreende as Coisas imensas e antiquíssimas que habitam o seu mundo, como deuses anciãos e raças multimilenares. E isto é tudo o que poderá ser revelado aos não iniciados em seus contos; afinal não queremos correr o risco de enlouquecer os desavisados...
O tradutor.
***
Número de páginas
Equivalente a aproximadamente 55 págs. de um livro impresso (tamanho A5).
Sumário (com índice ativo)
- I. O horror na argila
- II. A história do inspetor Legrasse
- III. A loucura vinda do mar
- Epílogo: A vida de H. P. Lovecraft
[ uma edição Textos para Reflexão distribuída em parceria com a Bibliomundi - saiba mais em raph.com.br/tpr ]
H. P. Lovecraft
Howard Phillips Lovecraft (1890 — 1937), mais conhecido por H. P. Lovecraft, foi um escritor estadunidense que revolucionou o gênero de terror, atribuindo-lhe elementos fantásticos típicos dos gêneros de fantasia e ficção científica.
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Book preview
O Chamado de Cthulhu - H. P. Lovecraft
I. O horror na argila
De tais poderes grandiosos ou entidades é concebível que possa haver restado um vestígio [...] um vestígio de uma era regressa onde [...] a consciência era manifestada, quem sabe, em contornos e formas há muito submersos diante da maré do avanço da humanidade [...] formas das quais tão somente a poesia e as lendas puderam guardar alguma memória fugidia, e então os chamaram de deuses, monstros, criaturas míticas de todos os tipos e espécies [...].
(por Algernon Blackwood – isto foi encontrado entre os papéis do já falecido Francis Wayland Thurston, em Boston)
A coisa mais misericordiosa neste mundo, penso eu, é a incapacidade da mente humana de correlacionar tudo o que nele existe. Nós vivemos numa pacata ilha de ignorância em meio a mares escuros vastos de infinito, e não era a intenção que velejássemos muito longe. As ciências, cada uma vagando em sua própria direção, até hoje pouco mal nos causaram; no entanto, algum dia a junção de conhecimentos desconexos nos abrirá os olhos para visões tão terríveis da realidade, e da nossa posição assustadora em seu meio, que nós deveremos ou enlouquecer diante da revelação ou fugir da sua luminosidade fatal, rumo à paz e a segurança de uma nova idade das trevas.
Os teosofistas têm especulado acerca da grandeza abissal do ciclo cósmico no qual o nosso mundo e a raça humana não passam de incidentes passageiros. Eles vêm aludindo a estranhos vestígios usando termos que gelariam o sangue dos incautos, não fossem mascarados por um tolo otimismo. Mas não foi deles que surgiu o breve vislumbre de éons proibidos que me arrepia quando penso no assunto, e me enlouquece quando aparece em meus sonhos.
Tal vislumbre, como todos os pavorosos vislumbres da verdade, surgiu de uma conexão acidental de duas coisas separadas – neste caso, um recorte de jornal antigo e as anotações de um professor falecido. Eu espero que ninguém mais consiga chegar a esta conexão; se eu sobreviver, é certo que jamais irei revelar propositadamente elo algum desta corrente hedionda. Eu penso que o professor também tinha a intenção de manter silêncio acerca da parte que sabia, e que teria destruído as suas anotações caso não fosse surpreendido por uma morte tão súbita.
O meu conhecimento do caso começou no inverno de 1926-27, com a morte do meu tio-avô George Gammell Angell, professor emérito de línguas semíticas na Universidade Brown, em Providence, Rhode Island. O professor Angell era amplamente reconhecido como uma autoridade em inscrições arcaicas, e era frequentemente consultado por diretores de museus importantes acerca do tema; assim sendo, o seu falecimento aos noventa e dois anos deve ser lembrado por muitos.
Localmente, no entanto, tal interesse foi intensificado pela causa da morte ser um tanto obscura. O professor sucumbiu enquanto retornava da barca de Newport; segundo testemunhas, foi uma queda súbita, após um encontrão com um negro com aparência de marujo que havia surgido de um dos pátios escuros e sinistros que podiam ser encontrados na encosta íngreme que servia de atalho da praia até a sua casa, na Williams Street.
Os médicos foram incapazes de encontrar qualquer doença visível, porém chegaram à conclusão, após debates cheios de perplexidade, que alguma lesão obscura no coração, induzida pela subida de um morro tão íngreme para um homem de idade avançada, foi a responsável pela morte. Na época eu não vi razão para divergir desta conclusão, mas ultimamente eu tenho me inclinado a questioná-la – e até mais do que isso.
Como herdeiro e executor legal de meu tio-avô, uma vez que ele morreu viúvo e sem filhos, era necessário que eu examinasse seus papéis com certo rigor; e para tal propósito eu transportei todo o seu conjunto de caixas e arquivos para a minha casa em Boston. Muito do material de onde surgiram as minhas correlações será publicado mais tarde pela Sociedade Americana de Arqueologia, mas havia uma caixa que considerei excessivamente enigmática, e senti que não deveria ser exibida aos demais.
Ela tinha sido trancada, e eu não havia achado a chave até que me ocorreu a ideia de examinar o chaveiro pessoal que o professor sempre carregava em seu bolso. Então de fato eu consegui abri-la, mas logo me deparei com outra espécie de barreira, maior e ainda mais impenetrável. Pois qual poderia ser o sentido daquele bizarro baixo-relevo em argila com rabiscos, garranchos e entalhes desconexos que eu via em minha frente? Acaso o meu tio teria, no final da vida, se tornado um homem crédulo dos embustes mais superficiais? Eu decidi buscar pelo escultor excêntrico que foi responsável por esta aparente perturbação da paz na mente de um velho.
A escultura em baixo-relevo era um retângulo rústico com menos de três centímetros de espessura e por volta de treze por