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Filandras
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Filandras

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FILANDRAS marca a estreia da escritora mineira Adélia Prado. Coletânea de contos que tratam de amores, desejos, frustrações e sonhos. FILANDRAS, seu primeiro inédito desde 1996, revela uma contista sedutora e sutil por trás da aclamada poeta Adélia. Segundo dicionários Filandras seriam, entre outras definições, ""fios delgados e longos"", ""flocos que esvoaçam pelo ar e cobrem os vegetais"". Os contos de Adélia neste livro são realmente filandras - delicados fios esvoaçantes. Quando os alcançamos se desfazem como sonhos. As 43 histórias do livro podem, certamente, ser lidas separadamente. Mas ganham outra dimensão quando se começa a unir os fios, os pequenos detalhes que revelados em cada uma delas permitem construir a vida de seus personagens. As personagens de FILANDRAS - mulheres simples do interior e seu cotidiano - revelam aos poucos uma personalidade forte, mesmo quando submissas. Todos os contos têm como personagem principal mulheres. 
LanguagePortuguês
PublisherRecord
Release dateMar 9, 2021
ISBN9786555870718
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    Filandras - Adélia Prado

    Uma dor

    Seria filho de uma irmã de meu pai que só então conheci, tia Lita, morava em Goiás, parece, com uns outros parentes, história nunca devidamente deslindada. Tinha uns doze anos quando apareceram em nossa casa, apareceram e ficaram, ela por um mês e ele para a vida toda. Não gostei do menino, branco raquítico, nariz e cheiro diferentes dos nossos, ocupando minha mãe que lhe trocava as fraldas sem o carinho com que trocava as de Celina, pequenazinha ainda. Me fazia mal o constrangimento da mãe — ao menos ela tratasse bem o menino para me descansar de ser má. Difícil aceitá-lo como primo — ou irmão, como queria o pai —, menino de pés chatos e certamente de futuras sobrancelhas espessas como tia Lita. A Corina, louca por criança, quis ficar com ele, antes tivesse ficado. Tremia na minha cama com a nervosia de meu pai xingando ele de noite, entendesse o menino que precisava levantar cedo no outro dia para pegar no batente. Me assustava o lado selvagem do meu pai, sempre tão paciente com o choro da Celininha. A mãe, aguentando tudo por amor de Deus, cumpria os mandamentos, Celininha encantada com o neném, um bonequinho vivo, Ariela só querendo saber de rua, sobrava para mim, mocinha, a tarefa de, tal qual minha mãe, ser boa por amor de Deus. Não beijava nem cheirava o Henriquinho, só Celininha o fazia, talvez minha mãe, escondido, quando sentia pena demais. Ri pra ele uma vez, fui espreitá-lo na rede, ele estava acordado e riu pra mim, faz cinquenta anos. O pai e a mãe já morreram, Ariela casou-se, Celina foi pro convento, fiquei sozinha, não tenho ninguém pra me mentir: você não muda, hein, Afonsa?

    Apareça, Henriquinho, dê notícias, vem morar comigo.

    Femina

    A Ivete ligou dizendo-se preocupada com a Ester deprimida demais. Grande novidade, deprimido na minha família, já sabia. Está amolada, diz ela, porque os filhos não deixam mais os meninos pra ela vigiar, achando que está velha, não aguenta mais o batente. Imagina, ela disse, criei os filhos e não aguento dois netos? É claro que não está deprimida por causa disto, está é sofrendo daquela doença ingrata, a de mil sintomas de total gravidade e gravidade nenhuma, porque nem é doença, é menopausa, um ‘meno male’, afinal. Não tem cura, é democrática, nos põe os olhos levemente aflitos, buscando na ex-colega de escola nossa imagem perdida, a doente sem doença, como me chamou o doutor. Também arrumei agora uma cabeça zonza, a ideia exata de ter um parafuso frouxo, ou, no meu caso, apertado demais, me doem as articulações dos maxilares, como se eu tivesse um cabresto. Várias vezes por dia fico de boca aberta para ter um descanso. Não acho graça em quase nada, em dez minutos esgoto qualquer passeio e quero voltar para o meu quarto. O homeopata — será que escarnecendo de mim? — falou: olha, dona Afonsa, nada de hormônios, envelhecer é isto mesmo, a gente vai se mineralizando, chegou a dizer o que — no pensamento dele — é de uma lógica brutal, que a osteoporose é sinal de progressiva espiritualização. Pior é que concordo: Tu és pó e em pó te tornarás, somos cinza, caminhamos no inverso sentido de uma fênix. Deveras, dá muita paz não relutar contra o destino, fatalidades repousam. Em minha casa diziam: ‘velha saliente: está na hora é de pegar um rosário e ainda caçando indaca de namoro’. Estavam grosseiramente certos, mais certos em todo caso que os marqueteiros da terceira idade. A velhinha dizia na televisão, a velhinha da romaria, temos que sofrer neste mundo, a cara quase infantil, cara de criança, de velha feliz, com mais estradas que um mapa, velha para um pintor, com só uma coisa nova, o seu entrepernas, velhinha que namora e casa outra vez, sabe como? Sabina vai pensar que a estou criticando por tingir o cabelo, não é nada disso, juro que não. Só tento dizer que a alma não envelhece, mas é quase impossível que me entenda. Levar um pensamento até o fim é como colocar n’água um bastão, sua imagem entorta na hora, ainda que ele continue direito na sua concreteza. Afinal, afinal nada, porque nada tem fim, muito menos o sofrimento do mundo.

    Final feliz

    E o locutor da festinha continuou empolgado, fazendo bonito pra sua mulher, que deixara, naquela noite, comparecer ao seu trabalho, tendo-lhe adquirido, ele próprio, o convite. ‘… porque, além de militar reformado da ppmg, é ainda o proprietário do animado Bar Central, o avô da nossa Lesliene, a feliz aniversariante desta noite.’ Quando disse ‘nossa Lesliene’, acreditou desapontado que a mulher não salvava sua inventividade narrativa. Arrependeu-se de tê-la trazido e insistiu com o moço do vídeo para que filmasse mais à esquerda do palco, a mesa da dona da festa. De verdade, queria mesmo é que a mãe de seus filhos não aparecesse no filme; uma mulher que não passava uma sexta-feira sem encher latas e latas de biscoitos e só sabia ir em festa daquele mesmo jeito: saia preta, blusa de seda, por fora, pra disfarçar as ancas e arquinho na cabeça — putisgrila —, desse tinha vários de diversas cores, devia se achar nua sem o arco nos cabelos, logo ele, um homem conhecido, com aquele talento incrível para animar festas. ‘… agora, senhoras e senhores, o momento tão esperado em que a nossa — olhou de novo pra mulher olhando pra ele embevecida, se esquecendo de ficar em pé —, a nossa festejada Lesliene, a menina-moça da noite, vai apagar as merecidas velinhas.’ Ai, será que estava certo dizer ‘merecidas velinhas’? Achou ótimo ser o locutor e estar dispensado de dançar com a mulher, que não conseguia terminar o pratinho, bebendo guaraná em pequenos goles. Pensou ter sido um erro tê-la trazido à festa. Se sentia desconfortável, inseguro dos adjetivos, querendo tirar a gravata e mostrar pras pessoas o que o roqueiro doidão mostrou durante um show e acabou preso. Gente do céu, o que está acontecendo comigo? Olhou para o avô da Lesliene. Um filho da mãe, esse ‘militar reformado’, espancador de presos. Nem que a marica estica eu falo mais o nome dele aqui. E essa Lesliene está me saindo uma perua e tanto. Então isto é salto para uma menina de quinze anos? ‘… e agora, senhores — esqueceu das senhoras —, o Toniquinho do Arlindo vai tocar a valsa que a aniversariante dançará com o pai dela.’ Não disse ‘o talentoso músico Antônio Miranda, filho do nosso popular Zico Miranda, tocará a valsa que Lesliene dançará com o seu progenitor’. Meio escondida por uma coluna do salão, sua mulher ainda não terminara os salgadinhos. Finíssima. Lembrou que ela lhe aconselhara trocar de camisa, ‘você fica melhor com a de linho creme’. Teve vontade de chorar e ao mesmo tempo sentiu raiva daquele amor paciente e silencioso, capaz de morrer por ele.

    Foram pra casa calados. Quando

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