Da roda ao auditório: Uma transformação do samba pela Rádio Nacional
By Lira Neto
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Entretanto, valorizou-se igualmente o garimpo em fontes documentais. Recorreu-se a jornais e revistas de época, tendo sido consultado um total de 30 (trinta) publicações do gênero, na Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Também foram ouvidas centenas de composições, a partir dos acervos dos pesquisadores Almirante, José Ramos Tinhorão e Humberto Franceschi, todos atualmente sob custódia do Instituto Moreira Salles. Depoimentos históricos, gravados pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS-RJ) e pelo pesquisador Jairo Severiano (que gentilmente os cedeu em forma de cópias em CD) receberam idêntica atenção.
Para completar, procedeu-se a minuciosa consulta aos arquivos sonoros da Rádio Nacional, hoje disponíveis na sede do MIS-RJ. Com base nesse conjunto de fontes, o objetivo geral foi o de analisar o papel e o impacto da Rádio Nacional nas transformações do moderno samba urbano, ao longo da chamada Época de Ouro da música popular brasileira (período compreendido entre o início da década de 1930 e meados da década subsequente).
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Da roda ao auditório - Lira Neto
© Lira Neto. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Lira Neto, 1963-
Da roda ao auditório : uma transformação do samba pela Rádio Nacional / Lira Neto. - São Paulo : EDUC, Fortaleza : Armazém da Cultura, 2019.
1. Recurso on-line: ePub
ISBN 978-85-283-0661-3
Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.
Acesso restrito: http://pucsp.br/educ
Disponível no formato impresso: Da roda ao auditório : uma transformação do samba pela Rádio Nacional / Lira Neto. - São Paulo : EDUC, Fortaleza : Armazém da Cultura, 2019. ISBN 978-85-283-0647-7.
1. Rádio Nacional (Brasil). 2. Cultura - Modelos semióticos. 3. Rádio - Programas - Brasil - História. 4. Indústria cultural - Brasil. 5. Samba - Brasil - História e crítica. I. Título
CDD 784.50981
791.440981
306.4
Bibliotecária: Carmen Prates Valls - CRB 8A./556
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
José Luiz Goldfarb
Produção Editorial
Sonia Montone
Revisão
Zeta Studio
Editoração Eletrônica
Gabriel Moraes
Waldir Alves
Capa
Gabriel Moraes
Administração e Vendas
Ronaldo Decicino
Produção do ebook
Waldir Alves
Revisão técnica do ebook
Gabriel Moraes
Rua Monte Alegre, 984 – sala S16
CEP 05014-901 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ
FrontispícioPONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Maria Amalia Pie Abib Andery
EDITORA DA PUC-SP
Direção: José Luiz Goldfarb
Conselho Editorial
Maria Amalia Pie Abib Andery (Presidente)
Ana Mercês Bahia Bock
Claudia Maria Costin
José Luiz Goldfarb
José Rodolpho Perazzolo
Marcelo Perine
Maria Carmelita Yazbek
Maria Lucia Santaella Braga
Matthias Grenzer
Oswaldo Henrique Duek Marques
Samba,
Negro, forte, destemido,
Foi duramente perseguido,
Na esquina, no botequim, no terreiro.
Samba, inocente, pé-no-chão,
A fidalguia do salão,
Te abraçou, te envolveu,
Mudaram toda a sua estrutura,
Te impuseram outra cultura,
E você nem percebeu.
Nelson Sargento
Liberada aos caprichos do tempo, a obra poética oral oscila na indeterminação de um sentido que ela não cessa de desfazer e recriar. O texto oral pede uma interpretação também, movente. A energia que o sustém e compõe suas formas, a cada performance, recupera a experiência vivida e a integra a seu material. As questões que o mundo lhe coloca não cessam, por sua vez, de se modificar; bem ou mal, a obra modifica suas respostas.
Paul Zumthor
Nota prévia – para Jerusa Pires Ferreira
Depois de duas décadas de trabalho na imprensa – como repórter, editor e colunista de diversos jornais e revistas do país – eu me impusera, com mais de 50 anos, o desafio de uma progressiva reaproximação com a universidade. Após doze livros publicados, eu instituíra como meta aprofundar minha trajetória profissional e intelectual, por meio de um percurso acadêmico mais sólido. Foi nesse processo de reencontro com o ambiente universitário que conheci a querida e saudosa Jerusa Pires Ferreira, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Este livro é derivado de minha dissertação de mestrado, que teve Jerusa como orientadora – após eu ser apresentado a ela por um amigo em comum, Gilmar de Carvalho, principal incentivador de minha decisão pessoal de retorno à academia. Recordo que, quando lhe entreguei a primeira versão do trabalho, Jerusa me devolveu a papelada com um terrível veredicto: Está horrível. Reescreva tudo!
. Fiquei atônito. Pedi-lhe explicações. Não queira emular o pior da escrita acadêmica. Escreva do jeito que sabe e gosta de escrever
, recomendou-me. Trabalhe o pensamento complexo, mas de forma límpida, sem muletas metodológicas. Não tenha medo de valorizar a narrativa. Corte todas as citações gratuitas. Elimine o tal de primeiro capítulo teórico. Incorpore a teoria ao prazer do texto.
O conselho de Jerusa libertou-me das amarras às quais eu próprio havia me enredado, na vã expectativa de vir a corresponder a um suposto texto científico canônico. Libertação que me permitiu escrever em formato muito mais palatável, prazeroso e instigante do ponto de vista pessoal e acadêmico. Pouco ou quase nada do que está nas páginas deste livro foi modificado em relação ao trabalho final apresentado à banca examinadora, que o aprovou com nota máxima, de forma unânime.
Com Jerusa – do mesmo modo que com os professores Amálio Pinheiro e Norval Baitello Jr., meus outros dois principais interlocutores no mestrado em Comunicação e Semiótica da PUC-SP –, experimentei o encontro do conhecimento com a alegria, a confluência do pensamento com o deleite, a síntese da reflexão com o prazer. É para ela, portanto, Jerusa, que este livro é dedicado. Sua luminosa inteligência e sua extrema sensibilidade estão a nos fazer muita falta.
Apresentação
Da roda ao auditório: o samba como poética do simultâneo
O modo como Lira Neto vê o samba nos obriga, para além das categorias e de suas terminologias dualistas usuais (antigo e moderno, centro e periferia, nacional e internacional, identidade e oposição, etc.), a buscar um outro tipo lógico: trata-se de um ritmo em expansão contínua, desde as suas bases plurais nativo-afro-mestiças (de assimilação múltipla de ritmos e linguagens) até à atualidade, com a configuração movediça de um arquipélago. Algumas ilhotas brotam, outras afundam, barrancos deslizam, segmentos telúricos ficam à deriva, esgalhos sobrenadam em busca de roteiro, porém os corpúsculos do batuque mantêm sua capacidade tradutória e incorporadora dos materiais musicais, dançantes e letristas mais diversos. Não se pode falar aqui de uma evolução linear, mas de um desdobramento por obliquidades progressivo-regressivas em que a própria noção de tempo é revertida ao modo do Fui-o outrora agora
, de Fernando Pessoa.
E toda essa complexidade interativa se dilata num continuum porque, à compactação entre história e presente cotidiano, síncrono-diacrônica, se cola a relação dentro/fora entre o samba, como canção popular, e o ambiente acústico da paisagem cultural dos bairros e terreiros, como uma espécie de fermento afetivo dos sons, cantos, rimas e requebros, que funciona como um surdo ou cuíca de fundo geologicamente instalados na vida em carne viva. Lira mostra muito bem esse campo de interações no terreiro de Tia Ciata:
O vocábulo samba
era utilizado para nomear certo tipo de reunião comunitária festiva, um determinado ambiente cultural onde estaria presente um extenso conjunto de linguagens e energias criativas, cuja composição abarcava itens de vestuário, gestos, crenças, sons, cores, vozes, cheiros e sabores, compreendendo assim um aglomerado de intercorrências sonoras, cromáticas, gustativas, táteis e olfativas. Ninguém fazia ou ouvia samba. As pessoas iam ao samba. (pp. 22-23)
Muitíssimo importante a discussão sobre o confronto e/ou diálogo entre as inúmeras formas de samba e o mercado fonográfico, o rádio e o auditório. Aí foi se dando, entre nós, o embate entre os modos de invasão e cooptação político-econômicos do capitalismo e as células rítmicas do samba, entre as novas tecnologias e as formas populares de energia social e multitudinária armazenadas na relação corpo/cultura/natureza dentro de um ambiente ainda fortemente marcado pela voz/língua e por suas múltiplas performances e repertórios. Valeu e vale para nós algo que Walter Benjamin, nas Teorias do fascismo alemão, em 1930, enunciou a respeito do uso das novas tecnologias sob o fascismo, ao alertar para o risco
de uma aceleração dos recursos técnicos, dos tempos, das fontes de energia, etc., os quais em nossa vida particular não encontram aproveitamento pleno, adequado e, no entanto, insistem para se justificar. Na medida em que renunciam à interação harmônica, justificam-se na guerra, a qual com suas destruições prova que a realidade social não estava madura para fazer da técnica seu órgão, e que a técnica não estava suficientemente forte para dominar as forças elementares da sociedade. Sem querer diminuir as causas econômicas da guerra, pode-se afirmar que a guerra imperialista, em seu aspecto mais duro e funesto, é determinada também pela enorme discrepância entre os gigantescos meios tecnológicos, por um lado, e um mínimo conhecimento moral desses meios, por outro lado.
É aí, nesses tempos, que entram os discos, a Rádio Nacional e os programas de auditório em Lira Neto: de uma parte contaminados pelas políticas de boa-vizinhança
fomentadas pelo capitalismo belicista estadunidense na segunda guerra; de outra desencadeando, via modos de encadear ritmicamente os códigos vocais vulcânicos nas novas técnicas microfônicas de cantar, um outro vínculo afetivo com o público ouvinte cantor e uma outra compreensão da popularidade que extrapolam a mera noção de massa
e a dualidade erudito/popular. O desempenho vocal/gestual de Carmen Miranda ou Dorival Caymmi, Carlos Gardel na Argentina e Bola de Nieve em Cuba, entre tantas outros, revertia, assim, os sistemas de poder radiofônicos ao inocular nos