Corpo, transborda: Educação somática, consciência corporal e expressividade
By Marina Caron
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About this ebook
A autora compila 20 anos de pesquisa e propõe um olhar profundo sobre o corpo psicomotor e sua necessidade expressiva. Aborda questões sobre a organização corporal e o movimento, propondo procedimentos de autoconhecimento, consciência corporal e investigação poética. Ao detalhar sua prática e suas ideias, Marina oferece sugestões de vias de acesso que podem abrir caminhos para a criação artística. Além disso, faz uma ponte inédita com o trabalho de Suzanne Piret e Marie-Madeleine Béziers, atrelando a coordenação psicomotora às ferramentas criativas do ser humano, e retrata sua experiência com a educação somática de crianças.
Livro fundamental para artistas da cena, da dança, do teatro e da performance, educadores somáticos, profissionais da fisioterapia e leitores interessados no próprio corpo e em sua potência expressiva.
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Book preview
Corpo, transborda - Marina Caron
Prefácio
Vira bicho, Marina, vira bicho!
Em fevereiro de 2007, eu estava num dos intervalos do meu curso sobre a coordenação motora quando recebi um telefonema da Marina. Ela contou que estava em pleno trabalho de parto havia muitas horas e que a médica havia estipulado um limite de tempo para que o bebê nascesse; do contrário, precisariam partir para a cesariana.
Marina me perguntava o que fazer. Ela havia sido minha paciente durante toda a gestação; tínhamos trabalhado os ossos da bacia, ela conhecia os movimentos do nascimento, contava com uma excelente consciência de seu corpo e era jovem. Tudo estava disponível para acontecer. Naquele momento, me ocorreu provocar-lhe a instintividade
. Marina seguiu meu conselho e virou fera
! Pouco tempo depois, nasceu Beatriz.
Com seu segundo filho, Thiago, pude acompanhá-los no pós-parto.
Agora nasce seu terceiro filhote
: Corpo, transborda.
É um grande prazer estar aqui com ela nesta jornada com as palavras escritas.
Escrever sobre movimento, dança, consciência corporal e conseguir captar o leitor não é uma tarefa simples. Marina faz isso com maestria. O livro é delicioso de ler e cheio de surpresas. Ao final de cada capítulo, nos perguntamos qual será a próxima viagem pela qual ela nos conduzirá.
É interessante como ela consegue trazer conceitos complexos de diversas áreas do conhecimento e apresentá-los de forma clara. Isso ocorre, talvez, porque o tempo todo ela indica como os aplica em suas práticas com seus alunos. Há também os vídeos em forma de QR code, que dão corpo para as suas ideias.
O corpo transborda em muitas camadas. O livro trata do processo criativo de atores e bailarinos e de como suas propostas de experimentação do corpo encaminham a construção dos personagens ou as coreografias. Para esses profissionais, é leitura obrigatória. Porém, o livro alcança um público muito mais amplo, pois aponta os processos internos de autoconhecimento e de superação de desafios pessoais. Nesse sentido, tem um aspecto terapêutico.
Há também uma outra camada que é central em sua formação e abordagem: o método da coordenação motora de Piret e Béziers. Mais uma vez, ela esclarece e se apropria de forma criativa desse complexo trabalho criado pelas autoras francesas. E vai fundo nisso! Chega aos micromovimentos em forma de oito na coluna vertebral. Isso é fantástico.
Participei da revisão dos conceitos que tangem à psicologia e à coordenação motora, assuntos pelos quais transito em minha vida profissional.
Há ainda as belíssimas ilustrações de Macê Stevaux, os movimentos de Marcelle Lemos e Mateus Menoni, depoimentos de alunos e um capítulo delicioso no qual ela aplica seus conceitos nas aulas de dança para crianças.
Este trabalho, que começou como pesquisa de dissertação de mestrado profissional em Artes da Cena pela Escola Superior de Artes Célia Helena, orientada por Sonia Machado de Azevedo, transbordou
da academia e ganhou o mundo! Sorte nossa.
Vai, Marina; escreve, Marina
! Que seja o primeiro de vários.
André Trindade
Psicólogo e psicomotricista
1
Percurso em movimento
Para começar este livro-relato, conto uma experiência importante na minha carreira de dança, na qual minha pesquisa se fundamenta.
Em 2002-2003, estudei na London Contemporary Dance School at The Place¹, em Londres. A proposta desse curso de aperfeiçoamento é que o pesquisador crie três peças coreográficas sobre o mesmo tema e com a mesma abordagem corporal. A abordagem escolhida foi o trabalho da coordenação motora de Piret e Béziers, meus estudos e minhas investigações durante os anos que antecederam essa residência na Inglaterra.
O tema demorou a ficar explícito para mim. Eram muitas perguntas sobre liberdade, ninho, morada, migrações, entre outras. Fiz três peças: Anybody free? (Alguém é livre?), Flight restrictions (Restrição de voo) e o solo Migration, migraines (Aves migratórias).
No solo final, usei um áudio que editei de entrevistas com bailarinas e bailarinos estrangeiros que moravam em Londres, em que eu perguntava: o que é ninho? E, para minha surpresa, todos eles começavam a responder em inglês e terminavam em sua língua original. Percebi um retorno e uma necessidade de voltar para casa
, usar a língua natal ao falar dos próximos voos.
Eu, que com 25 anos queria romper regras e achava que para ser livre bastava deixar o país e a própria história, percebi ali que a liberdade estava dentro do próprio corpo e intimamente ligada à condição de fala e de expressão. A liberdade seria adquirida no trabalho interno e na permissão íntima. Entendi que eu precisava trabalhar a minha capacidade de abrir espaços diminuídos em mim, lidar com as minhas amarras. E para isso era preciso transbordar, deixar sair. O corpo precisa transbordar para que possamos enxergar e depois lidar com o que somos, o que queremos e o que nos acontece.
Na volta ao Brasil, fiz uma parceria fundamental na minha vida e na minha carreira com o ator e diretor teatral Bruno Perillo. Estabeleci um elo profundo com o teatro e passei a focar meu trabalho mais e mais nas questões psicomotoras e na potência da dramaturgia do corpo, inerente e intrínseca, sobre a qual se constrói a dramaturgia teatral. Na área de Expressão Corporal no Célia Helena², na formação do artista da cena, e também com o trabalho de consciência corporal para crianças, eu sabia que queria trabalhar o autoconhecimento, em uma prática encorajadora que focasse a liberdade de expressão. Um trabalho com o corpo que possibilitasse que a pessoa entrasse em contato com seus medos e desejos.
Corpo, transborda. Sigo em busca de uma prática de integração e transbordamento. Sugiro, aqui, quatro procedimentos de investigação, que chamarei de vias de acesso.
Exponho relatos de aulas e ensaios de estudantes em formação em teatro no curso profissionalizante e no bacharelado do Célia Helena que vivenciaram experiências comigo. Utilizo também pequenos vídeos que exemplificam a prática no corpo. Esses relatos em forma de cartas-depoimento e os QR codes, vivenciados por Marcelle Lemos³ e Mateus Menoni⁴, além de serem uma comprovação do trabalho, um exemplo nos corpos, abrem um campo para experiências futuras para outros artistas da cena, e também para o leitor interessado em conhecer seu corpo e desenvolver uma linguagem expressiva pelo movimento.
Usufruo da sensibilidade dos desenhos de Macê Stevaux⁵ para trazer imagens poéticas do corpo. E uso meus sonhos como material também, porque acredito que o universo onírico promove movimento expressivo, assim como o movimento expressivo abre espaço para os sonhos e símbolos inconscientes.
Eu poderia escolher outros relatos e sei que, inevitavelmente, virão novos procedimentos com novos transbordamentos, pois o corpo é fluido.
Composição
Esta investigação passa pelo meu corpo.
Eu já dançava profissionalmente fazia anos. Primeiro como bailarina clássica e depois em dança contemporânea como aluna de graduação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mas não sentia que podia me expressar inteiramente. Havia sempre uma frustração após as apresentações, como se houvesse algo preso ou mal coordenado em mim.
A repetição de exercícios me trazia habilidades específicas, me tornava capaz de executar movimentos cada vez mais complexos, mas ainda assim eu não sentia que podia me expressar.
Não por acaso, tive hipoglicemia e machucados frequentes. O corpo sente a desconexão e sabe a hora de pedir casulo. Foi exatamente na recuperação de lesões que conheci o caminho da consciência corporal e pude escutar meu corpo por dentro.
Tive a sorte de chegar ao Estúdio Nova Dança⁶, lugar de referência de trabalhos somáticos em São Paulo, e, ali, pesquisar intensamente com diversos profissionais visionários, como Lu Favoreto, Tica Lemos,