Juventude e pensamento conservador no Brasil
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Juventude e pensamento conservador no Brasil - Katya Braghini
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Anna Maria Marques Cintra
EDITORA DA PUC-SP
Direção: Miguel Wady Chaia
Conselho Editorial
Anna Maria Marques Cintra (Presidente)
José Rodolpho Perazzolo
Ladislau Dowbor
Karen Ambra
Lucia Maria Machado Bógus
Mary Jane Paris Spink
Miguel Wady Chaia
Norval Baitello Junior
Oswaldo Henrique Duek Marques
Rosa Maria B. B. de Andrade Nery
Katya Braghini
juventude e pensamento conservador no Brasil
FAP.TIF
São Paulo
Copyright © Katya Mitsuko Zuquim Braghini. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Braghini, Katya Mitsuko Zuquim
Juventude e pensamento conservador no Brasil [recurso eletrônico] / Katya Mitsuko Zuquim Braghini. - São Paulo : EDUC : Fapesp, 2016.
1. Recurso on-line : ePub
Originalmente Tese de Doutorado – PUC-SP, 2010.
Disponível no formato impresso: Braghini, Katya Mitsuko Zuquim . Juventude e pensamento conservador no Brasil. São Paulo : Educ /Fapesp, 2015. ISBN 978-85-283-0505-0
Disponível para ler em : todas as mídias eletrônicas
Acesso restrito : www.pucsp.br/educ
ISBN eletrônico: 978-85-283-0534-0
1. EBSA (Revista) - Análise do discurso. 2. Editora do Brasil - História. 3. Jovens - Educação - Brasil. 4. Estudantes - Atividades - Brasil - História. 5. Ensino médio - Brasil - Avaliação. I. Título.
CDD 370.05
371.81
373.981
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
Miguel Wady Chaia
Produção Editorial
Sonia Montone
Preparação e Revisão
Siméia Mello
Editoração Eletrônica
Gabriel Moraes
Waldir Alves
Capa
Douglas Canjani
Secretário
Ronaldo Decicino
Produção do ebook
Waldir Alves
Rua Monte Alegre, 984 – sala S16
CEP 05014-901 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ
Dedico a Sergio, meu marido, companheiro, amigo, amor.
As condições nas quais trabalha o historiador explicam, ademais, porque foi e continua sendo sempre colocado o problema da objetividade do historiador. A tomada de consciência da construção do fato histórico, da não inocência do documento, lançou uma luz reveladora sobre os processos de manipulação que se manifesta em todos os níveis da constituição do saber histórico. Mas esta constatação não deve desembocar num ceticismo de fundo a propósito da objetividade histórica e num abandono da noção de verdade em história; ao contrário, os contínuos êxitos no desmascaramento e na denúncia das mistificações e das falsificações da história permitem um relativo otimismo a esse respeito.
Jacques Le Goff. História e memória
Agradecimentos
Este livro foi escrito originalmente como texto de doutorado. A história deste trabalho foi totalmente motivada pelo tipo de documentação utilizada para a sua constituição. O seu conteúdo foi retirado das discussões feitas em um periódico educacional que não escondia a sua tomada de posição, em defesa de um estado autoritário, militarizado, que se dizia grande defensor da ordem. Não poupou esforços para reverberar a desinformação, conteúdo sem provas, e fazer valer a ideia de que o país necessitava de um governo fechado e ditatorial.
Ao mesmo tempo os responsáveis por essa revista transformaram-na em um clipping, transcrevendo notícias e reportagens da mídia diária, criando e fazendo circular representações sobre a juventude brasileira. O quadro apresentado nos mostrou que, por um lado, havia estudantes revoltosos
e descontrolados
, mas que podiam ser saneados por uma juventude brasileira ávida por trabalho e pura de princípios.
Isto é, apresentou um quadro bastante interessante de como era percebida a movimentação política de jovens urbanos, a partir da reprodução de toda uma série de discursos conservadores e reacionários a respeito de como um jovem deveria ser, comportar-se e agir.
No caso, a questão social e política surgiu na imprensa de massa da forma mais pobre possível, como se a demarcação de um bom cidadão
, aquele mais educado
, mais honesto
, tivesse sempre o poder histórico de promulgar a incompetência do povo, este oposto ao seu refinamento aburguesado, cego diante do avanço comunista
, gente ordinária que poderia abalar a sustentação de parcos privilégios.
Em suma: uma imprensa que gostava de construir a paranoia generalizada e bloquear as conquistas sociais que passavam ao largo dos interesses de suas bem decoradas salas. E, para isso, não titubeia em se autoproclamar pura
e ser, ao mesmo tempo, a porta-voz e agitadora de todos aqueles que desejam moralizar os demais.
No início do trabalho, parecia um tanto difícil acreditar que uma revista de suporte tão simples pudesse ter substância para amparar um doutorado. Mas, tendo em mente que dos documentos surgem coisas absolutamente inusitadas, levei a cabo a ideia de historicizar as representações de juventude publicadas; com esse intuito ela foi encaminhada e assim foi terminada.
Hoje é publicada pela Editora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Educ) com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), instituições para as quais eu dirijo os primeiros agradecimentos.
Dedico afeto a todos os meus familiares, meus irmãos, toda essa gente boa que me cerca. Mas aponto especial gratidão à minha mãe, Fany Honda, pois, nos fragmentos de minha memória, foi ela quem me fez gostar de ler, estudar. Minha mãe me mostrou bons caminhos para eu seguir a minha vida. Espero que Julia Temer, minha afilhada, tenha bons caminhos também.
Hoje sou professora, pesquisadora, historiadora, e escolhi o mundo acadêmico como local para exercer os meus ofícios. Se fiz amigos verdadeiros durante esse tempo, creio que consegui tal feito durante o período de minha formação. Eles não são muitos, mas são importantes e queridos. Cultivo carinho a todos aqueles que se percebem nesta pequena lista, mas é para Flavia Liba que se volta minha gratidão, pela força que me passou e pelo companheirismo. Tive tempos um tanto desorientados e ela se portou como uma irmã em quem eu podia confiar. Ela bem representa todos os meus amigos queridos.
Reconheço que o meu principal mestre foi o professor Kazumi Munakata. Aqui, nem tanto pelas suas obrigações de trabalho, porque foi meu orientador, mas porque nos divertimos muito durante esses anos. As nossas risadas foram testemunho de bons momentos na academia, nos congressos, nos debates, pela vida.
Aos meus formadores, professores do PEPG em Educação: História, Política, Sociedade (EHPS), alguns deles meus colegas de trabalho atualmente, meus sinceros agradecimentos. À Elisabete Adania, um beijo no coração pela alegria de sempre, pela esperteza e pela doçura como me tratou e ainda me trata.
Enquanto escrevo, penso também em Marcus Aurélio Taborda de Oliveira, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Mirian Jorge Warde, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O primeiro, porque viu um futuro para mim como historiadora da educação; a segunda, porque me fez lembrar que eu era uma historiadora e não me deixou desviar para outras searas.
Dedico, por fim, o meu trabalho a todos os meus orientandos e alunos. Estando com eles sou feliz fazendo a minha vida.
Prefácio
Não é a primeira vez, e não será a última, que declaro ser este um prefácio dispensável. O trabalho de Katya Braghini é muito bom, deve ser lido e o será por aqueles que se interessam pela temática ou pela abordagem histórica, independentemente do prefácio.
De qualquer forma, aqui estando, não me furtarei de partilhar com o leitor os aspectos que me parecem especialmente relevantes neste estudo escrito originalmente como tese de doutorado.
Em primeiro lugar, reafirmo a relevância de se abordar a juventude fora do enquadre mais persistente e longevo da psicologia. Sociólogos e historiadores têm se incomodado, de algumas décadas para cá, com a hegemonia da psicologia, e também da medicina, com temas que hoje despertam interesse dos estudiosos dos assuntos sociais e históricos. A bibliografia arrolada pela Katya já nos dá a ver, com nitidez, como são esparsos os estudos de juventude nos âmbitos das ciências sociais e da história, incluindo a história da educação.
Esse é um tópico alertado pela autora logo à introdução. Há referências a levantamentos mais ou menos recentes nos quais praticamente não aparecem pesquisas sobre os jovens e a juventude, e quando ocorrem, em regra, não é essa categoria socioetária o foco das análises, e sim as instituições onde foram encontrados ou os movimentos nos quais estiveram envolvidos.
Em contrapartida, os periódicos especializados no campo da psicologia não cessam de por em circulação trabalhos a respeito dos sujeitos dos quais aqui falamos, assim como não cessam de dar a ler estudos sobre a criança, o adolescente ou outras categorias socioetárias. Por coincidência, escrevendo este prefácio, chega-me às mãos o número mais recente de uma das mais conceituadas revistas de psicologia publicadas no Brasil, em cujo sumário há um número significativo de artigos sobre jovens, juventude, além de crianças e adolescentes.
Não só nesse número e em anteriores do mesmo periódico, como em outras revistas, verifica-se que não há plena coincidência entre o que os pesquisadores dos campos sociais e históricos costumam dizer sobre os estudos psicológicos, uma vez que naqueles encontrei firmes abordagens da condição social dos jovens, assim como das crianças, adolescentes e assim por diante.
Ora, essa constatação no mínimo deve nos alertar para o fato de que sociólogos, historiadores e outros estudiosos da vida social talvez estejam se empenhando em arrombar uma porta quiçá não escancarada, mas ao menos entreaberta, gastando energia que poderia ser dedicada a estudos sistemáticos desses sujeitos sobre os quais tanto se reclama a dominação psicológica e biológica.
Essa é, aliás, uma questão bastante interessante: psicólogos, biólogos, médicos parecem menos sujeitos a se enfadarem dos seus objetos, talvez mais dispostos a renovar seus temas com novos pesquisadores ou ainda menos dados a modismos, considerando-se a pressão da clínica, do consultório, do laboratório... Tanto assim é que se pode encontrar certa continuidade desses assuntos naqueles campos desde que se tornaram alvo de atenção a partir da segunda metade do século XIX.
Por outro lado, no que tange à história, só muito recentemente, a infância e a adolescência conquistaram atenção no Brasil, faltando muito ainda para que possamos falar em uma linhagem em história da infância ou da adolescência. No caso da juventude, o trabalho de Katya nos dá a entender que talvez o seu venha a ser considerado seminal. Tomara que seus futuros orientandos se apeguem ao assunto. Torço para que seus leitores também.
O outro aspecto que ressalto, neste estudo, diz respeito à escolha do periódico, Revista da Editora do Brasil S/A (EBSA), no qual Katya flagrou curiosa – para dizer o mínimo – representação dos jovens e da juventude.
É no trato da EBSA que as habilidades de historiadora se afirmam. Katya é historiadora de formação, além disso, contou com Kazumi Munakata como orientador, ele que sabidamente domina as artes da leitura do impresso.
A EBSA vasculhada neste trabalho é surpreendente. Katya nos traz um periódico em cujas páginas está registrada não a adesão ao golpe de 64, mas a trama golpista tecida desde começos dos anos 1950, para não se recuar mais longe. Espantosa a carga passional, os laivos irracionalistas, o regressismo daqueles católicos que estiveram à frente da EBSA, trabalhando contra o estado de direito, a esfera pública, o livre pensar...
E não foi preciso aguardar que o trabalho mostrasse com todas as letras a adesão ortodoxa dos editores à doutrina católica em face do capitalismo. Ao meio do primeiro capítulo, está dito que
[os editores de EBSA tornaram-se] mestres na arte de criar evasivas para vender produtos e marcar o nome da Editora no mercado [...] a Revista, ao mesmo tempo que demarcava a sua posição entre os professores, criava uma imagem de empresa que renegava as práticas capitalistas correntes. Desse modo, foi construído pelos seus editores um escudo antimercenário [...]. Essa posição limpa
dos editores, que visava apagar a condição de capitalistas para evidenciar a posição de propugnadores de boas intenções
, colocou-os na posição de patrióticos: ganhar dinheiro sem estar necessariamente pensando nele tornou-se uma realidade
. (pp. 67-68)
À margem dessas passagens, anotei: o manual que orientava esses editores era a Encíclica Rerum Novarum? Guiavam-se pelo Papa Leão XIII? Ou eram mais descaradamente adeptos de contrarrevolucionários ultramontanistas como Joseph de Maistre e Louis e Bonald?
Por fim, destaco o antigo ensino médio na composição da temática do trabalho; assim como os anos 1950, ele é uma das minhas antigas paixões intelectuais. Katya vem se interessando pelos dois assuntos desde o mestrado, especialmente pelo ramo secundário do ensino médio, que também me instiga em particular. Gostaria, por isso mesmo, de com aquela compartilhar uma questão impressionante: o Estado criou a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (1944) como instrumento para o magistério das escolas públicas, mas sua circulação, acesso e leitura, ao que consta, não foram significativos. Na contraface, revistas criadas por editoras privadas tiveram maior alcance, tais como a EBSA (1947) e a Atualidades Pedagógicas, criada pela Editora Nacional, em 1950. As três com padrões editoriais muito semelhantes.
Qual delas circulou com regularidade e serviu de principal instrumento de trabalho do magistério público secundário? Disputaram o público alvo entre si e com a RBEP? São boas representações da prevalência (qualitativa acima de tudo), no Brasil, do privado sobre o público? Diria mais, da dependência do privado pelo público, que inventa um sem número de normas, trâmites, parâmetros, mas é incapaz de fazê-los cumprir por sua própria conta?
Costumo fechar os prefácios sempre inúteis com uma palavra sobre o autor. Katya Braghini foi minha aluna no mestrado e doutorado. Foi também, no mestrado, membro discente do grupo de pesquisa que eu coordenava. Anos se passaram e nos afastamos institucionalmente; há pouco Katya ingressou em outro grupo de estudos e pesquisa que coordeno. Para minha alegria. Tudo indica que vamos longe. Porque nos respeitamos e gostamos, mutuamente, do que fazemos.
Mirian Jorge Warde
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Atualmente é professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Pesquisadora Sênior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Sumário
Prefácio
Introdução
Capítulo 1
A Revista da Editora do Brasil S/A
A Editora do Brasil S/A – sobre a sua fundação
O nascimento da Revista da Editora do Brasil S/A
A Revista da Editora do Brasil S/A: objetivos, funções, fixação no mercado educacional
A Revista da Editora do Brasil S/A e o seu público leitor
EBSA: veículo de promoção do desenvolvimento da Editora do Brasil, mas sem vinculação interesseira no campo comercial ou da publicidade
O conteúdo da Revista da Editora do Brasil S/A nos anos 1960: católicos, militares e o ensino de moral e civismo
Editora do Brasil nos anos 1970: a consolidação de uma vontade
A Revista da Editora do Brasil (1961-1980)
Capítulo 2
Estudante: um monstro jurídico-político
A juventude estudantil de esquerda
quer mandar no campo social
Estudantes são sub-reptícios
, lobos em pele de cordeiro
Estudantes: a desgraça da nova geração
, traidores da Pátria
Os estudantes em 1968: mais dinâmicos
, mais ativos
, mais dúcteis e emotivos
O medo de uma geração e a aflição com o mundo jovem
Capítulo 3
O poder jovem
: um mito remodelado
Juventude transviada
: apresentada como um fenômeno universal
A família: de núcleo nevrálgico
a instituição enfraquecida
Os estudantes eram vítimas do sistema de ensino
Práticas escolares e extraescolares
Os professores
As teorias que circulavam e os livros proibidos
Fora da escola: um repertório de obras que comercializa os sentidos
Como reparar os desvios
da juventude estudantil?
O papel dos responsáveis pela educação: criar uma relação segura dos jovens com a vida
Grêmios estudantis: a alteração no formato
Capítulo 4
A Vanguarda Brasileira
A purificação dos estudantes por sua juventude
A promoção de uma Juventude Estudiosa
Juventude como puro manancial
busca um Brasil melhor
Juventude estudiosa: elemento de sustentação da mítica do patriotismo
Livros didáticos e infanto-juvenis e os bons valores para os jovens
A formação de lideranças
Os bons exemplos de juventude estudiosa
Os bons jovens
em associações estudantis: pronunciamentos e atos
Atividades extraescolares julgadas interessantes
Marcas de um redator cristão: Cristo morreu jovem para que o espírito humano não envelhecesse e se desfizesse na inutilidade das coisas
Fenômenos de uma nova época: os estudantes se expressavam por gestos diferentes
Estudantes vitimados pelos tóxicos
Estudantes: uma geração sem palavras
A psicologia como um atendimento necessário à prevenção das anormalidades
O movimento estudantil em 1977
Conclusão
A juventude na Revista da Editora do Brasil S/A
O planejamento da crise ou um mapeamento de regras
Referências Bibliográficas
Anexos
Quadro 1 – Seções da Revista do Brasil S/A
Quadro 2 – Fundadores da Editora do Brasil S/A
Quadro 3 – Dados levantados sobre os jovens secundaristas e universitários
Quadro 4 – Slogans e palavras de ordem recolhidos durante a pesquisa
Comissão Parlamentar de Inquérito União Nacional dos Estudantes (UNE)
Introdução
O interesse em estudar a imagem que foi construída sobre a juventude nos anos 1960 e 1970, a partir dos artigos produzidos e publicados na Revista da Editora do Brasil S/A (EBSA), surgiu porque esse periódico educacional se apresentou notadamente favorável ao governo autoritário instituído em 1964.
Levando em consideração que, à época, o que se chamou juventude
se mobilizou por meio de uma variada gama de manifestações em vários locais do mundo, tornou-se interessante tentar compreender como foi edificada uma ideia de juventude em uma revista educacional que não escondia a sua condição de ser favorável ao Estado autoritário militar e que, portanto, tomava posição de ataque a quaisquer movimentos sociais contestadores à ordem política, assumindo uma atitude abertamente conservadora. Como fonte documental, EBSA pode ser considerada uma espécie de contraface
, o outro lado
daqueles movimentos sociais que, à época, manifestaram-se contra o autoritarismo.¹
O pensamento de Sarlo (2007, p. 48), diante de uma falta
nas pesquisas históricas argentinas sobre o período da ditadura militar, colaborou para que esta pesquisa tomasse corpo. No caso da história argentina, a autora apontou para uma lacuna de pesquisas em história, a partir do uso de fontes documentais, já que, naquele país, findada a ditadura militar, o testemunho foi tornado ícone da verdade e o recurso mais importante para averiguar esse mesmo passado.
A autora não deslegitimou a importância do testemunho para a elucidação daquele passado histórico, já que eles foram indispensáveis para restituir aquilo que se tentou apagar. No entanto, em seu estudo, ela constatou uma indisposição dos pesquisadores argentinos quanto ao uso de fontes que não fossem as testemunhais. Para a autora, os historiadores optaram por oferecer certezas que dessem consolo
e respostas
em vez de um sistema de hipóteses
e contradições sobre esse período sombrio da história.
A preocupação da pesquisadora em torno das fontes documentais como elemento fundamental para a identificação de traços significativos na história da ditadura militar deu ênfase à curiosidade em torno das bandeiras levantadas pelo grupo editorial responsável por EBSA, mediante a sua percepção sobre o que denominou juventude
daquela época. Nos discursos produzidos em suas páginas, ideais e valores pertinentes ao grupo responsável pela publicação do periódico jogam luz sobre um projeto de organização da sociedade brasileira com a qual esse grupo se identificava e defendia.
Portanto, foi levado em consideração que, diante dos manifestos juvenis nos anos 1960-1970, um projeto de juventude
foi organizado pelos agentes responsáveis por esse periódico educacional muito possivelmente buscando um ideal de juventude que fosse mais adequado
ao ajustamento do que os jovens mobilizados. O período demarcado na pesquisa compreende de 1961, ano em que são publicados os primeiros artigos sobre os jovens estudantes em EBSA, a 1980, ano em que se percebeu um decréscimo de conteúdo sobre a juventude, talvez coincidindo com a abertura política que se iniciava no país.
Reforçou ainda mais o interesse nesse empreendimento a constatação de que há uma falta
de estudos históricos sobre as representações da juventude no Brasil, como é o caso deste estudo e de estudos históricos sobre a juventude em geral.
Essa afirmação foi constatada a partir dos estados da arte
organizados por Spósito (2001 e 2009) sobre o tema juventude
, entre 1980-1998 e 1999-2006. Nesses dois estudos, a autora coordenou um levantamento sobre as produções acadêmicas pesquisadas nos períodos apontados, identificando os temas e os assuntos mais explorados e, ao mesmo tempo, apresentando as brechas de pesquisa pouco exploradas ou sem nenhuma produção concluída.
Ao investigar a produção de conhecimentos advindas do exame de dissertações e teses defendidas nos Programas de Pós-Graduação em Educação entre 1980 e 1998, Spósito (2001) não detectou estudos sobre a juventude ou representações sobre ela na área de história. Segundo a autora, a juventude era um objeto pouco consolidado na pesquisa, não obstante a sua importância política e social
(p. 38), e que há pequena participação do que poderíamos designar como estudos sobre a juventude em Educação
(p. 41).
Nesse mesmo levantamento, a autora apontou a existência de estudos sobre representações da juventude (10,2%), mas registrou que, em grande parte, as abordagens estão mais próximas das orientações em psicologia (ibid., p. 44).
Hilsdorf e Peres (2009), analisando os estudos históricos sobre a juventude entre 1999-2006, indicaram que há poucos trabalhos sobre história da juventude no Brasil. Dos 38 trabalhos encontrados há, pela via do recorte cronológico, uma concentração de estudos sobre a década de 1960-1970 e que, nesses casos, os trabalhos privilegiaram a condição de efervescência política e cultural do período; dando ênfase aos aspectos ligados ao movimento estudantil. Isto é, o jovem encontrava-se presente no estudo, mas o foco dos trabalhos era voltado para os movimentos.
Também foi identificado que pelo levantamento das palavras-chave, havia sete trabalhos voltados para a juventude, abordando o aluno observado dentro das instituições de ensino. Nesses casos, os focos eram para a instituição e para o aluno. Por fim, foram identificados oito trabalhos históricos voltados para o estudo do jovem em contextos diferenciados da história do Brasil.
Dessa exposição bibliográfica, surgem três imagens que abriram a possibilidade de empreendimento deste livro. A primeira que percebeu um foco muito centralizado na atuação política dos estudantes contra o autoritarismo militar, desconsiderando o aspecto estudantil
do movimento. A segunda, que constituiu uma imagem monolítica desses jovens como se todos eles fossem rebeldes e ativistas, desconsiderando a observação de uma população que não se manifestava ou que demonstrava a sua mobilização de outra forma. E a terceira, que desconsiderava todas as histórias sobre a juventude que não fossem referentes às manifestações políticas dos estudantes.
Este trabalho buscou compreender, a partir dos registros publicados em uma revista educacional nos anos 1960-1970, o que a publicação entendia por juventude. Este trabalho não deixou de focar os anos de efervescência cultural e política no país e, embora discuta os movimentos políticos dos estudantes, o foco está voltado para o sentido de representação de juventude.
Para desenvolver um estudo introdutório sobre EBSA, esta pesquisa utiliza um roteiro que está implícito no texto de Chartier e Hérbrard (1998), quando estes analisaram a revista L´Educacion Nationale. Os autores pautaram-se pelo posicionamento do lugar da fala
dos responsáveis pelo periódico: a apresentação de suas posições políticas e educacionais; suas crenças; parceiros; seus suportes de produção, transmissão de ideias; como entra na arena dos discursos o tema de análise, etc.
A Revista da Editora do Brasil S/A: a serviço dos educadores patrícios
Em sua ata de fundação, a Editora do Brasil disse que visaria com especial cuidado, à edição e à divulgação de obras didáticas de caráter cívico, de real valor
(Capítulo 3º, parágrafo 1º). Isso acompanhava o lema da Editora: Uma organização a serviço dos educadores
. Segundo informava em seu sítio eletrônico, a Editora do Brasil é uma sociedade anônima vocacionada
a atender a demanda de livros didáticos
.
A EBSA era uma publicação mensal da Editora do Brasil. Foi lançada em 1947, quatro anos após a fundação da própria Editora, e desativada nos anos 1990. Tratava-se de um pequeno periódico educacional, que foi intitulado documentário de ensino
. Sobre essa revista, a Editora do Brasil, na quarta capa de sua edição de lançamento, justificou a existência de tal publicação por ter havido a necessidade de incrementar um departamento educacional dentro da Editora, para dar conta da copiosa correspondência de várias regiões do país
.
Em novembro de 1947, os editores viram uma brecha
editorial e se lançaram na publicação de uma revista que fosse a porta-voz da Editora, lançada para os profissionais de ensino de todos os segmentos, mas, especialmente, voltada para o ensino médio brasileiro (EBSA, 1957, n. 121, p. 3).² E, para isso, cuidou a direção da empresa usar a documentação do Departamento Escolar (DE), um departamento de observação, catalogação e organização de notícias sobre a educação, entre outros assuntos. (EBSA, 1957, n. 121, p. 1).
A revista foi criada para o atendimento aos professores brasileiros, sendo distribuída gratuitamente para todos aqueles que estivessem dispostos a assiná-la
, nesse caso, para professores, órgãos estaduais de educação, repartições públicas, associações de educadores e diretores de escolas secundárias.³ Deixou de ser editada nos anos 1990, segundo os seus responsáveis, por conta do avanço da internet
, pois esse instrumento teria retirado a funcionalidade específica do documentário, que era a de possibilitar ao público leitor acesso rápido às notícias e informações indispensáveis para quem pretendesse, como se dizia, assenhorear-se da evolução educacional
(EBSA, 1971, n. 284, p. 6).
Em 1964, Carlos Pasquale, então diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep) e que já havia sido diretor do periódico, escreveu:⁴ os documentos que já havíamos coligido e o que coligiremos ainda nas páginas de EBSA passarão à História da Educação
. Mais adiante, o político afirmou: realmente, sem vaidade ou orgulho, há de se confirmar que EBSA é arquivo categorizado, vivo e imparcial, garantindo sua independência de ação e de recursos da história do ensino e da educação no país
(EBSA, 1964, n. 197, p. 2).
Para melhor qualificar a fonte principal, esse pronunciamento foi interessante. Primeiro porque colocou a revista como uma coleção de documentos que passariam à História da Educação
. Depois, porque se anunciou como um veículo de imprensa que era imparcial
.
Por ser um documentário
, produzia o seu próprio conteúdo, mas também transcrevia as informações de outros documentos. A disposição da base material da revista tinha por objetivo permitir aos leitores uma consulta rápida das informações de que necessitariam. Os editores promoviam a reunião e divulgação de uma base documental que provasse algum assunto. Os seus editores compilavam artigos, leis, atas de comissões de ensino, etc., tudo o que consideravam importante sobre a educação de forma a dotar os profissionais dessa área de diversas informações.
A Editora do Brasil passou a divulgar uma coleção de temas que, segundo diziam, agilizava os trabalhos dos interessados. Passou à história da educação como um arquivo de fontes produzidas por vários órgãos e grupos no Brasil, principalmente grupos de comunicação em massa e instituições e pessoas vinculadas aos governos, preferencialmente o federal.
Como um documentário
, transferiu para o ambiente da Editora uma prática corrente nos meios jornalísticos que é a de fazer clipping, mas no sentido de prestar um serviço educacional. Os responsáveis pela Editora, internamente, criaram um departamento com funcionários, encarregados de folhear revistas e jornais diversos à procura de notícias e normas de interesse dos profissionais de ensino. Portanto, dentre outros assuntos, acabavam oferecendo ao leitor um panorama da educação nacional. Um panorama que era filtrado
, já que era constituído a partir de fragmentos que criavam uma ideia de universo educacional.
Por ser um periódico envolvido também com transcrições, o documentário reunia e anunciava informações retiradas de diversas agências de divulgação de notícias ou de registro de documentos. Entre elas, podemos citar: produções seriadas (jornais, semanários) ou documentos de órgãos do governo (como, por exemplo, o Ministério da Educação, Conselho Federal de Educação, diretorias de ensino, etc.), separando-os por seções diferenciadas.
Eram suas seções: Legislação (decretos, leis, portarias, circulares, despachos, jurisprudência, nomeações, providências, pareceres e resoluções do Conselho Nacional de Educação, do Ministério da Educação, da Câmara dos Deputados, os atos governamentais, sejam eles municipais, estaduais, federais, etc.); Súmulas (pequenas notas sobre acontecimentos relacionados à educação nacional); Várias (uma espécie de panorâmica
feita com o que os editores da revista consideravam como os principais assuntos do mês, seção preenchida com conteúdo produzido por órgãos públicos, preferencialmente federais); Opiniões do Mês (seleção de artigos assinados, e editoriais produzidos em mídia escrita, preferencialmente jornais).
Durante os anos 1950, era publicada na revista a seção Correspondência (cartas de leitores, telegramas de agradecimento, notificações variadas, etc.). Também havia a seção Colaboração (artigos por professores, diretores, inspetores ou professores universitários) e Subsídios para a História da Educação Brasileira (com documentos transcritos, normalmente produzidos por alguma personalidade célebre da História do Brasil). Ao longo dos anos 1960 e 1970, essas seções passaram a ser publicadas eventualmente.
As únicas seções que os editores apresentavam como sendo de sua total responsabilidade eram: Crônica do Mês, uma espécie de editorial, e Séries: problemas fundamentais do ensino, que são discussões sobre a educação pelo mundo.⁵ As opiniões dadas nessas seções não entravam em choque com as opiniões transcritas de outros veículos de comunicação.
Os editores, eventualmente, mudavam essas regras, pois, em alguns casos, foi possível detectar artigos de jornais publicados em outras seções, de forma que nem sempre as regras indicadas pelas seções foram totalmente cumpridas. Além disso, foi possível perceber que, casualmente, os editores se apropriavam de autores da forma que os comprazia, pois, por exemplo, o artigo do jornalista Perseu Abramo, em 1971, Mens Sana, oposicionista da ditadura, foi usado somente para justificar a posição da revista sobre as lideranças que deveriam ser exemplares aos estudantes.
Na revista, eram apresentados os ambientes por onde diversos atores sociais e autores passaram e atuaram; classificando-os, mostravam suas atuações. Os editores enumeravam e catalogavam fatos; apresentavam as condições morais e materiais que existiam, hierarquizavam-nas. Era proporcionado ao leitor um conjunto de circunstâncias que mostravam os posicionamentos, as atividades e as produções dos atores descritos e classificados.
Essa revista, também chamada de documentário de ensino
, não foi apenas um veículo de catalogação de informações sobre a história da educação, mas também se apresentou como um arquivo sobre a história da própria editora, demonstrando os interesses e anseios daqueles que a tinham sob a sua responsabilidade.
Por fim, ao ter sido proclamada imparcial
, deixando aparente que as opiniões publicadas em suas páginas não eram sacrificadas à própria conveniência, nem às influências externas a ela, assumia uma posição que é crucial quando se pretende influenciar os outros: a de neutralidade e fidelidade aos fatos
.
A Revista da Editora do Brasil S/A e a sua posição conservadora
Antes de indicarmos como