Precedentes Vinculantes em Recursos Especiais Repetitivos: uma análise sob a ótica do Princípio do Contraditório na Formação da Ratio Decidendi
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Precedentes Vinculantes em Recursos Especiais Repetitivos - Lucas Pereira Araujo
UM - CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
A presente etapa metodológica da investigação mostra-se importante para expor aos leitores o caminho percorrido no livro, desde a versão inicial do projeto de pesquisa apresentada para ingresso no programa de pós-graduação da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Discorrer sobre os procedimentos é uma forma de demonstrar que a ferramenta utilizada se mostrou adequada para atingir o objetivo proposto, qual seja: verificar se há nos recursos especiais repetitivos afetados uma ampla participação, da forma como permitida pelos incisos do art. 1.038 do Código de Processo Civil, no momento da formação da ratio decidendi do precedente, de modo a assegurar o respeito ao contraditório. Por isso, conhecer se os recursos especiais repetitivos contam com esta ampla participação que o legislador pretendeu viabilizar, é importante para se aferir a violação ao contraditório; porém esta averiguação demanda a utilização de diversos procedimentos metodológicos que se complementam e convergem para alcançar o resultado minimamente seguro.
1.1 DELIMITAÇÃO DO TEMA E PROBLEMA
Os recursos especiais repetitivos, no atual Código de Processo Civil, contam com uma importante previsão trazida pelo art. 1.038, incisos I a III. O objetivo deste dispositivo é ampliar o contraditório através da participação externa e os debates em torno da controvérsia submetida a julgamento nesse mecanismo que, pela previsão do art. 927, inciso III, do CPC/2015, é um meio apto à formação de decisões vinculantes.
O Código de Processo Civil de 1973, apesar de contar com este sistema de julgamentos repetitivos, não trazia em seus dispositivos nenhuma previsão semelhante àquela contida no Código vigente. Trata-se, pois, de uma importante inovação, em especial pelo fato desse tipo de julgamento realizado perante o Superior Tribunal de Justiça gozar de natureza vinculante, o que não acontecia no sistema do Diploma revogado, em que o julgamento em recurso especial repetitivo gozava de alto grau de persuasão, mas não detinha observância obrigatória.
Não obstante exista essa previsão legal de ampla participação externa trazida pelos incisos do art. 1.038 do CPC/2015, surge a seguinte indagação: A formação da ratio decidendi de recursos especiais repetitivos contempla uma ampla participação, tal como a prevista nos incisos do art. 1.038, e que visa garantir a observância do contraditório?
A hipótese desta pesquisa é que os julgamentos dos recursos especiais repetitivos não contemplam esta ampla participação. Assim, para confirmá-la ou refutá-la, serão analisados todos os recursos especiais repetitivos julgados pela Segunda Seção do Tribunal Superior, em matéria civil e empresarial, e que são posteriores a entrada em vigor do CPC/2015. Este recorte foi mais bem detalhado quando da indicação dos procedimentos metodológicos.
Portanto, se o legislador buscou priorizar a rapidez, a isonomia nas decisões de casos similares e a efetividade, sem descurar das garantias processuais constitucionais
¹, por certo que o julgamento dos recursos especiais repetitivos deve contemplar uma ampla participação, de modo a observar o que prevê o art. 1.038 do CPC. Em tese, quanto maior o grau de participação, maior será o debate e mais acentuado será o contraditório. Logo, em casos que existiu menor grau de participação, há maior potencial de violação do contraditório.
Este livro averiguou se no julgamento, em que ocorre a formação da ratio decidendi do recurso especial repetitivo, participam: amicus curiae; terceiros interessados; terceiros não interessados, mas com experiência em um determinado assunto – por meio de audiência pública – e o Ministério Público. Após, foi analisada a consequência de eventual deficiência participativa para o precedente e para o contraditório.
Eis, então, problema que se busca investigar acerca do tema aqui delimitado e proposto, pois em um Estado Democrático de Direito qualquer possibilidade de ofensa a uma determinada garantia ou direito fundamental justifica uma detida investigação.
1.2 JUSTIFICATIVA E IMPORTÂNCIA DO TEMA
Afinal, qual a relevância de investigar o tema ora proposto? Muito embora a resposta à indagação pareça simples, há nela considerável complexidade, pois não existe apenas uma justificativa, mas multifacetados pontos de pertinência. Mas antes é importante explicitar que a temática aborda um assunto que se insere dentro da linha de pesquisa Racionalidade jurídica e direitos fundamentais na construção do Estado Democrático de Direito
do programa de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, diretamente vinculada ao acesso à justiça e direitos fundamentais.
Entre os pontos que merecem destaque quanto à relevância investigativa, de início pode-se mencionar a escassez de pesquisas que abordam a temática, especialmente pelo fato de o enfoque, aqui, ser destinado ao contraditório no momento da formação da ratio decidendi do precedente.
Até onde se tem conhecimento, o ineditismo gravita sobre o assunto relativo a precedentes vinculantes firmados através de recursos especiais repetitivos; e analisados sob a ótica de uma ampla participação, que é possibilitada pelo art. 1.038 do Código de Processo Civil como forma de garantir um efetivo contraditório. Mais do que uma pesquisa teórica, analisar-se-á como ocorre, na prática, o julgamento destes provimentos e a forma como neles se realizam o contraditório. A empiria adotada no livro ressalta ainda mais a singularidade da abordagem.
Existe, e isto é inegável, muitos livros que se debruçaram a investigar somente os recursos especiais. Da mesma forma, inúmeras já trataram do princípio do contraditório. Entretanto, são investigações que se propuseram a analisar um ou outro instituto. In casu, os precedentes serão analisados pelo prisma da participação como garantidora do contraditório.
Mas a pertinência do livro goza de outros pontos de relevância. A necessidade de melhor compreensão do denominado sistema de precedentes brasileiro
e de sua eficácia vinculante é ponto que igualmente merece destaque. Isso porque, a inserção no processo civil vigente de provimentos que, em alguma medida, guardam traços semelhantes ao sistema de stare decisis - tratar da mesma forma casos similares
² - não é um mal em si.
Entretanto, é preciso que os atores processuais tenham sempre em mente que o que temos no cenário processual vigente não se trata de precedentes genuínos³. No Brasil, o precedente já nasce precedente⁴. Mas assim foi necessário para que a volumosa massa de casos repetitivos em trâmite na justiça diminuísse⁵. Isso também se mostrou producente para evitar a grande dispersão jurisprudencial, trazer previsibilidade, isonomia e segurança jurídica aos cidadãos.
Portanto, é preciso olhar para os provimentos brasileiros cum grano salis; isso é, sob a ótica da realidade brasileira. Os precedentes genuínos não nascem precedentes e, muito menos, foram criados como forma de resolver problema cultural de litígios em larga escala⁶. Sejam nos precedentes genuínos, sejam nos brasileiros, o que não pode ocorrer é a falta ou a insuficiência de debate sobre o tema controvertido. Se o provimento judicial vinculará os casos futuros, quanto maior o debate, maior será a chance de se assegurar o contraditório; até porque, em momento posterior à formação do precedente, não haverá possibilidade da parte discutir e apresentar novos argumentos.
Não há dúvidas de que deve haver uma coerência e estabilidade das decisões judiciais para uma maior segurança jurídica e observância do ideal de igualdade e efetividade para o bem das instituições e do Estado Democrático de Direito. Porém, isso não pode ocorrer ao arrepio de quaisquer das garantias inerentes ao processo, notadamente, o contraditório.
Nesse contexto, surge outro ponto que demonstra a pertinência do livro, qual seja: analisar se ocorre e a forma como acontece a participação daquelas pessoas que os incisos do art. 1.038 do Código de Processo Civil possibilitam quando da instrução processual para formação da ratio decidendi do precedente através do recurso especial repetitivo.
Existe previsão legal que permite uma ampla participação para debate da controvérsia a ser julgada no recurso especial repetitivo (art. 1.038, incisos I, II e III). Outros vários dispositivos do código⁷ deixam clara a preocupação legislativa em se viabilizar uma participação daqueles que possam, de alguma forma, contribuir para a solução adequada da controvérsia. Embora exista previsão legal, isto não significa, necessariamente, que está na prática sendo aplicada pelo tribunal.
Disto advém outro ponto que atribui importância à investigação aqui proposta, que consiste na necessidade de uma (re)leitura, pela própria Corte Superior, do princípio do contraditório, de modo que se torne mais consentâneo à realidade dos precedentes. O contraditório a ser realizado em um provimento destinado à formação de precedente não pode ter a mesma dimensão, em termos de proporcionalidade, dos debates que acontecem em recursos sem esta característica e cuja afetação vinculará apenas as partes. Se a medida do contraditório for igual a qualquer outro caso de menor impacto/abrangência social, argumentos de fundamental relevância poderão ser desconsiderados, fato este que refletirá na robustez do precedente formado, em sua credibilidade e aceitação pelos jurisdicionados. Fatalmente não gozará de vida longa, o que não é desejável à luz dos propósitos elucidados na exposição de motivos do código vigente⁸. Os precedentes vinculantes, como se dessume da exposição de motivos do novo Diploma, são considerados como um dos pilares da atual codificação processual. Sua característica intrínseca é a uniformização da jurisprudência, de modo a mantê-la estável, íntegra e coerente. Sem uma releitura do conjunto de normas constitucionais, tais como, o dever de motivação, princípio do contraditório, princípio da isonomia e segurança jurídica⁹, isso não será possível.
São tais normas supralegais que conferem legitimidade ao precedente e, dentre elas, está o contraditório. Esta legitimação do provimento jurisdicional pelas normas constitucionais é outro ponto de destaque que justifica esta pesquisa. A legitimação do processo e, por consequência, de toda e qualquer decisão judicial, se encontra no direito de participação efetiva das partes. O devido processo constitucional está calcado no poder dos sujeitos de influir no conteúdo da ratio decidendi em formação, no direito dos participantes verem seus argumentos considerados no julgamento – ainda que para negá-los –, bem como conviver com a certeza de que nenhum magistrado proferirá decisão surpresa¹⁰. O processo é uma garantia do jurisdicionado. É, pois, nesse espaço – no processo – que se encontra a dimensão procedimental do Estado Democrático de Direito ao estabelecer procedimentos, direitos e deveres processuais a serem respeitados pelos agentes estatais na aplicação de regras previamente estabelecidas¹¹. Justamente por constituir uma garantia inerente ao Estado em que vivemos, o processo deve gozar da mais ampla participação popular quando da formação de um precedente vinculante.
Portanto, este livro visa contribuir para a harmonização dos precedentes vinculantes com a garantia do contraditório, de modo a atribuir maior qualidade, por meio do debate, àquelas decisões cujo impacto afetará, positiva ou negativamente, todos aqueles jurisdicionados cuja situação se adeque aos fundamentos determinantes do precedente.
1.3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Ao longo do presente livro, adotou-se como método de abordagem o hipotético-dedutivo¹². Através da observação da forma como ocorrem os julgamentos dos recursos especiais repetitivos – mecanismo este apto à formação de precedentes vinculantes no Superior Tribunal Justiça – surge o problema acerca da (in)existência da ampla participação prevista nos incisos do art. 1.038 do Código de Processo Civil quando da formação da ratio decidendi do precedente, de modo a observar o princípio contraditório. Para este problema, formulou-se a hipótese de pesquisa que consiste na ausência desta ampla participação no momento de formação da ratio decidendi. Esta hipótese foi submetida a teste, cuja finalidade era confirmá-la ou refutá-la.
Nesse ponto, porém, cabe uma observação: quando da apresentação e arguição da versão original do projeto de pesquisa para ingresso no programa de pós-graduação da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, a pesquisa não estava delimitada apenas em analisar o contraditório quando da formação da ratio decidendi do precedente através do recurso especial repetitivo. Num primeiro momento, o objetivo da pesquisa era mais amplo, já que se buscava averiguar tanto o momento da formação do precedente quanto o momento de sua aplicação; ou seja, dois momentos distintos e opostos em uma única pesquisa. Para essa mudança, muito devo as sugestões do Professor Camilo Zufelato. Na oportunidade, o Docente demonstrou a pertinência em fazer o recorte na análise e manter o foco apenas no momento da formação da ratio decidendi, o que foi prontamente acolhido. De fato, a abordagem do momento da aplicação do precedente demanda pesquisa própria, pois envolve outra análise casuística sobre a forma como ocorre a aplicação do precedente nos casos posteriores a sua formação. Esta empreitada foge, portanto, do atual escopo da investigação aqui empreendida, onde se analisa o momento da formação do precedente.
Como método de procedimento¹³, foi utilizado, na primeira etapa, aquele denominado de jurídico-comparativo. Através dele buscou-se identificar os pontos de aproximação, distinção, funcionamento, desenvolvimento e tensões relativas aos precedentes firmados na Inglaterra e Estados Unidos, países que adotam o sistema common law, perante os precedentes vinculantes brasileiros. A escolha destes países se deveu ao fato de serem as referências para o estudo brasileiro sobre precedentes. Além disto, são países que serviram como fonte para o desenvolvimento do common law em outros Estados. São, portanto, paradigmas quando se estuda este sistema de direito. Para conferir concreção a este método, foi realizada pesquisa exploratória de livros, doutrinas, dissertações, teses, textos e artigos científicos, todos de cunho jurídicos, cujo assunto neles abordado relacionou-se com os precedentes no direito comparado e no direito brasileiro.
Para elaboração da segunda etapa, a pesquisa exploratória se voltou à análise da doutrina e livros estrangeiros e nacionais sobre a ratio decidendi. Procedeu-se com a definição desse instituto; suas formas de identificação e distinção em relação ao obiter dictum; sua diferenciação em relação à tese jurídica; sua natureza; sua inserção na hierarquia da norma e; sua posição na hierarquia do direito. Esta abordagem mais delimitada da ratio decidendi se deve ao acolhimento da sugestão realizada pelo Professor Camilo Zufelato na banca de qualificação; visto que a versão original do projeto de pesquisa não contava com uma análise delimitada da norma do precedente. Por se tratar de um dos pontos centrais da pesquisa, mostrou-se importante uma abordagem mais detida e completa da ratio.
Na terceira etapa foram analisados, através da pesquisa exploratória, livros, doutrinas, textos e artigos científicos, documentos esses de conteúdo jurídico, e que tratam especificamente das garantias constitucionais do processo no âmbito do Estado Democrático de Direito Brasileiro. Foram analisados documentos consistentes nos dispositivos constitucionais específicos da Carta Política brasileira, que dispõe sobre o devido processo legal e o princípio do contraditório. Os Códigos de Processo Civil 1973 e 2015 foram, igualmente, documentos objetos de análise, mas apenas quanto às disposições acerca do contraditório e recursos especiais repetitivos. Esses tipos de abordagens visam uma melhor compreensão do aludido princípio, desde sua concepção no direito pátrio, desenvolvimento, até chegar ao estágio atual. Não serão utilizados manuais de direito em razão da pouca ou quase nenhuma preocupação com o rigor metodológico.
O quarto bloco da pesquisa se desenvolveu através da utilização do método de procedimento consistente no levantamento de dados de processos judiciais que serviram como representativos da controvérsia para julgamento do recurso especial repetitivo pelo Superior Tribunal de Justiça. Foi, pois, uma típica pesquisa documental cuja investigação será realizada não só pelo perfil qualitativo, como também pelo quantitativo¹⁴.
São todos os dez acórdãos, de natureza cível e empresarial, e que foram julgados pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, após a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, que foram analisados. Até mesmo aqueles recursos especiais repetitivos que, embora afetados antes da nova Legislação, tenham sido julgados posteriormente a sua entrada em vigor, serão objeto de análise. Por sugestão do Professor Camilo Zufelato, quando da realização da banca de qualificação, foram excluídos da análise os recursos especiais repetitivos cujas matérias julgadas fossem de natureza processual.
Nesse contexto, não foram objeto desta investigação os recursos especiais repetitivos julgados antes da entrada em vigor do novo Diploma. Também não serão analisados aqueles afetados, sobrestados, cancelados, revisados e/ou em julgamento.
O enfoque se direcionou apenas ao Superior Tribunal de Justiça. Primeiro, por gozar de jurisdição nacional e constituir Corte de vértice em matéria infraconstitucional. Segundo, pelo fato deste Tribunal Superior, apesar de sua importância constitucionalmente reconhecida, exercer um papel de coadjuvante em termos de pesquisa. Por motivos óbvios, existe uma preferência em se analisar o que se decide no Supremo Tribunal Federal. Em razão disso, ele assume o papel de protagonista quando se trata de investigação científica. Não se pode olvidar que o Superior Tribunal também é responsável por julgamentos, em especial através de recursos repetitivos, cujo mérito impacta um incontável número de