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O bebê não vive numa bolha: clínica e contexto
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O bebê não vive numa bolha: clínica e contexto

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A Editora Contracorrente tem a satisfação de anunciar o terceiro livro da Coleção Educação & Psicanálise, organizada por Christian Dunker e Ana Cristina Dunker.

O bebê não vive numa bolha: clínica e contexto, organizado pela psicanalista e escritora Claudia Mascarenhas, reúne uma coletânea de artigos escritos por grandes nomes da psicanálise e da psicologia sob a perspectiva do bebê e da criança pequena como sujeito, tanto no sentido de um ator competente nas suas movimentações, como sentido pulsante de manifestações do inconsciente. Os ilustres coautores são Andrea Dias Viana, Angela Vorcaro, Aline Accioly Siero, Ariana Lucero, Astrid Bandeira Santos, Bárbara Costa Andrada, Bernard Golse, Claudia Mascarenhas, Camila Do Santos Souza Andrade, Carla Dratovsky, Fernanda Rocha Darzé, Leandro França Pacheco, Leny Trad, Maria Auxiliadora M. Fernandes, Maria Cristina Ventura Couto, Marie Rose Moro, Nora Woscoboinik, Pascale Amboise, Patricia Fernandes, Pedro Gabriel Godinho Delgado, Rafaela Coutinho Dantas, Vital Didonet.
LanguagePortuguês
Release dateJan 28, 2022
ISBN9786588470930
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    O bebê não vive numa bolha - Editora Contracorrente

    PARTE I

    OS FUNDAMENTOS E A DIREÇÃO

    CAPÍTULO I

    ALIANDO O GIRO ONTOLÓGICO AO DECOLONIAL: RUPTURAS NECESSÁRIAS NO CUIDADO INFANTIL

    LENY A. BOMFIM TRAD

    Introdução

    Concorda-se com Tesser² que, se de uma parte, não se pode negar os benefícios que os avanços de saberes e tecnologias biomédicas têm proporcionado em termos de alívio ao sofrimento causado por enfermidades ou mesmo morte precoce, é igualmente notável o processo de dependência e submissão dos cidadãos à norma médica, com seus respectivos saberes e procedimentos. Sob a égide da medicalização, perdem espaço perspectivas terapêuticas ancoradas na compreensão sobre as interrelações entre o processo saúde-doença e modos de vida, assim como de outras dimensões subjetivas e sociais.³

    Trata-se, em realidade, de um processo mais amplo de medicalização do espaço social ou de uma biopolítica através da qual a medicina passa a regular os corpos no registro individual e coletivo.⁴ Sendo mais específico, Lima⁵ aponta para o reducionismo biológico no campo da saúde mental, haja visto o predomínio de perspectivas fisicalistas subjacentes à produção de diagnósticos baseados em manuais classificatórios de transtornos.

    Cabe reconhecer, ainda, que a progressiva dependência de saberes periciais para identificação de riscos no âmbito da prática clínica é problemática tendo em vista a ausência de consensos científicos sobre tais procedimentos.⁶ Tal tendência revela-se especialmente preocupante quando observada no contexto da clínica e de outras práticas de saúde voltadas para a primeira infância.

    Situando este debate na esfera da saúde coletiva, é curioso observar que a crítica ao reducionismo biológico, ao tecnicismo e a concepções de normalidade ou saúde-doença que não considerem a natureza histórico-social deste fenômeno remonta às origens de constituição deste campo no Brasil, notadamente na produção e ativismo da área das ciências sociais e saúde. Não obstante a longevidade e vigor de tal agenda, o determinismo biológico e a imposição de padrões excludentes de comportamento e de normalidade seguem orientando as práticas de saúde, com especial voracidade no campo da saúde infantil. Um processo que tem se fortalecido na esteira de retrocessos no plano das políticas públicas (saúde, educação, trabalho etc.), dos direitos humanos e da justiça social, que temos assistido no país desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

    O enfrentamento dessa agenda ultraconservadora, autoritária e excludente nos convoca a resistir e (re)agir de forma contundente e corajosa. Dentre as muitas frentes de trabalho requeridas neste movimento, destaco a urgência da atuação frente à patologização e medicalização da infância. Proponho neste capítulo abordar esse fenômeno, partindo da crítica ao processo de diagnóstico de transtornos psíquicos ou comportamentais e suas vinculações com a noção de risco. Além de problematizar os limites de classificações e protocolos estandardizados,⁷ mobilizarei neste debate alguns argumentos básicos para rejeitar uma concepção simplista do binômio normal-patológico.

    Em seguida, concentro a discussão na concepção de cuidado, focalizando inicialmente a concepção difundida na saúde coletiva por Ricardo Ayres,⁸ o qual propõe um deslocamento do olhar da técnica em direção à existência. Acompanho o entendimento de Ayres⁹ que cuidar da saúde de alguém é mais que construir um objeto e intervir sobre ele, trata-se de construir projetos de forma compartilhada. Uma perspectiva que se opõe, portanto, à visão restritiva e simplificadora, do cuidado estritamente técnico, orientado por modelos tradicionais focados no ‘diagnóstico, na anulação da alteridade e do saber vindo do outro – o outro como objeto de intervenção tecnicista’.¹⁰

    Reconhecendo, entretanto, que é fundamental reconhecer a existência de si e do outro desde uma perspectiva crítica socio e historicamente situada, proponho na terceira parte do capítulo um giro epistemológico mais radical, cujos fundamentos, sucintamente assinalados no texto, refletem o diálogo com a produção decolonial latino-americana.

    Tal movimento leva em conta também a percepção de que a escassez de estudos no campo das ciências Psi, abordando etnia, raça e colonialismo cultural, contribuem para produzir invisibilidades.¹¹

    Devo dizer ainda que, na posição de pesquisadora e militante no campo das ciências sociais e saúde no Brasil, me sinto convocada frente ao apelo de que as crianças latino-americanas e caribenhas [...] precisam ser olhadas por uma antropologia latino-americana e caribenha, que nos liberte progressivamente do predomínio dos paradigmas europeus e norte-americanos.¹² Por fim, esclareço que este texto reflete em grande medida a experiência acumulada no âmbito do Programa Integrado Comunidade, Família e Saúde, do Instituto de Saúde Coletiva (FASA/ISC/UFBA) e de suas parcerias, em especial com o Instituto Viva Infância,¹³ coordenado pela Dra. Cláudia Mascarenhas.

    Procurando sinais e anulando singularidades da infância – reposicionando o risco

    Rossano Lima,¹⁴ ao focalizar os procedimentos de avaliação psiquiátrica, problematiza os limites ou armadilhas associadas a determinadas concepções de desenvolvimento humano, assim como as limitações e controvérsias que cercam a classificação de transtornos mentais na infância e adolescência. Sobre este último aspecto, primeiro ele vai nos lembrar que classificar é um ato humano por natureza, a gente sem saber sai classificando tudo pela frente, uma maneira de a gente organizar o mundo, entender o mundo.¹⁵ Em seguida, ele traz a citação de Borges (extraído de Foucault: Palavras e as Coisas): sabidamente não há classificação no universo que não seja arbitrária e conjectural para reforçar seu apelo de que tenhamos prudência frente às classificações científicas, baseadas em evidências.

    Dentre os limites associados mais especificamente ao DSM, ele apresenta algumas evidências que indicam que tal sistema de classificação, cuja funcionalidade original estava associada à pesquisa de medicamento no campo farmacêutico, paulatinamente, foi sendo incorporado no campo clínico, impactando fortemente em suas concepções e práticas.¹⁶ Chama especial atenção para as repercussões deste processo na contemporaneidade, quando os transtornos mentais da infância e adolescência adquirem um destaque especial. Em um movimento paradoxal ou ambivalente, por um lado, passa-se a prestar mais atenção no sofrimento mental de crianças, por outro lado, várias categorias e subcategorias de diagnósticos.

    Azevedo¹⁷ corrobora essa visão e enfatiza que a proliferação de diagnósticos e de prescrições de medicamentos encontram-se na base do incremento de medidas interventivas de caráter médico ou pedagógico envolvendo o cuidado de adultos e crianças. São processos que integram o corolário da medicalização cada vez mais precoce da infância, assentada na simplificação dos sofrimentos que afetam a criança.¹⁸ Constata-se, ademais, que os diagnósticos têm sido realizados frequentemente de modo célere, apressado, comprometendo sua precisão e desconsiderando o contexto no qual a criança está inserida.¹⁹

    Mas, afinal o que norteia o manejo de tais categorias no processo de avaliação diagnóstica? O Rossano nos ajuda a responder esta pergunta quando questiona a respeito da concepção de desenvolvimento humano subjacente a tal procedimento. Cabe reconhecer que o termo desenvolvimento tem valor, mas ele pode levar a gente por caminhos que às vezes não queria, não previa, não sabia no início.²⁰ Neste sentido, pode-se seguir por um viés biologicista:

    Richard Lebon, (...) crítico do determinismo genético (...) lembrou que desenvolvimento é a noção oriunda da biologia que está contaminada por essas teorias pré-formacionistas do século 18, ideia de que alguma coisa que já está presente, já está pré-formada e que simplesmente, se desdobra e se desenrola naturalmente.²¹

    Mas, certamente, é possível e, devo dizer, imperativo, seguir uma linha radicalmente oposta. Uma ética e racionalidade de cuidado infantil que entende o desenvolvimento como um processo ativo e dinâmico, que envolve tanto o processamento cognitivo e afetivo, como também adição de sentido, que o próprio indivíduo dá às suas experiências no decorrer da vida.²²

    Aprendemos com Canguilhem²³ que o patológico não possui uma existência em si – precisa ser entendido no contexto da cultura e das relações e interações sociais. É preciso reconhecer que nos meios próprios do homem, que este seja, em momentos diferentes, normal ou anormal.²⁴ Estabelecer uma norma para que se possa afirmar a existência de saúde ou doença apenas transforma esses conceitos em um tipo de ideal.

    Não obstante, a busca de tal norma segue sendo uma obsessão social que se nutre do movimento contínuo de renovação do processo de medicalização. Ganha relevo neste cenário o enfoque de risco, considerado um aliado de peso na busca incessante de sinais que possam antecipar a presença de um suposto desvio da normalidade. O conceito de risco remete-nos para probabilidades ou possibilidades sobre a ocorrência de eventos futuros, surgindo também associado a uma certa contingência ou ambiguidade decorrente das diversas dinâmicas do mundo social.

    O enfoque probabilístico do risco tem sido fortemente criticado tanto em função de seu uso indiscriminado, quanto pelo uso enviesado que alguns peritos lhe conferem.²⁵ Outro aspecto especialmente preocupante associado à prática da análise de risco diz respeito aos efeitos que a propagação de seus resultados produz no público leigo, tal como adverte Granjo:

    ela não é uma mera actividade técnica desenvolvida de e para especialistas. É uma actividade que se projecta normativamente sobre a vida social, exibindo chancela científica, e que nesse processo não se limita a legitimar-se a si própria; também formata a interpretação das ameaças por parte das pessoas que não a praticam e, ao fazê-lo, influencia a sua acção sobre o mundo.²⁶

    Vale notar que a concepção de risco baseada em probabilidade divide espaço com outras duas tradições discursivas associadas, respectivamente com perigo e aventura, de acordo com a revisão de Spink.²⁷ Parece ser, no entanto, que é na tradição probabilística, fortemente associada com a ideia de controle e predição que se apoiam aqueles que defendem protocolos clínicos capazes de detectar sinais precoces de transtornos mentais deste a mais tenra idade.

    São expressões claras do que Zorzanelli e Ortega²⁸ denominam de cultura somática, na qual prevalecem as explicações biológicas para os fenômenos humanos e a crença de que é possível evitar e controlar ao máximo os danos de que o corpo padece. Trata-se de um contexto cultural de hipervalorização e de fascínio pela ciência médica e de suas conquistas no campo da saúde. Entretanto, quando se trata de compreender transtornos mentais, comportamentos e ações humanas, não basta considerar os alcances, é preciso reconhecer também os limites dos argumentos fisicalistas – centrados na redução ao cérebro ao agente exclusivo dos estados mentais.²⁹

    Ao mirar para as práticas curativas voltadas para pessoas com ‘deficiência’, Rojas³⁰ identifica fundamentos claramente convergentes com essa cultura somática e de reforço à medicalização , tais como: dependência de especialistas (terapeutas, médicos); confinamento, visando evitar que a presença da pessoa com deficiência afronte ao normalizado além de mantê-lo sob vigilância e controle; objetividade do discurso científico, reforçando o lugar da ciência como único meio de explicação e resolução para o que é considerado um problema ou uma disfunção.

    Fazendo ainda uma ponte com o tema do desenvolvimento humano que abordei há pouco, Rojas³¹ evidencia que a visão médica acerca da deficiência contribuiu para validação de um discurso sobre desenvolvimento que reforça, simultaneamente, os conceitos de normalidade e uma lógica cientificista e produtiva em um contexto de acumulação de capital e bens. Nesse sentido, a lógica do capitalismo moderno e suas implicações sobre o modo de tratar o outro, reconhecido como "estranho,³² desponta entre os elementos presentes na crítica decolonial. Retornarei a esta questão mais adiante.

    Concepções de cuidado – da técnica à dimensão existencial ou ontológica

    Ao refletir sobre o necessário enfrentamento do processo de patologização e medicalização da infância, vislumbro como um bom ponto de partida, situar a clínica dirigida a criança como um dos elementos que compõe o cuidado neste universo. Tal ênfase deve-se ao fato de que é precisamente no âmbito da atuação clínica que vem sendo observada a tendência à hipervalorização da dimensão técnica e de estratégias preditivas de risco, com implicações inclusive nas normas que orientam as normas institucionais de saúde da criança no Brasil.

    Por outro lado, é necessário admitir que a prática clínica é uma, entre outras práticas de caráter técnico, ou não, que envolve o processo do cuidado dirigido à infância. Cabe reconhecer, portanto, que o cuidado da criança mobiliza diferentes sujeitos (cuidadores domésticos, profissionais de áreas diversas, vizinhos etc.) e contextos sociais (família, serviços de saúde, escola, creches etc.). Assim, é mister considerar que existem concepções diversas e controversas sobre cuidado em saúde ou, mais especificamente, sobre cuidado infantil.

    Seguindo a cronologia da produção de Ayres, encontramos em artigo publicado em 2001,³³ uma espécie de manifesto em defesa de um cuidado em saúde que vá mais além do conhecimento e da prática técnica e abra espaço para as emoções, os afetos e os projetos de vida ou, em termos mais específicos, projeto de felicidade. Sem deixar de reconhecer a importância da vigilância epidemiológica ou sanitária, ele destaca igualmente a necessidade de se reconhecer os limites do conhecimento ou das ferramentas destinadas para controlar as enfermidades.

    Prevalece no horizonte técnico-normativo a ênfase na doença em detrimento de uma atuação que se volta para a vida, para a existência e reconhece sua complexidade. Na ocasião, Ayres³⁴ constatou que não temos nos perguntado, quando dialogamos sobre saúde, sobre o que sonham as pessoas (nós mesmos) para a vida, para o bem viver, para a saúde. A propósito, é oportuno interrogar se o cenário atual na clínica ou na saúde coletiva, mais especificamente no campo da saúde infantil, não se apresenta ainda mais restritivo.

    Estamos diante de lógicas discrepantes tanto na configuração das práticas que engendram, quanto nos parâmetros para avaliação de êxito. Enquanto o saber a serviço da produção de artefatos constrói objetos e visa o êxito técnico, aquele centrado no sucesso existencial, constitui sujeitos e privilegia projetos de felicidade.³⁵ Esta última noção ancora-se na compreensão de que a felicidade, além de singular e pessoal, implica valores publicamente aceitos e que influenciam na realização de tal experiência.

    Ayres³⁶ situa a construção compartilhada de projetos como central no ato de cuidar da saúde. Desde esta perspectiva, o compromisso com o projeto de felicidade por parte dos profissionais de saúde e outros cuidadores constitui o horizonte normativo do ato assistencial. Tal giro ético e epistemológico implica na valorização de um enfoque eminentemente interdisciplinar, no qual o aporte das ciências sociais e humanas é imprescindível.

    Em publicação posterior, Ayres³⁷ avança mais um passo no adensamento do debate teórico ao propor uma taxonomia para distinguir os sentidos do cuidado a partir de quatro categorias: ontológica, genealógica, reconstrutiva e crítica. Ele vai localizar em Heidegger (na obra Ser e tempo) a dimensão ontológica representada a partir de uma alegoria do cuidado que contempla os seguintes elementos: movimento, interação, identidade/alteridade, plasticidade, desejo, temporalidade, responsabilidade e projeto.

    São elementos que Ayres³⁸ mobiliza para pensar nas práticas de cuidado em saúde. Os primeiros remetem à identidade e seu caráter relacional e dinâmico. Identidades que são moldadas através do movimento no mundo, na trama das interações, na tensão com alteridades e cuja plasticidade permite um processo contínuo de criação e recriação do ser. Os demais nos ajudam a compreender o ato em si de cuidar, que mobiliza desejos, que opera no fluxo do tempo, que nos convoca a ter responsabilidade ou implicar-se, uma vez que somos detentores de conhecimento e, por fim, ser artífice e curador de tal projeto.

    Em sua dimensão crítica, o cuidado encontra-se envolto nas práticas e relações contemporâneas de saúde, fortemente mediadas pelas tecnologias, as quais tem demarcado seu perfil na esfera institucional. Em contrapartida, o cuidado desde uma ótica reconstrutiva se apresenta como uma tarefa e um compromisso fundamental quando se quer Cuidar.³⁹ Impõe-se aqui o desafio de reconstruir as práticas de cuidado em saúde em novas bases que passam por potencializar as interações, reconhecer a presença do outro (alteridade) e abrir-se para a expansão de horizontes. Em seu sentido reconstruído, o cuidado passa a designar uma atenção "interessada no sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou mental, e, por conseguinte, também das práticas de promoção ou recuperação da saúde.⁴⁰

    A definição apresentada acima já contempla o princípio da integralidade do cuidado, evocado posteriormente por Ayres⁴¹ para retomar a questão da importância e posição relativa da dimensão da técnica nas práticas de saúde. Neste trabalho, a ênfase recai sobre os aspectos mais operacionais do cuidado no cotidiano em saúde. Reflete sobre os meios e modos de atuação requeridos para fazer frente às múltiplas necessidades daqueles que necessitam e/ou demandam cuidado. Ao tempo que ele reitera a oportunidade de refletir sobre a técnica ao discutir o cuidado integral, assim como sua presença cotidiana e, por vezes, naturalizada no cotidiano dos serviços, ele apela igualmente para a valorização da arte do cuidar. São desafios que evidenciam a necessidade de recompor competências, relações e implicações ora fragmentadas, empobrecidas ou desconexas.⁴²

    Na mesma publicação, considero especialmente oportuno a referência de Ayres⁴³ ao uso da "sabedoria prática. Um movimento guiado pela pretensão de fundir horizontes entre nossos saberes técnicos e os saberes que as pessoas de quem cuidamos acumularam sobre si próprias e seus projetos de felicidade".⁴⁴ As melhores escolhas sobre o que fazer ou como agir nas diversas situações de cuidado são potencializadas a partir desta abertura necessária para que, do diálogo, entre esses múltiplos saberes. Tal princípio é especialmente oportuno no universo do cuidado infantil, no qual a atuação de cuidadores domésticos, profissionais de creches ou educadores, conforme a idade da criança, é parte inerente ao processo de cuidado.

    Para concluir este tópico, destaco alguns apontamentos extraídos do trabalho de Carvalho, Freire e Bosi, que também se volta para a dimensão ontológica do cuidado. Partindo da crítica ao predomínio da lógica pragmática e dimensão técnica dominante na noção de atenção psicossocial, realçam a categoria cuidado interessado com o modo de ser-no-mundo, enfatizando especialmente sua dimensão ética. Evoca-se mais especificamente a escuta ética, a qual implica ir além e de uma atitude de resposta à necessidade do outro para constituir-se como uma abertura ao encontro com o outro. Um movimento que requer do profissional, em sua práxis na saúde, a disposição para ser afetado, ser desalojado de seu saber-poder para, então, poder acolher quem a ela acorre em sua exigência ética por respeito e cuidado.

    Pensando essa práxis no campo da infância, tal escuta pode-se dar em uma perspectiva socio-culturalmente orientada que busque compreender as seguintes questões: Como a criança se vê através dos olhos dos outros e de suas expectativas? E dos signos que observa no contexto onde convive? Como marcadores de pertencimento social, notadamente, raça, classe social e gênero são percebidos ou vivenciados pelas crianças?

    Outra ruptura epistemológica: na rota do giro decolonial para pensar sobre a criança em sua singularidade

    Ao tratar da questão da patologização da infância, fui tecendo até aqui a crítica ao tecnicismo e a hegemonia do saber biomédico e seus limites nas práticas avaliativas do comportamento, corporalidade ou subjetividade infantil, vislumbrando perspectivas alvissareiras que nos oferecem a reconstrução do sentido do cuidado, orientado para a existência do ser e para projetos compartilhados de felicidade.

    Nesta última seção retomo a ideia ensejada na introdução de apostar em uma ruptura mais radical que passa pelo questionamento das bases teóricas que têm orientado nossas concepções e práticas no campo das ciências sociais e humanas, em suas múltiplas aplicações ou contextos, tendo como referência os debates em curso em torno das categorias modernidade, colonialidade e decolonialidade. Devo dizer que pisarei com cautela nesse terreno, uma vez que se trata de um caminho que venho trilhando muito recentemente e que cuja complexidade certamente demanda muito mais leituras, intercâmbios e aprofundamentos. Ainda assim, me sinto absolutamente convencida da potência e urgência desse diálogo e das pistas que ele oferece para entender o necessário enfrentamento de modelos excludentes e universalizantes de ser e estar, que no caso latino-americano reflete muito do nosso passado colonial e de seus desdobramentos.

    Situando de forma sucinta as categorias referidas, começo me valendo da síntese apresentada por Lander, que destaca as seguintes dimensões presentes na noção de modernidade que tem impregnado fortemente a mentalidade intelectual nas ciências sociais: uma visão universal da história; ancorada na ideia de progresso que, por sua vez fundamenta a classificação e hierarquização de todos os povos, continentes e experiências históricas; a naturalização das relações sociais, da natureza humana da sociedade liberal-capitalista assim como a naturalização ou ontologização das múltiplas separações próprias dessa sociedade e, por fim, o reforço à ideia de superioridade dos conhecimentos científicos em relação a todos os outros conhecimentos.

    Considero especialmente oportuno para o tema em foco, considerar a alegoria de Castro-Gómez⁴⁵ da modernidade como uma máquina geradora de alteridade que, em nome da razão e do humanismo, exclui do seu imaginário o hibridismo, a multiplicidade, a ambiguidade e a contingência das formas de vida concretas. Podemos dizer, portanto, que o estabelecimento de um padrão universal ou, na melhor das hipóteses, bastante restritivo de normalidade que passa a perseguir o sujeito ainda bebê e que, certamente, encontra-se descolado da realidade social, é parte dessa engrenagem.

    Cabe reconhecer ainda que modernidade-colonialidade são desdobramentos históricos dos processos do colonialismo, que impactaram fortemente na formação sociocultural e política do nosso continente. Todo este imbricado de conceitos mereceria bem mais do que alguns parágrafos. Por ora, recorro a Maldonado-Torres,⁴⁶ primeiro para entender que não é possível conceber o colonialismo de forma genérica, desconsiderando as especificidades de sua ocorrência em cada tempo e espaço, assim como suas implicações no presente; depois, para distinguir as seguintes noções:

    colonialismo pode ser compreendido como a formação histórica dos territórios coloniais; o colonialismo moderno pode ser entendido como os modos específicos pelos quais os impérios ocidentais colonizaram a maior parte do mundo desde a descoberta; e colonialidade pode ser compreendida como uma lógica global de desumanização que é capaz de existir mesmo na ausência de colônias formais.⁴⁷

    Considero especialmente necessário alinhar-se ao movimento que nos convoca a produzir um giro decolonial,⁴⁸ capaz de fazer as múltiplas facetas da colonialidade – do poder, do saber e do ser⁴⁹ ⁵⁰ ⁵¹ que alimentam a violência e subordinação epistêmica, racial, de gênero etc. Chama atenção, no entanto, a escassa penetração deste movimento no contexto da saúde coletiva brasileira, incluindo o campo da saúde mental.

    Mesmo no campo da educação, onde as aproximações com esse debate são mais evidentes, constata-se uma forte lacuna de produções nacionais. Melgarejo e Maciel⁵² identificaram alguns trabalhos exemplares alinhados com esse giro epistêmico no Equador, Chile e Colômbia, nos quais se coloca no centro do debate as relações entre infância e colonialismo. Em sua revisão, os autores identificaram que os trabalhos sintonizados com a perspectiva decolonial no campo da infância, cujo número ainda é bastante reduzido, vem abordando os seguintes temas/questões:⁵³

    Estudos sobre a condição da infância indígena em contextos de migração transnacional e urbana (meninos e meninas migrantes, estrangeiros e indígenas em um contexto de periferia urbana – dão especial destaque para os contextos de multiplicidade identitária e as intersecções de categorias de diferenciação;

    O conceito de protagonismo infantil como ferramenta para compreender as infâncias trabalhadoras organizadas - ênfase nos processos de agência infantil;

    A agência infantil em contextos de violência e conflito armado, demonstrando a capacidade das crianças de se adaptar, interagir e projetar formas de viver e conviver com a guerra e outras formas de violência;

    Exercícios teórico-reflexivos ou estudos de revisão sobre o campo a partir do reconhecimento da trajetória histórica das noções de infância);

    Relações entre a infância e o conceito emergente de território – crianças como sujeitos de uma espacialidade onde situam seus mundos infantil;

    Etnologias de infâncias indígenas em seus territórios históricos e de seus modos de vida - questionam universalismos e critérios etários baseados na cultura hegemônica ocidental;

    Problematização da interculturalidade e no diálogo-participação das crianças.

    Certamente, há um espaço enorme a ser preenchidos para ampliar este escopo temático. Além disso, a possibilidade de seguir na trilha do giro decolonial não se restringe ao contexto da pesquisa e da produção acadêmica. Apresenta-se como uma oportunidade de ressignificar e reinventar o saber e o agir no campo da infância onde quer que ele seja requerido. Focalizando o cuidado infantil, seja na saúde coletiva ou na clínica, seguir essa rota nos abre novas possibilidades.

    A proposta do giro decolonial convida a todas, todos, todes comprometidos com a infância a reconhecer e dar visibilidade a outras maneiras de contar a história, outras formas de organização da vida e dos saberes, bem como a produção de novas subjetividades que não carreguem a herança dos padrões coloniais de poder que seguem vigentes na sociedade.⁵⁴ Neste sentido, encerro este capítulo compartilhando com os leitores uma experiência local muito potente e que se apresentou em um momento especialmente crítico: da pandemia da Covid-19. Trata-se do Podcast Papo de Criança, uma iniciativa de Cláudia Mascarenhas que conta com o apoio do Instituto Viva Infância.

    Em seus diferentes episódios, esse podcast tem abordado temas relacionados às crianças, suas famílias e as comunidades onde estão inseridas, que vão além da pandemia em curso. Com seriedade, delicadeza e compromisso ético-político, essa iniciativa tem contribuído para dar visibilidade a idiossincrasias e alteridades múltiplas, próprias da diversidade social, cultural e política na qual vive a nossa infância. Das muitas e ricas narrativas que têm circulado no Papo de Criança, pincei no quadro 1 alguns relatos que perpassam os universos de famílias/profissionais e crianças contextos negras, indígenas, ciganas e com deficiência (a casa, a escola, a aldeia, o território quilombola, as instituições, a rua etc.).

    Relatos Podcast Papo de Criança>55

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