I My Me! Strawberry Eggs: uma discussão de gênero a partir de uma série de animação japonesa
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Concebido como dissertação para o mestrado em Literatura e Interculturalidade pela UEPB, entre os anos de 2015 e 2017, o livro problematiza o lugar do corpo e das performances de gênero no ambiente escolar, tomando como referência as vivências dos dois protagonistas do anime. Na primeira parte, o leitor é apresentado a Hibiki Amawa, um professor travestido que se defronta com dilemas que vão desde o imperativo da sobrevivência econômica até o impossível de um vínculo amoroso interdito nos mais diversos sentidos. Na segunda parte, somos apresentados a Fuuko Kuzuha, que se depara com a própria sexualidade a partir do autoestranhamento e que migra, paulatinamente, da condição de fragilidade para o protagonismo do seu próprio desejo. Paralelamente à trajetória dos dois protagonistas e outros personagens da trama, o autor também realiza um breve percurso sobre o lugar do feminino no Japão, dentro e fora da literatura de mangá.
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Book preview
I My Me! Strawberry Eggs - Alan Paulo Borges do Nascimento
Dedico este trabalho a todos os que se dispõem a debater a problemática do desejo enquanto dimensão fundamental da existência humana. Em especial, ao movimento feminista e ao movimento LGBT, sem cuja luta incansável pela igualdade de direitos, esta discussão acerca de uma temática tão palpitante não seria possível. As gerações futuras hão de reconhecer devidamente, a inestimável contribuição de todos vocês na construção de um mundo melhor e mais digno.
Agradecimentos
A Deus, o nome-do-pai
por excelência, com quem mantenho uma relação das mais intensas e também das mais gratificantes, por sempre me lembrar, de forma sutil, que me muniu com o necessário para que eu faça o que me cabe.
À minha mãe, que me incutiu desde a mais tenra idade a paixão pela literatura.
A Silvaní Lima, namorada e futura companheira de existência, pelo carinho, cuidado e compreensão constantes, mesmo quando a distância nos separava. Que o amor que nos une cresça e frutifique.
Ao caro amigo José Carlos do Nascimento Júnior, com quem partilhei da iniciação à cultura pop japonesa e que me apresentou o anime que serve de corpus a este trabalho, nos idos de 2009. Sem você, este momento não seria possível.
A Taciano Valério, orientador na minha graduação em Psicologia e primeira pessoa a me incentivar para o Mestrado. Mais do que um professor, um amigo devotado cujo desvelo e atenção jamais poderei recompensar devidamente. Aos seus pais, o Sr. João Félix e a Sra. Inácia, que me acolheram regiamente em seu lar, quando dos primórdios da pós-graduação.
Ao caro amigo Durval Lima, que concorreu para que eu seguisse adiante nesta empresa, meu muito obrigado.
A Raffaela Medeiros e Morais, que me acolheu fraternalmente quando ainda do processo seletivo, em fins de 2014, com quem pude estreitar laços de amizade e cuja família me recebeu com uma cordialidade mais do que cativante.
À Sra. Betânia Silveira, que me acolheu sob seu teto ao longo destes dois anos, com um carinho e desvelo maternais, assim como toda a sua família, que acabou por me adotar
durante a minha estadia em solo campinense e que levarei em meu coração até o fim dos meus dias.
Ao caro Prof. Dr. Antônio de Pádua Dias da Silva, que acreditou no potencial desta pesquisa mesmo quando eu duvidava dela e cujas orientações e apontamentos foram de um valor inestimável, o meu muitíssimo obrigado. Outrossim, você foi também o responsável pela descoberta do meu lado contista e pela redescoberta do prazer da escrita. Foi uma imensa honra ter sido seu orientando.
À cara Aldaíza Brito, cuja solicitude para com todos os que chegam ao PPGLI é mais do que cativante, minha profunda gratidão. É uma imensa honra poder privar de sua amizade. Sentirei imensa saudade das suas apreciações acerca dos meus escritos e de nossas conversas, quando das visitas esporádicas à sua sala, ou dos finais de aula.
A Wellington e Wesley, cujas mãos diligentes cuidam dos textos que nos são repassados, bem como da impressão final de cada um dos nossos trabalhos, meu muitíssimo obrigado.
Ao corpo docente da UEPB e do PPGLI, em especial aos professores: Diógenes Maciel, Elisa Mariana, Zuleide Duarte e Maria Goretti Ribeiro. O convívio com cada um de vocês foi um aprendizado constante e que esteve para além da esfera acadêmica.
Aos alunos do Oitavo Período Noturno do curso de Letras e ao caríssimo professor Edson Tavares Costa, com quem pude privar da experiência do estágio e conhecer pessoas fantásticas, o meu muito obrigado.
Aos colegas da turma 2015.1, em especial os queridíssimos: Giordana Vaz, Patrícia Costa, André Medeiros, Oziel Rodrigues, Maria Medeiros, Flávia Medeiros, Sayonara Dawsley, Silvanna Rodrigues, Larissa Farias (2016.1), Felipe Paiva e Adriana Silva. A amizade que aqui surgiu e os momentos que vivemos constituem, sem sombra de dúvida, a joia mais preciosa e fulgurante deste tesouro que foi o Mestrado em Literatura e Interculturalidade.
A todos os que compõem a comunidade acadêmica da UEPB, nas mais variadas esferas (pedagógica, administrativa, serviços gerais etc.), o meu muito obrigado. A universidade é feita por vocês.
Por fim, a CAPES o meu muito obrigado. O suporte financeiro nesta última e decisiva etapa da pesquisa foi fundamental para que a mesma pudesse acontecer de fato. Desde as idas e vindas entre Pernambuco e a Paraíba, até a aquisição do acervo necessário à produção desta dissertação.
"Sem mais medo de entregar
Meus lábios sem antes olhar
Sem mais medo de acariciarmos
Nossos corpos e sonhar
À merda com o armário e o divã!
Se é preciso lutar,
Lutar também é educar.
Pois em assuntos do coração
Não há regra de dois
Pois somos distintos, somos iguais
Basta de guetos, façamos ouvir nossa voz!"
(TXUS. Intérprete: Mägo de Oz.
In: MÄGO DE OZ.Finisterra.
Madrid, Espanha: Locomotive
Music, p2000. 1CD, Faixa 12)
SUMÁRIO
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Prefácio
Introdução
1ª PARTE
Hibiki Amawa: Um Professor em Apuros
Capítulo I Um Professor que se Traveste
Capítulo II A Indumentária como Marca da Contradição
Capítulo III A Equiparação de Gênero Revisitada na Trama: Uma Troca de Papéis
Capítulo IV Uma Antagonista na Contramão do Feminismo Nipônico
Capítulo V Um Personagem que Cresce Mais do que o Ator
Capítulo VI Um Professor Travestido e o Corpo como Tabu: Agruras de uma Docência Crossdresser
Capítulo VII A Persona no Fio da Navalha: Recrudescem os Perigos
Capítulo VIII O Último Ato no Seitow Sannomiya
2ª PARTE
Fuuko Kuzuha: Um Outro Olhar Sobre a Mesma História
Capítulo I O Gênero Shojo como uma Revolução Nascida na Literatura
Capítulo II Fuuko Kuzuha: Entre a Criança e a Mulher
Capítulo III O Apaixonamento como Caminho para a Interioridade
Capítulo IV Três Destinos que se Cruzam no Desencontro
Capítulo V Da Derrocada da Ilusão ao Despontar de uma Nova Era
Considerações Finais
Referências
Landmarks
Capa
Folha de Rosto
Página de Créditos
Sumário
Bibliografia
Prefácio
ou
Uma Discussão em Torno de Afetos e Práticas Relacionadas aos Gêneros (Não) Binários
Há décadas que discussões em torno de afetos e práticas sociais e afetivas relacionadas aos gêneros são entabuladas, visando a melhores interpretações dos sujeitos sociais, porque a felicidade dos integrantes de uma sociedade parece ser o ideal maior dos governos. Pensar estratégias de melhor servir aos outros em espaços democráticos e não democráticos pode ser um ideal visado por quem assume os postos de comando de uma sociedade, não importando, aqui, as diversas esferas em que as pessoas são alocadas. Vale dizer que os órgãos institucionais, em princípio, trabalham para construir políticas públicas, quando realmente se interessam pela causa, em favor dos sujeitos sociais cujas práticas de gênero se tornam dissidentes em sociedades tradicionais ou de forte apelo conservador.
Nesse sentido, o conteúdo do livro que o leitor tem em mãos atende a essa demanda ideológica, se é que assim posso me expressar. Há uma reflexão aprofundada sobre modos de sujeitos se subjetivarem quanto a desejo, orientação sexual, papéis de gênero, modos de performar e de se construírem enquanto sujeitos de si, sujeitos da cultura, sujeitos na cultura, sujeitos sociais. A reflexão travada abre espaço para outras ou para a expansão da mesma questão. Como o ponto de partida da reflexão de gênero é travada a partir de uma série de animação nipônica – I My Me! Strawberry Eggs! –, nela a discussão não é encerrada porque abre veios discursivos para os textos literários, para as narrativas fílmicas, para as performances de artistas, para as letras de composições musicais, para a pintura, a fotografia, o videoclipe e outros. Ou seja, há uma necessidade por consolidar uma prática discursiva sobre o assunto em vários campos do conhecimento.
Quando penso no foco da discussão entabulado por Alan Paulo Nascimento na série citada – o travestimento do professor Hibiki Amawa em mulher e do enamoramento de sua aluna Fuuko Kuzuha por ela –, passo a entrar num universo em que os modos de se subjetivar enquanto sujeitos de desejo, tão caros, ainda hoje, a sociedades e pessoas conservadoras, encontram ressonância viva nas pessoas que transitam e habitam o mundo de hoje, o momento do agora. O afeto desenvolvido por Fuuko pela professora/personagem Amawa destrava uma agenda sexual e de gênero que coloca em evidência outros modos de subjetivação similares ao par professora-aluna.
Primeiramente, apesar do travestimento em mulher do professor de educação física, o/a expectador/a da série de animação japonesa não pode concordar que a relação de enamoramento de Fuuko por Amawa seja de uma garota (Fuuko) por um garoto (Hibiki), porque não é a figura masculina que trava conhecimento e relações professorais com a garota de 14 anos. É a figura da professora (persona do personagem) que agrada aos olhos da garota e traz à luz sensações, emoções e afetos desenvolvidos espontaneamente por ela. Assim, há uma equação em que a aluna se apaixona pela professora; há uma relação de iguais ou entre iguais. E essa relação altera a percepção do professor travestido que, na cultura heterocentrada, por dentro ou sob a máscara, é homem, heterossexual e, por isso, tem despertado em si um sentimento também de proximidade ao sentimento da aluna. Todavia, há o porém: toda e qualquer forma de afeto demonstrada por ele, através de sua personagem/performance, é de natureza
lesbiana.
A natureza
lesbiana a que me refiro é a que se torna transparente no enredo da narrativa. Os choques de desejos, as angústias apresentadas, sejam por uma ou outra personagem, só dá provas do quanto há uma sensibilidade em tratar do assunto em espaços culturais conservadores e que só podem ou querem enxergar as relações de gênero e de sexualidades pelo âmbito puramente binário e heterossexual, lógica que é combatida pelo pensamento de Alan Paulo Nascimento. O autor torna relevantes os lugares culturais e privados dos sujeitos que, como se à deriva, procuram portos onde ancorar aquilo que descobriram e continuam descobrindo, porque as sociedades e o pensamento conservador impediram, por séculos, que fossem garantidas quaisquer formas de afetos, sentimentos, emoções, práticas e performances de gênero e sexuais fora da ordem macho e fêmea, homem e mulher, masculino e feminino.
A performatividade de gênero sentida em I My Me! encontra ressonância em outras textualidades, a exemplo dos romances Grande Sertão – Veredas (de João Guimarães Rosa), já citado por Alan Nascimento, e El amante lesbiano (de José Luís Sampedro). Cito esses dois para não me estender na apresentação do livro em pauta. No texto do brasileiro, o/a leitor/a encontra uma mulher travestida de homem que desperta afetos sinceros de outro homem por ele. Trata-se de uma relação de afeto puramente
homoerótica em um universo de jagunços, homens cujas subjetividades de masculinidade foram construídas sob todo um território de preconceito e rejeição dos trejeitos femininos. O conflito sentido por Riobaldo é por amar Reinaldo, porque ele se construiu homem, e homem que é homem se afeta de desejo por mulheres, não por homens. No texto do espanhol, o autor explora afetos e relações de gênero que fogem do convencional: um homem que deseja uma mulher, mas ambos assumem, pelo desejo e internamente, posturas contrárias ao seu sexo e ao seu gênero biológicos, ou seja, o homem endereça seu desejo a ela performando uma mulher lésbica e ela, ao dirigir seu afeto para ele, o faz na ideia de que se sente lésbica e vê no outro a projeção de uma igual, uma mulher.
Dessa forma, as questões sobre ser ativo ou passivo, dominador ou dominado, homem ou mulher, masculino ou feminino, dentre outros termos ou categorias do código binário de gênero são desfeitas, rasuradas, borradas em favor de uma diversidade de sentimentos, de modos de existir. Traz à luz outra discussão tão presente nos dias de hoje: homens trans que engravidam de mulheres trans. Ou seja: os corpos de desejos andam à deriva, ainda, ansiando por portos em que possam ancorar, em algum momento, esse menu de gênero e de subjetivação sexual. Lembra também o miniconto de Marina Colasanti, Apoiando-se no espaço vazio
: adoecendo a mulher, depois de várias tentativas de gravidez, ao longo de 20 anos, o marido chama o médico e a revelação é feita: apesar da doçura, ela era um homem. O marido, ouvindo a revelação, e não tendo em que se apoiar, não questiona o fato revelado porque ele, apesar da barba e do bigode, era mulher.
Por fim, trago os exemplos dados porque o livro de Alan Paulo Borges do Nascimento provoca o/a leitor/a nesse aspecto, a partir da reflexão que faz ao analisar a série de animação japonesa, centrando-se no aspecto do travestimento, da prática crossdressing ou cosplay. São práticas ficcionais que encontram projeção em vidas e corpos reais, vivos, diários,