Cotidiano, divã, loucura, bárbara
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Na vida, como no teatro, precisamos correr riscos para tirar deles uma lição. Apostar na alegria, na paciência e na solidariedade do personagem "Marcel", por exemplo, pode ser uma boa maneira de se viver de modo mais leve. A estética é uma das gratificantes preocupações do autor. Os cenários são bem estilizados, assim como a luz, e cumprem o difícil papel de dar vida à obra.
Que o leitor se divirta, reflita, ria, chore, identifique-se. Que possa olhar para dentro e ver o quanto de cada um existe em si próprio. Que a chama incandescente do fogo criativo, citada no começo, passe das páginas escritas pelo autor para o coração do leitor, tocando-o.
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Book preview
Cotidiano, divã, loucura, bárbara - Gustavo Espeschit
Sobre uma pessoa única.
Existem pessoas que são especiais e aparecem na vida da gente quando menos esperamos e nos marcam de uma tal maneira que as carregamos conosco até o fim da vida. O senhor Gustavo Espeschit, ainda garoto, entrou na minha vida e se tornou uma peça fundamental na minha formação como pessoa e como artista.
Vinculados um ao outro pelo amor ao cinema, de mãos dadas pela dramaturgia e amor incondicional ao teatro, eu tive a honra de dirigir e atuar na montagem de sua primeira peça (ao menos a primeira que eu tive a oportunidade de ler). Além de uma montagem que nos deixou muito satisfeitos com o resultado, ela ainda foi a celebração da nossa amizade, tanto da nossa quanto com a que tínhamos com o João e com a Lívia, também integrantes do elenco.
Num profícuo revés, ele veio a personificar Gil Vicente, na colagem dos textos do dramaturgo português que eu havia feito. Assim atuamos cada qual em um texto feito pelo outro. E calmamente, a personalidade dramatúrgica
de cada foi se formando e andando de mãos dadas, abrilhantando a nossa história pessoal. Depois ele me mandou outros textos e eu segui admirando seu trabalho.
O mundo deu voltas e, por acasos do destino, nos caminhos que a vida traça, fomos cada qual para um lado... Tivemos outras tantas experiências... Aprendemos mais coisas com o mundo... A escrita permaneceu presente em nossas vidas, como o cinema... Graças a este último voltamos a nos interligar e a manter contato. E então, meu amigo, vai finalmente mostrar ao mundo o que pude ver e ler antes de todos e me pediu para escrever esta singela apresentação de seus textos.
Não posso, infelizmente, falar algo sem entregar o que as páginas seguintes vão apresentar. Até mesmo porque eu nunca me vi neste papel de apresentar uma obra como a do meu caro Gustavo. Isto se deve à forma como ele traz em cada um de seus personagens um pedaço das passagens da vida que cruzaram seu caminho (mesmo que não seja proposital e apenas eu veja assim, talvez).
Fato é que a capacidade do meu amigo e irmão em conseguir fazer seus personagens densos, e com grandes pitadas de todas as magníficas obras que ele devora em seu cotidiano, tornam suas peças um conjunto formidável de aspectos pitorescos, de pessoas que eu reconheço no meu próprio dia-a-dia.
Acho difícil falar sobre sua obra porque a considero complexa. Se permitir brincar em um texto com a mesma facilidade com que apresenta os problemas sérios que perturbam seus personagens é algo fantástico e que eu admiro nos textos que eu li.
Gosto de como ele faz a plateia ser cúmplice da cena, mas não cúmplice do personagem. Gosto de ler suas peças como gosto de ouvir, ler e seguir meu tão único Gustavo Espeschit.
Leia o que ele escreve e entenda como (e talvez porque) eu o admiro.
Dante Tacchi
Ator e Dramaturgo – 2021
Prefácio
Em Cotidiano, Divã, Loucura e Barbara
nos vemos nas histórias criadas pelo jovem escritor Gustavo Espeschit. Estão presentes nelas alguns arquétipos que formam o mundo moderno. Está também uma leitura de mundo que é psicanalítica.
Espeschit, com um olhar aguçado, sensível e analítico, o mesmo que um psicanalista deve ter, disseca a loucura que está em nós.
Ações, sentimentos, sensações que não sabemos de onde vêm. São inconscientes.
Enquanto lemos, escutamos Drummond, Tennessee Williams, Nelson Rodrigues. Tudo isso embalado pela potente, ao mesmo tempo que doce voz de Maria Bethânia. Ler Espeschit é como ler vários bons livros ao mesmo tempo. É como ler as pessoas."
Lucas Moscoso, psicanalista.
Introdução
Na verdade, é realmente difícil tentar dizer alguma coisa sobre os textos presentes aqui. Dentre os vários escritos e esboços que tenho trazido guardados dentro de gavetas, em cadernos espirais, ou adormecidos dentro do computador, esses quatro são os que deram o grito e resolveram sair do ostracismo. Não que os outros não mereçam tal honraria, mas talvez porque eles ainda não estejam prontos. Escrever é, como já disseram vários outros autores, uma tarefa dolorosa, e isso se deve ao fato de ser uma tarefa solitária, como também já afirmaram, tornando a minha colocação pouco original. Autores esses que vivem na minha cabeceira e alguns que tem até uma forte influência nestes trabalhos. Uma vez disseram que é uma profissão marginal, e com certeza é.
Por ordem cronológica temos o texto que mais me afeiçoa porque foi o primeiro que conseguiu sair da mente para o papel e, consequentemente, apesar de ter sido numa montagem bem simples que ficou em cartaz por apenas algumas sessões, do papel para o palco, que é o local dos textos de teatro. Cotidiano
foi escrito da maneira mais simples possível, de uma ideia que vinha martelando fazia tempos em minha cabeça, sobre um assunto talvez não tão inovador, mas de certa forma intrigante. A história da madame emergente e de seu namorado cafajeste que resolvem seus problemas amorosos por intermédio de um cabeleireiro, aqui elevado ao posto de psicólogo, serviu para que eu trouxesse à tona coisas que já havia presenciado ou coisas que chegaram aos meus ouvidos de uma maneira ou de outra sobre o conflito eterno entre homens e mulheres e a hipocrisia que reside entre nós. É isso que a peça tenta mostrar através de uma situação narrada por uma voz em off, que poderia ser de qualquer pessoa que conhecemos ou simplesmente de um observador da vida. Inicialmente tinha o intuito inicial de ser um monólogo, onde Marlene contaria suas aventuras amorosas para o público, mas ele mesmo pediu mais personagens, pediu que o namorado cafajeste realmente existisse e pediu, acima de tudo, o personagem Marcel. Daí tudo foi fluindo de uma maneira incrível e, para falar a verdade, a versão final seria a terceira remodelagem do texto original.
Explico. Quando surgiu a possibilidade de encenar a peça com um grupo do qual eu fazia parte na época, nas suas leituras e ensaios, o texto foi ganhando vida e sofrendo algumas modificações espontâneas que acabaram indo para a versão final. As falas de Marcel foram bastante aprimoradas, apimentadas e seus comentários se tornaram mais sarcásticos e mais realistas. Tudo isso com a ajuda do primeiro elenco, grandes amigos e pessoas que eu nunca posso deixar de agradecer por terem dado vida, de maneira inesquecível, a essas personagens, pelas quais eu tenho um imenso carinho e consideração. A montagem não ficou, como já disse, muito tempo em cartaz e nem chegou a atingir o grande circuito, sempre restrito à grandes produções e a nomes e textos famosos, mas ficou tempo suficiente para que eu soubesse que o texto tinha potencial. E foi depois de ouvir vários comentários e sugestões, que me surgiu Divã
.
Não é o segundo na ordem cronológica, mas se liga ao Cotidiano por trazer novamente o personagem Marcel, mas enfocando mais o cenário do seu salão e as várias histórias que passam por lá todos os dias. Desengavetei algumas histórias, tiradas de restos
do Cotidiano trouxe novos personagens e situações como os dilemas de Lucy e Murilo e da socialite afrancesada Aymê. O curioso é que, lendo obras de outros autores, achei em dois cronistas brasileiros muito do que eu estava tentado dizer e pedi a eles licença, fazendo uma parceria anônima e póstuma e dando a eles todos os créditos: Carlos Drummond de Andrade e Antônio Maria. Coloquei algumas de suas palavras nas falas dos meus personagens, como uma forma de homenagear quem participou da minha formação intelectual e cultural.
Mas ainda faltava algo que a última cena de Cotidiano deixava do ar. Foi então que resolvi trazer de volta também o casal protagonista da primeira história e suas aventuras pós-matrimônio. E isso é pautado por todo o texto, já que logo no início Marcel o menciona. E entre as aventuras
de suas outras clientes no primeiro e segundo atos, vemos que houve algo depois do que se sabe através das cenas do primeiro texto. E em se tratando de personagens tão imprevisíveis como eles, nada mais prático do que colocá-los em uma situação um pouco incomum para um casamento. E foi aí que Carlos e Antônio entraram.
Os outros dois textos partem para uma vertente completamente diferente da comédia de costumes escrachada dos dois primeiros. A ideia de escrever Loucura, a história de uma diva do teatro de outrora que não aceita a ideia do fracasso e da obscuridade, me ocorreu quando, de madrugada, assistia a um documentário sobre Greta Garbo e seu auto isolamento do mundo. Lembrei-me então de filmes como Crepúsculo dos Deuses, com a magnífica Gloria Swanson e com o belo Willian Holden, e também do clássico A Malvada com Bette Davis (um dos melhores filmes que já assisti) e tentei utilizá-los também como referência. Assim nasceu Telmah, que tem um pouco de Greta, de Norma, de Margo Channing, de Eve Harrington. Tudo isso misturado a uma trilha sonora pautada por Polonaises de Chopin, e um jogo de luzes que idealiza realidade e desejo, no melhor estilo rodrigueano. Algo ficou borbulhando na cabeça. Acho importante não nos esquecermos de nossas