Contradança
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Contradança - José Vecchi de Carvalho
PREFáCIO
A forma do conto
C
ontradança é o segundo livro de contos de José Vecchi de Carvalho, mas seu ingresso no mundo das artes começou com a música, o que é bastante interessante, especialmente tendo em vista que a palavra contradança
tem relação com dança e música. De acordo com o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa¹, a palavra contradança designa 1. Dança de caráter rústico, de quatro ou mais pares que se defrontam e executam uma série de movimentos contrários
. 2. A música que acompanha essa dança
. Identificar possíveis relações entre narrativa e dança ou entre narrativa e música é algo que deixo como convite para o leitor, sobretudo aquele interessado em se aprofundar nos sentidos do par forma e conteúdo
da obra literária. Por ora, acho importante ressaltar, em primeiro lugar, que essas narrativas curtas são ágeis e variadas e que seu autor, como bom contador de estórias, soube manusear com talento a forma do conto.
São dezesseis narrativas que recebem como título nomes de personagens importantes nas tramas (Estela, Caleb, Andrey, Zara, Inês, Talarico, Mindinho, Corina, Otília, Heraldo, Cecílio, Mônica, Gavinha, Fabius, Murilo, Nanci). Um rol variado de sujeitos, espaços e temporalidades. O modo de narrar, muitas vezes, mais preso ao acontecimento do que aos pensamentos das personagens, encerra uma timidez semelhante às investidas de algumas personagens da coletânea, a exemplo do jovem rapaz do conto Estela
, interessado nessa mulher casada; ou Caleb, interessado em desvendar segredos do vizinho que habita a cobertura do prédio; ou o narrador-personagem que sente atração física pela vizinha de apartamento Inês. No entanto, com a observação de que as narrativas se detêm mais nas descrições de acontecimentos do que nas descrições de pensamentos, não quero sugerir que são narrativas desprovidas de mistério, suspense, tensão. No conto Zara
, há o tema da violência contra a mulher, seguida pelo assassinato do marido e prisão da esposa. Zara, a esposa espancada, conforme depoimento da amiga ao delegado, é inocente da morte do marido, mas é condenada e, ao sair da prisão, está feia e velha precocemente, como Mauro queria
. Sem usar a palavra loucura, o narrador encerra a narrativa contando que Zara
Agora, desce e sobe a avenida com o seu sorriso sem compromissos e sem dentes. Uma cesta de doces e salgados imaginários, um carrinho de bebê levando uma boneca e uma mamadeira vazia. Canta um acalanto para ninar a criança; às vezes chora baixinho, é quando conversa com o marido. Seca os olhos com uma fralda esfarrapada e suja; segue em frente vendendo seus doces e salgados para esquinas, postes e clientes invisíveis. O dia todo, pra cima e pra baixo. Sem parar (página 37).
A passagem acima se assemelha ao início da narrativa: Desce e sobe a avenida com o seu sorriso sem compromissos e sem dentes. Uma cesta de doces e salgados imaginários, um carrinho de bebê levando uma boneca e uma mamadeira vazia
(página 33). Essa passagem, no início, foi cortada pelo diálogo entre a amiga da esposa e o delegado. Logo ficamos sabendo que de nada adiantou o depoimento que inocentava a esposa. A violência é um tema explícito, mas o modo como a estória é narrada, tão rápida, concisa e fragmentada, como o depoimento da amiga tomado pelo delegado, contribui para que possamos observar o vazio em que a mulher vítima de violência é jogada nessa sociedade que lhe recusa os direitos sociais. Como outras narrativas da coletânea, essa termina sem grande desfecho. Muitas narrativas abordam cenas cotidianas de pessoas comuns, narradas com a concisão de um artífice experiente na forma do conto. Nesse sentido, José Vecchi executa muito bem a estrutura de seus contos, dosando movimento, expectativa, suspense e reflexão, para um leitor interessado na textualidade e não somente nos destinos das personagens.
Em um pequeno texto intitulado Contos e Contistas
², publicado pela primeira vez em 13 de novembro de 1938, no jornal O Estado de São Paulo, o escritor Mário de Andrade (2002, p. 9), ao tratar de um inquérito realizado pela Revista Acadêmica
sobre os dez melhores contos brasileiros, observando que alguns dos escritores do inquérito se preocupam em saber o que é conto, escreveu que em verdade, sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto
. Trata-se de passagem bastante conhecida pelos estudiosos da narrativa curta. Mario de Andrade, comentando rapidamente os contistas Guy de Maupassant e Machado de Assis, propunha, no entanto, que talvez a maior lição do inquérito, fosse observar que os verdadeiros contistas não escrevem contos que se salientem, pela simples razão que os têm frequentemente bons
, pois, em suas palavras, não são descobridores de assuntos pra contos, mas da forma do conto
, e finalizou o texto com a seguinte lição: Em arte, a forma há de prevalecer sempre esteticamente sobre o assunto. O que esses autores descobriram foi a forma do conto, indefinível, insondável, irredutível a receitas
(ANDRADE, 2002, p.11).
Ao lermos as narrativas de Contradança, deparamo-nos com textos de temas variados, alguns mais aproximados entre si pela relação que se pode identificar entre as personagens, mas todos encerram modos também variados de narrar, cuja rapidez e concisão são dois traços marcantes. Essas narrativas repentinamente começam e repentinamente terminam, deixando no leitor um gosto de quero mais.
São contos de um escritor que deseja mais do que contar estórias, pois inventa suas narrativas dialogando com elementos da tradição oral e da narrativa moderna. Comentei acima que, na maioria, os contos se concentram em acontecimentos, mas Corina
é uma narrativa que cede lugar ao pensamento feminino. A personagem mantém uma conversa imaginária com o falecido marido Mindinho
, cujo velório foi narrado no conto anterior. Não há uma maneira fixa de narrar. Parece-me que a forma busca o conteúdo e vice-versa. A narrativa Otília
é sobre uma jovem que passou pela vida sem ter vivido. O narrador vai contando sobre coisas e pessoas da vida de Otília sem se deter em quase nada e logo chega ao término de seus dias. Há também aquele narrador mais próximo da tradição oral, que herdou a estória de um ascendente
. É o caso do conto alegórico Fabius
:
sou descendente de um que escapou da tragédia. Um que, avisado por Deus, saiu às pressas sem olhar para trás. E assim me contaram essa história que eu mesmo insisti em esquecer, não gosto de me meter em questão dos outros, ainda mais se o coisa-ruim está no meio. Meu testemunho não goza de proteção. Mas, já que me perguntam, vou contar o que me foi passado. E adianto que não sou de inventar, nem aumentar um nadinha que seja. O que há de comum e estranho, de feio e bonito, de bom e ruim, de certo e errado, já vem de muito tempo, mesmo antes de eu ser gente (página 83).
De acordo com o narrador, Fabius é o diabo. Espécie de metáfora do capitalismo selvagem, pois, como