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Histórias Fantásticas do Nosso Interior
Histórias Fantásticas do Nosso Interior
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Histórias Fantásticas do Nosso Interior

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Histórias Fantásticas do Nosso Interior é um livro de contos de medo e assombração que reúne histórias de personagens fantásticos do interior fluminense, e Fabiano Costa desloca lendas e mitos do folclore nacional para esta região como uma forma de recriação literária, pois o mito e a lenda são criações orais que sobrevivem a partir de seus constantes recontos.Além das releituras, o autor toma a liberdade de criar personagens e histórias a fim de manter viva a tradição de contação de causos. Indicado a todas as idades e para quem gosta de uma leitura divertida.
LanguagePortuguês
PublisherEstronho
Release dateMar 16, 2022
ISBN9786581004095
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    Histórias Fantásticas do Nosso Interior - Fabiano Costa

    PREFÁCIO

    V

    iajar é pegar a estrada rumo a caminhos desconhecidos e misteriosos que satisfaçam nossa curiosidade sobre o que existe além das cercas que separam nossos quintais. É também abandonar a tranquilidade e a segurança de um chão onde sabemos pisar. Quando enveredamos a destinos cujas estradas não são conhecidas de antemão, a viagem cresce em expectativa em relação ao que nos aguarda no final da jornada.

    Mas o bom caminhante sabe que o mais importante é o caminhar. Para que o trajeto ao seu final faça sentido.

    Pelas estradas deste imenso interior existem atalhos, rotas alternativas escondidas, vilarejos ignorados pelo próprio tempo, matas fechadas, casebres, fazendas, praias desertas e pessoas misteriosas em seus modos e formas de pensar e viver.

    Este livro fala de viagens e caminhos, de estradas e interiores. E dos horrores ocultos em cada lugar.

    Você, leitor, certamente já se embrenhou por lugares desconhecidos e escondidos, cuja localização ou história, ainda que você não saiba, resguardam certas passagens e acontecimentos que apenas a memória de poucos de seus moradores é capaz de lembrar.

    E lembrar estas histórias, recontá-las, é uma maneira de pôr para fora todo o pesadelo interior e dividir o medo a aflorar toda vez que o sobrenatural é requisitado a visitar nosso mundo a partir destas narrativas. Para que você sinta o quanto ainda há de misterioso e fantástico neste mundo. Para sabermos se ainda existem caminhos que nos conduzem a destinos além de nossa vã imaginação pode suportar e permitir.

    Por essas estradas do desconhecido e nestas viagens rumo ao inesperado encontramos muitos contadores de causos, muitos narradores de histórias extraordinárias e viajantes com bagagens recheadas do que há de mais assustador e apavorante que já cruzaram seus caminhos.

    Meu convite é para você, leitor: saia do conforto da realidade e se embrenhe pelas trilhas do que há de mais fantástico e inexplorado pelo interior jamais concebido. Pegue a estrada do que a sua imaginação pode fazer e leve como bagagem seus medos e terrores escondidos. Penetre no coração de lugares e regiões onde só você pode chegar, em sua busca pelo que há no fim desta caminhada. Sente-se, à noite alta, à beira de fogueiras acesas pelos anfitriões destas estradas e lugares e escute as histórias inacreditáveis brotarem de seus lábios apavorados, sobre seres monstruosos e criaturas que não pertencem a este mundo; sobre as assombrações habitantes das estradas e campinas, maldições esquecidas e pactos demoníacos, espíritos que retornam e desaparecimentos sem explicações.

    Aceite este meu convite e faça uma viagem por este interior desconhecido e surpreendente; desbrave as histórias que se escondem nos lugares por onde você passar, a cada página virada. Pegue os caminhos imaginários entre a ficção e a realidade e torne-se o viajante das estradas mais apavorantes que você puder conceber.

    Um Rio de Janeiro que revela nossos medos mais ancestrais, forjados em nossa infância histórica e cultural, nas senzalas e fazendas; nas ocas, malocas e taperas; vilas e povoados. Nossos horrores primordiais na fala e na memória dos lugares distantes, de um tempo onde as estradas eram mais escuras e o breu da noite semeava a imaginação dos viventes, fazendo brotar histórias capazes de alimentar terrores inimagináveis.

    Viaje pelo interior deste Rio de Janeiro fantástico: suba até a Região Serrana e descubra seus espectros e demônios; vá até o Médio Paraíba e Região dos Lagos e torne-se testemunha de almas famintas, monstros fabulosos e seres sanguinários que vivem ali; chegue até as regiões Norte e Noroeste e ouça sobre as assombrações, fantasmas e visagens que rondam por lá.

    Viaje e, ao final, retorne em segurança para seu lugar de origem, sua terra, sua casa, seu travesseiro, sua realidade. E não se esqueça de levar em sua bagagem aquela lembrancinha para seus parentes e amigos: as histórias assustadoras que você conheceu.

    Deixo a vocês a decisão de acreditar ou não naquilo que vai ler a partir de agora.

    Então, vamos lá! Vamos iniciar a viagem rumo a este interior de medos e pavores escondidos?

    Fabiano Costa

    A MATA DA DONZELA

    H

    á algo dentro daquela mata. É um algo que não se vê, sem forma, sem rosto, sem definição, mas que está lá, eu sei. Sim, existe algo que nos observa calado, silencioso... e nos chama ao seu interior. É convidativo, de amistosa aparência e sem nenhuma intenção. E talvez seja exatamente esta falta de intenções, este inocente convidar o que mais me deixa assustado. E me assusta porque me faz sentir desarmado, menos atento. Afinal, o que há de tão terrível em uma floresta tão silenciosa e convidativa? Pode não haver nada lá. Mas eu muito duvido e acho mais provável é que: o que quer que lá esteja deseja que pensemos assim: Não há nada lá e tudo não passa de um medo sem propósito. De qualquer maneira, nunca entrei nesta mata. Apenas a observo, de longe. E sei que em suas entranhas existem olhos a me estudar; sussurros a me seduzir, esperando que eu nela entre.

    É um matão denso, fechado, por vezes aparenta certa escuridão mesmo em sol a pino. De árvores altas e folhagem espessa. Uma mata bem comum, com os cheiros e cores de qualquer outra. De tanto observar, acabei por conhecer os seus odores, seja em que época for: Um cheiro agradável e doce nas manhãs de primavera, de aroma frugal e variado no sopro outonal, sem nenhuma perspectiva olfativa no inverno e estranhamente de desagradáveis odores nos verões. Conheço-a; obriguei-me a conhecê-la, a senti-la, a entendê-la. Pensei que, se assim fosse, saberia o espectro que se esconde sob suas amplas folhagens, o que se oculta dos olhos de todos.

    Sempre tive esta impressão. Desde garoto, quando visitava com meus pais os meus avós em Valença, na localidade conhecida como Barrinha, próximo a uma antiga região de cafezais abandonados e opulentas fazendas de uma memória ignorada. A única lembrança deste passado da região é um quilombo ainda ativo, que recebe muitos turistas interessados nas histórias locais. A casa situava-se bem próxima deste quilombo, quase dentro da mata. Visitá-los era ouvir relatos apavorantes daquela localidade que, desde que eles se conheciam como gente, costumava fazer desaparecer as pessoas que teimavam em entrar nela para caçar ou passar uns dias. Não se sabe o porquê de as coisas ocorrerem em seu interior, mas os índios, e depois os escravos fundadores de quilombos na região, aprenderam a evitá-la ou pelo menos aprenderam a conviver com seus estranhos acontecimentos.

    Meu avô nasceu e cresceu ali, e seus pais chegaram a trabalhar em uma das fazendas mais conhecidas da região: a Fazenda de Santana de Barrinha. Uma das muitas histórias contadas pelos quilombolas, nas noites frias em rodas de fogueira, diz respeito a esta fazenda e a mata sinistra que a rodeia. Foi esta história que a tornou conhecida por viajantes, moradores e viventes dali como A mata da donzela.

    Conta-se que uma menina muito alva, cachos dourados, e curiosa, sempre ouvia dos pais, senhores da fazenda, que nunca entrasse no interior daquela mata, que por infeliz coincidência circundava a propriedade, quase abraçando-a em sua extensão a leste e parte do Sudeste e Nordeste. A ainda criança que nela existia e persistia, nunca se intimidava, e fazia crescer em si a vontade de chegar mais próxima, mais próxima, mais próxima... Era apenas uma vontade de menina curiosa. Enquanto bordava, ouvia algumas histórias contadas pelas amas e vaqueiros. Não via nada de diferente ou que lhe causasse o medo propalado. Era atraente em seu colorido primaveril e o perfume das ervas e flores chegavam até seus aposentos nas manhãs ensolaradas. Um dia, quem sabe, buscaria as rosas misteriosas que não via, mas sentia o odor que a deixava sorridente e feliz.

    Certo dia, passeando com sua mucama, ela notou um murmurinho entre os trabalhadores. Eles estavam mais inquietos do que o normal e pareciam relutantes em sair para trabalhar. Não demorou muito e o capataz chegou para dar um fim àquela agitação toda. A menina não quis voltar para o casarão e observou o desenrolar da conversa, a certa distância. Diziam os trabalhadores que mais um incauto havia desaparecido dentro da mata. O pobre coitado era João Simão, boiadeiro de confiança do patrão, foi atrás de uma rês desgarrada no entardecer, quando o gado retornava do pasto para o cercado. Por algum motivo, aquela rês saiu da manada e disparou mata adentro. João Simão deixou o gado com os meninos, pois já estavam bem próximos, e decidiu ele sozinho entrar naquela escuridão verde. Entrou e não mais saiu.

    À noite, no silêncio dos casebres, diziam os homens escutar gritos do fundão da mata, assim, bem distante. Eram gritos de gente apavorada e pareciam ser de João Simão. E como podia ser João Simão? Logo ele, um homão grande e forte, acostumado à caça, à dureza do trabalho e aos perigos, gritar com tanto pavor assim? Os gritos que seriam de João Simão não deixaram ninguém dormir naquela noite e causaram tanto medo que não houve alma entre os vivos a bater os cafezais quando o sol se pôs de pé.

    Não era a primeira vez que desaparecia gente da fazenda. Nem daquela nem das outras na região. Todos sabiam o que acontecia, mas era melhor não dizer nada para evitar disseminar as já fortes superstições populares; diziam que desde a época da escravidão sumia gente.

    A mata engolia e não regurgitava.

    Mas talvez fosse apenas isso: se perdiam. Ou eram devorados por uma onça, daí porque não voltassem. Mas para os senhores, os escravos fugiam e só. A própria existência de um quilombo na localidade acabou dando força a esta versão. E como as expedições e patrulhas também se recusassem a entrar nos domínios daquele pesadelo verde, as explicações sobre o que acontecia em seu interior nunca tiveram comprovação. O que havia eram muitas versões e mentiras

    O fato é que os cafezais, com o tempo, foram se afastando das proximidades da mata. Passaram a uma distância que não seduziam as fugas ou ao que quer que fosse que os fizesse entrar no matão.

    A menina ouviu tudo e não sentiu medo, mas uma curiosidade ainda maior. De longe, olhou para a copa alta e sombria, viu as galhas balançarem com um vento silencioso. Um bando de pássaros revoava a fazenda e parecia evitar o trajeto natural rumo ao abrigo nos cipoais e folhagens generosas.

    Os trabalhadores dos cafezais estavam muito relutantes e os demais demoraram a dar início ao dia. Trabalharam sem a devida tranquilidade e concentração. Não fizeram piadas e nem riram. O medo que sentiam quando uma coisa destas acontecia era muito grande, e com alguém que conheciam tornava-o muito maior. A mata estava ali, a lembrar-lhes sempre que ela aguardava pacientemente o próximo a cair em suas armadilhas.

    A pequena tinha um lindo cavalo todo branquinho, que lhe tinha sido dado de presente por seu pai assim que fizera treze anos e, embora ainda não o montasse, passeava com ele, levando-o pelas rédeas, sem sela. Vez em quando, parava, acariciava-o, passava suas mãos pequenas e delicadas pelo dorso sedoso do animal, encostava sua cabeça em seu pescoço e lhe dizia coisas bonitas perto do ouvido. Por vezes, o cavalinho branco parecia entendê-la e balançava a cabeça para cima e para baixo, ou então para um lado e para o outro, sempre bem devagar. A garotinha ria e ria... Aquele cavalo era sua paixão e, por ele, ela seria capaz de dar sua frágil e florescente vida. Ninguém encostava a mão no animal. Seu tratador era orientado a nunca usar de qualquer instrumento cruel ou violento para domar ou amansar o bicho. E aquele cavalo dera trabalho. Veio novinho de outra fazenda e, uma vez sem a mãe e em um lugar estranho, tornara-se arredio. A menina apaixonou-se pela sua alvura e postura indomável. Mas ele, por ela, também se apegou e somente com ela se apresentava dócil e delicado.

    Passados dois meses, ninguém mais falava sobre o sumiço de João Simão ou o que quer que tivesse acontecido a ele. O não falar era uma forma de se evitar demonstrações de medo, este sim, sempre latente, esperando uma oportunidade para apoderar-se dos homens. Arava-se a terra, plantava-se, colhia-se, ordenhava-se, trabalhavam, enfim, fazendo os dias passarem mais rápido para que o tempo tratasse de apagar para sempre as lembranças do fato sinistro.

    O sol daquela manhã veio molhado. Uma chuva caía e disputava a primazia do céu com o astro-rei, criando uma paisagem de conto de fadas. Aos poucos, a chuva breve deu lugar a uma luminosidade crescente, própria da primavera, dando um colorido todo especial à flora da região. A pequena aproveitou a pausa da natureza em seus intuitos de molhar a terra e resolveu passear com seu belo cavalinho branco. Então foi até o estábulo e pediu ao tratador que fosse buscar sua preciosidade. E ao brincar com ele, naquela tarde, sua alegria foi uma coisa bonita de se ver; queria mostrar a ele os efeitos da luminosidade quando esta encontrava-se com os pingos de chuva; as plantas, regadas por Deus, e a felicidade com que recebiam o sol; a terra molhada e seu cheiro bem diferente e gostoso. Tudo isso ela ia mostrando ao seu amigo e sabia que ele sempre prestava muita atenção ao que ela lhe falava com tanto carinho.

    O cavalinho branco, que sempre lhe fora atencioso, naquela manhã parecia bem diferente: estacava, recusava-se a andar, relinchava mais forte, resistia aos seus afagos. Tratou de dar-lhe mais atenção, parar e conversar com uma fala mais macia para ver se isto o acalmava. Mas, para sua surpresa,quando largou as rédeas, o bicho deu uma meia-volta e disparou pela estrada. Surpreendida pela atitude, primeiro ela ficou parada, só olhando, para logo empreender carreira atrás de seu querido bichinho, chamando-o, chamando-o... O cavalo corria como nunca ninguém o havia visto correr antes. A menina tentava não o perder de vista e, por isso, esforçava-se com suas frágeis pernas, levantando as várias barras de sua vestimenta, sem sucesso algum. Por fim, paralisou. Seu cavalinho querido disparara em direção à mata apavorante. E na sua impotência em impedir que a mata o tragasse, ela gritou. Ao longe, os homens a ouviram e correram para ver o que tinha acontecido, e como era distante o lugar onde estavam,eles só chegaram ao exato instante em que a jovem, desesperada, já sem o tino da razão, correu para dentro da mata,sem se importar com nada do que falavam sobre o lugar, esquecendo que foi aquela mesma mata que engoliu para sempre João Simão, mulato forte e sem medo.

    Avisado pelos trabalhadores, o patrão, agora destemido pai para entrar nos domínios escuros da floresta, reuniu quase todos os homens, deixando apenas alguns para o caso da sua menina retornar. E os homens, a despeito de estarem com um medo incomensurável, sentiram, pela primeira vez, um ódio alimentar a vontade de vencer aquela coisa que os desafiava, levando tão inocente criança. Aquela mata assombrada não iria vencê-los. Não daquela vez.

    O tempo era algo precioso e quanto mais se demorasse, mais escuro ficaria e menor seria a coragem dos homens. Pelo que se sabia, ninguém ali nunca havia desafiado a floresta. É certo que sempre tinha algum desavisado, de outros lugares, viajantes ou aventureiros que não acreditavam em nada disso e se embrenhavam com promessa de voltar com caça, sorrindo e coisa e tal. E cada vez que isso acontecia e os desventurados nunca mais eram vistos, só aumentava a falácia sobre o lugar. Ali sumia gente e bicho e os bichos que o povo ouvia ciciar, piar, grunhir, cantar, rosnar, estrilar, zumbizar, cavalgar, andar ou se arrastar do lado de dentro, ninguém nunca tinha visto ou sabido dizer como eram. Pela boca daquela gente, a mata era encantada e os que ali viviam e espreitavam não eram coisas deste mundo. O que rastejava e vivia ali vinha direto do inferno.

    Ninguém sabia ao certo a extensão daquele lugar. Observando de fora, não parecia ser impossível de cobrir. Era certo que avançava os morros e sumia para além do avistável. Mas quem vinha de fora, e também ficava admirado com a beleza verde da região, dizia ela não se estender  por grandes distâncias, de modo a ficar decidido então que podiam sim dar cabo da tarefa naquele dia mesmo antes do anoitecer. Caso não dessem conta da missão de achar a menina, acenderiam tochas e continuariam noite adentro a caminhar até encontrá-la. Ninguém voltaria dali sem a filha do patrão. Nem mesmo ele.

    E esta história só pôde ser contada do jeito que está sendo até agora porque foi meu bisavô um dos homens que ficaram na fazenda. E foi ele quem manteve esta história viva para que ninguém mais se esquecesse das coisas misteriosas que cercam nosso mundo e que não compreendemos. Ele contou para o meu avô que a contou para o meu pai, que a reproduziu para mim com olhos plenos de horror e voz baixa de quem não deseja ser ouvido, mas precisa falar. Narrada como se ele próprio estivesse lá, vivenciando todo o pavor da gente da época e do lugar.

    E o que meu bisavô guardou em suas memórias foi avistar todos aqueles homens desafiarem seus medos e horrores e entrarem por volta de onze da manhã, bem armados com espingardas, facões, foices e todo o tipo de material e ferramenta que consideraram imprescindível para vencerem o matão assustador. Entraram juntos, em formação horizontal de dez homens espaçados a cada cinco metros. Eram cerca de uns cinquenta a sessenta, pois veio gente de fazendas vizinhas querendo ajudar. O povo já estava cansado de tudo aquilo e talvez aquela fosse uma forma de dizer que ela não poderia com todos, homens com receios, mas agora também com um propósito acima de seus medos; acima inclusive da missão de achar a jovem perdida: dizer a si mesmos ser tudo era uma grande bobagem de falastrões, de covardes, de gente mentirosa, pois,na verdade, ninguém sumia, mas fugia por algum outro lado sem ser visto e que a mata apenas era um expiatório do medaréu da gente mais humilde e sem crença firme no Todo Poderoso. Venceriam a mata, seus demônios, o desconhecido habitante daquelas paragens obscuras. Era este o momento e não tinha como ser diferente. Era este o sentimento daqueles homens: mais fé e coragem do que medo, mais certeza de tudo ser resolvido acima de dúvidas. Um ânimo nunca visto por ali. Um ânimo nunca mais repetido.

    Assim que o tropel escorregou pela garganta esmeraldina uma tempestade desabou pela região. Varreu os morros, os pastos e os campos; transformou todos os caminhos em um lamaçal daqueles em que as carroças atolam. Durou quase o dia e a noite toda, e mais um dia, diminuindo, sem pressa, e parando somente no outro entardecer. Durante a tempestade, para aqueles que permaneceram na fazenda acompanhar o que acontecia no interior da mata sombria com exatidão não era uma tarefa muito fácil. O trovejar do céu e o farfalhar das árvores, o quebrar de galhos e mesmo o barulho do choque do aguaceiro com o solo, as corredeiras e cachoeiras que se formavam, enchendo o ambiente de novas referências dificultavam a percepção dos homens sobre os sons que aparentemente eram emitidos pela empreitada. E o que eles ouviam, torciam para ser apenas suas avaliações dos acontecimentos prejudicadas devido ao temporal e não sons de homens a correr e a gritar desesperados por algo que os perseguia ou porque fugiam de alguma coisa que nem sessenta homens muito corajosos e juntos poderiam enfrentar. E quanto mais os que estavam fora imaginavam isso, mais ainda se sentiam impotentes sobre o matagal perverso e cada vez mais inexplicável quanto à sua natureza que, desconfiavam, só podia ser o jardim do Diabo e seus filhotes malignos. Enquanto durou o temporal, ouviram-se gritos vindos do interior da mata e à medida que a chuva parava e tornava-se uma suave brisa, os gritos ficavam também mais raros, até a chuva e os gritos cessarem por completo.

    Já fazia quase três dias que haviam entrado na mata para buscar a pequenina e nem eles nem ela saíram de lá. Quem estava fora não queria opinar em nada, apesar de toda a preocupação sobre o que haveria de ter acontecido. E como o assunto era demais comentado não só ali nas fazendas, mas também no vilarejo, nas mercearias e botecos, os viajantes acabavam ouvindo e fazendo comentários sobre o que viram ou ouviram pelos caminhos que davam naquele lugar, ao passar pela tão propalada mata sinistra.

    E vez e outra, lembram do único ser vivente que conseguiu entrar e sair com vida da floresta maligna para contar a sua história: o velho caixeiro Messir Abdul. E o que ocorreu com o viajante de misteriosa sorte foi pouco depois dos homens desaparecerem.

    Libanês alto, de inconfundível nariz aquilino, mãos enormes e voz potente; muito dado a caminhar pelo interior com sua inseparável mulinha de carga, levando produtos das antigas Companhia das Índias Ocidentais, como lençóis e lenços de seda, perfumes, cigarros e cigarrilhas finas e de aromas suaves, dentre diversas quinquilharias e objetos de desejo da vaidade humana. Foi de Messir Abdul o único relato confiável sobre as coisas que acontecem no interior da mata diabólica. Relato este jamais desprezado.

    Conta o velho libanês que vindo de Vila Apodi, descendo a serra de estrada pedregosa rumo ao interior de Quatis, quando foi pego de surpresa por uma forte tempestade que se armou muito rápido, fechando um céu que era só azul e brilho (Nesta região o clima muda muito rapidamente em certas épocas). No momento em que se deu a tempestade e ele foi pego na parte da tarde no meio do caminho, não pensou um só instante em entrar na mata para se proteger do aguaceiro. É verdade que ele ainda não a conhecia tão bem quanto passou a conhecer depois. Decidiu ir para o lado contrário da mata escura. Não sabia se havia animais peçonhentos e perigosos ali escondidos. Foi para um local mais descampado, aberto, e armou uma pequena tenda que sempre carregava consigo, próximo da estrada, e suportou a água que caía, tentando proteger bem as mercadorias valiosas e sua mulinha companheira de labuta. Messir Abdul, que não era homem de ficar inventando coisa (Ser um homem mentiroso não era bom para os negócios, dizia ele), falou que a certa hora escutou gemidos e urros vindos do outro lado da estrada, onde a mata estendia seus domínios e que, no avançar da noite, observou um luzir movimentando-se em sentidos diferentes, mas muito distantes para ele definir o que quer que fosse. Luzes que acendiam e apagavam, que iam em direção à estrada e depois retornavam para o interior, luzes não muito fortes, mas o suficiente para serem vistas de longe. Sua mulinha lutava para se soltar de tão assustada. Zurrava e escoiceava tanto que nem o velho libanês conseguia chegar perto para acalmá-la. Um desses clarões tomou forma de um vulto branco, de formas femininas, que se postou à certa distância, como se observasse Abdul. Em seguida, um lamento,

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