Novo divórcio brasileiro: teoria e prática
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Novo divórcio brasileiro - Inacio de Carvalho Neto
Inacio de
Carvalho Neto
Novo
divórcio
brasileiro
Teoria e prática
© Copyright 2022, Editora Bonijuris Ltda.
Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora e do autor.
Edição e revisão
Luiz Fernando de Queiroz
Olga Maria Krieger
Revisão
Andressa Harpis
Produção gráfica
Jéssica Regina Petersen
Capa
Danilo Oliveira
Projeto gráfico e diagramação
Julio Cesar Baptista
Livro digital
Lucas Camargo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Carvalho Neto, Inacio de
Novo divórcio brasileiro [livro eletrônico] : teoria e prática / Inacio de Carvalho Neto. -- 15. ed. -- Curitiba, PR : Editora Bonijuris, 2022.
ePub.
ISBN 978-65-87766-19-5
1. Casamento 2. Direito civil - Brasil. 3. Divórcio 4. Divórcio - Brasil I. Título.
Índices para catálogo sistemático:
1. Brasil : Divórcio : Direito civil 347.627.2(81)
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
EDITORA BONIJURIS LTDA.
Editor-chefe: Luiz Fernando de Queiroz
Rua Marechal Deodoro, 344, 3º andar, Centro
80010-010 – Curitiba, PR, Brasil
Tel.: (41) 3323-4020 | 0800 645-4020
sac@bonijuris.com.br
www.editorabonijuris.com.br
Aos meus filhos Camylla, Rodrigo e Beatriz,
com muito amor.
Prefácio
Esta obra de Inacio de Carvalho Neto, acerca de relevantes tópicos do direito de família, sem dúvida está enriquecendo, e muito, a nossa doutrina.
A preocupação com a didática não afetou a essência e a profundidade da análise dos diversos temas. Assim, por exemplo, a exposição feita no capítulo 10, sobre alimentos, merece particular destaque até mesmo em face do método empregado. Por outro lado, a parte prática (capítulo 14), que em muitas obras é feita sem muito critério, aqui, complementando a minudente abordagem teórica, foi realizada de maneira sistemática, evidenciando a sua grande e imediata utilidade.
O autor, integrante do combativo Ministério Público do Estado do Paraná, demonstra com excelente livro que, no cotidiano, a boa prática não prescinde da melhor doutrina.
Félix Fischer
Ministro do Superior Tribunal de Justiça
Nota à 15ª edição
Esta 15ª edição do Novo Divórcio Brasileiro é a primeira publicada pela Editora Bonijuris. Desde já, agradecemos à valorosa equipe desta nobre casa editorial pela acolhida ao nosso trabalho.
Vem ela atualizada com nova legislação, bem como a jurisprudência mais recente sobre o tema, que vem se formando e se tornando clara a partir das grandes alterações no tema produzidas pela singela Emenda Constitucional 66/10.
Ademais, cuidamos também do projeto de nova Lei do Divórcio, proposto na Câmara pelo deputado Hidekazu Takayama (PSC/PR), o qual foi elaborado a pedido dele pelo autor desta obra, pretendendo regulamentar o novo divórcio brasileiro, introduzido pela Emenda Constitucional 66/10, já amplamente examinada nas edições anteriores, mas que teve sua versão atualizada pelo Projeto 9.041/2017. Também o Projeto 3.457/2019, do senador Rodrigo Pacheco, que pretende introduzir o divórcio impositivo
em nosso ordenamento jurídico, é analisado pela primeira vez neste espaço.
Esta nova edição, portanto, pretende comentar à exaustão essas novidades legislativas, assim como o faz em relação às demais leis que direta ou indiretamente tratam do tema, como a Lei da Palmada, a Lei de Alienação Parental, a Lei de Alimentos Gravídicos, a Lei da Guarda Compartilhada e a lei que concedeu direito de visita aos avós, entre tantas outras.
Esperamos, assim, que esta 15ª edição contribua também para o engrandecimento do debate, na mesma medida em que agradecemos ao público pelo significativo acolhimento desta obra, revelado pelo rápido esgotamento de todas as edições anteriores.
O autor
Apresentação
O presente trabalho está, desde a 12ª edição, disposto em 14 capítulos, divididos em itens e subitens, estrutura esta que foi modificada em relação à inicialmente proposta em razão das alterações promovidas pela Emenda Constitucional 66/10.
No primeiro capítulo introduzimos o assunto, fazendo análise de algumas legislações alienígenas, seguido de um breve histórico do instituto no capítulo dois.
Passamos, em seguida, a uma introdução do divórcio no capítulo três, trazendo normas gerais sobre a matéria, para, em seguida, falar do divórcio por conversão, no capítulo quatro, e do divórcio direto, no capítulo cinco.
Tratamos, na sequência, da separação de corpos (capítulo seis) e da reconciliação (capítulo sete), instituto este que, como defendemos, aplicar-se-á exclusivamente às pessoas ainda separadas judicialmente. É uma questão transitória, portanto.
Estudamos, em seguida, a proteção dos filhos (capítulo oito), o nome dos cônjuges (capítulo nove), os alimentos (capítulo dez), a partilha de bens comuns (capítulo onze), algumas questões processuais (capítulo doze) e, por último, a sentença estrangeira de divórcio (capítulo treze).
A última parte introduz a prática do divórcio, com alguns exemplos de petições iniciais (capítulo catorze).
Com o intuito de oferecermos ao público uma obra o quanto possível completa (sem olvidar da prudente lição de Montesquieu, que diz ser preciso sempre não esgotar o assunto a ponto de nada deixar a cargo do leitor
), sacrificamos um pouco a tão almejada brevidade, pelo que desde já nos penitenciamos pelas constantes e por vezes longas citações, que foram propositais, no intuito de apresentar ao leitor opiniões de autores cuja autoridade exige a exposição fiel de seus pensamentos.
As opiniões doutrinárias ou jurisprudenciais contrárias às nossas foram também transcritas, não só por respeito à autoridade de seus prolatores, como principalmente por entendermos que em direito não existem verdades absolutas.
Por outro lado, as citações foram feitas quase sempre em notas de rodapé, possibilitando assim àqueles que não desejarem informações minuciosas, contentando-se com a opinião do autor, deixar de lê-las, servindo-se apenas do texto principal.
A análise da legislação comparada, que, embora indispensável em uma obra que pretende ter o mínimo de cunho científico, é geralmente enfadonha ao leitor, foi feita com a possível brevidade.
Por último, as críticas porventura desferidas na obra a posições doutrinárias e jurisprudenciais não tiveram a intenção de tirar o mérito de seus prolatores, cuja autoridade respeitamos. Se excedemos em algum ponto, foi por amor ao tema exposto, que realça a nossa paixão pelo direito de família.
Concluímos dizendo que a obra é fruto de 16 contínuos meses de trabalho árduo e dedicação quase que exclusiva (ao menos o lazer, nesse tempo, foi totalmente relegado), afora o tempo anterior de estudo e pesquisa, e afora também o tempo dedicado à atualização de cada nova edição. Temos, portanto, a consciência de termos feito o melhor que poderíamos.
O autor
Sumário
Prefácio
Nota à 15ª edição
Apresentação
Capítulo 1 – INTRODUÇÃO
1.1. Casamento
1.1.1 Origem
1.1.2 Natureza jurídica
1.1.3 Definição
1.1.4 Histórico do casamento no Brasil
1.1.6 Elementos do casamento
1.1.7 Casamento por conversão
1.2. A dissolução do matrimônio
1.3. A dissolução do casamento no direito comparado
1.3.1 Direito argentino
1.3.2 Direito português
1.3.3 Direito alemão
1.3.4 Direito francês
1.3.5 Direito italiano
1.3.6 Direito espanhol
1.3.7 Direito canônico
Capítulo 2 – BREVE HISTÓRICO
2.1. Direito pré-codificado
2.2. A dissolução da sociedade conjugal no Código Civil de 1916
2.3. A dissolução no direito constitucional
2.4. A Emenda 9/77
2.5. A Lei 6.515/77
2.6. A Constituição de 1988
2.7. As modificações posteriores à Constituição de 1988
2.8. O Código Civil de 2002 e a legislação posterior
2.9. O projeto de nova lei do divórcio
Capítulo 3 – DIVÓRCIO
3.1. O sistema duplo: separação judicial – Divórcio
3.2. Questão terminológica
3.3. Matrimônio religioso
3.4. Espécies
Capítulo 4 – CONVERSÃO DA SEPARAÇÃO EM DIVÓRCIO
4.1. Generalidades
4.2. O prazo para a conversão e sua forma de contagem
4.3. Conversão litigiosa
4.3.1 Competência
4.3.2 Procedimento
4.3.3 Sentença
4.3.4 Descumprimento das obrigações assumidas na separação
4.4. Conversão consensual
4.5. Falta da partilha de bens
Capítulo 5 – DIVÓRCIO DIRETO
5.1. Introdução
5.2. Prazo de separação de fato
5.3. Divórcio direto consensual
5.3.1 Requisitos
5.3.2 Competência
5.3.3 Procedimento
5.3.4 Assinatura dos cônjuges e dos advogados
5.3.5 Reconhecimento de firmas
5.3.6 Audiência
5.3.7 Irretratabilidade do acordo
5.3.8 Férias forenses
5.3.9 Procedimento extrajudicial
5.3.10 Sentença
5.3.11 Coisa julgada
5.4. Divórcio direto litigioso não culposo
5.4.1 Litígio mitigado
5.4.2 Procedimento
5.4.3 Competência
5.4.4 Objeto de prova
5.5. Divórcio direto litigioso culposo
5.5.1 Causas legais
5.5.2 Insuficiência da insuportabilidade
5.5.3 Causas peremptórias e causas facultativas
5.5.4 Competência
5.5.5 Deveres do casamento e sua violação
5.5.6 Fidelidade recíproca
5.5.7 Vida em comum no domicílio conjugal
5.5.8 Mútua assistência
5.5.9 Sustento, guarda e educação dos filhos
5.5.10 Respeito e consideração mútuos
5.5.11 Extinção dos deveres
5.5.12 Conduta desonrosa
5.5.13 Insuportabilidade da vida em comum
5.5.14 O perdão e a insuportabilidade
5.5.15 Culpa recíproca
5.5.16 Conexão e reconvenção
5.5.17 Abuso do direito de ação
5.5.18 Culpa decorrente
5.5.19 Imputação e causa de pedir
5.5.20 Relação entre a anulabilidade do casamento e o divórcio culposo
5.5.21 Procedimento
5.5.22 Sentença
5.6. Questões comuns ao divórcio consensual e litigioso
5.6.1 Conversão do processo
5.6.2 Divórcio direto a cônjuges separados judicialmente
5.6.3 Inaplicações
5.6.4 Partilha
5.6.5 Descumprimento de obrigações
Capítulo 6 – SEPARAÇÃO DE CORPOS
6.1. Generalidades
6.2. Hipóteses de cabimento
6.3. Competência
6.4. Procedimento
6.4.1 Procedimento cautelar
6.4.2 Caducidade da medida
6.4.3 Prova
6.4.4 Férias forenses
6.4.5 Recurso
6.5. Efeitos
6.5.1 Fim da coabitação
6.5.2 Fim ao dever de fidelidade
6.5.3 Termo a quo para a produção dos efeitos da separação
Capítulo 7 – RECONCILIAÇÃO
7.1. Generalidades
7.2. Competência
7.3. Procedimento
7.4. Reconciliação extrajudicial
7.5. Reconciliação de fato
7.6. Divórcio e reconciliação
7.7. Efeitos
7.7.1 Retorno à situação anterior
7.7.2 Situação dos bens
7.7.3 Perda da eficácia da separação judicial
Capítulo 8 – A PROTEÇÃO DA PESSOA DOS FILHOS
8.1. Introdução
8.2. Guarda
8.2.1 Disposições gerais
8.2.2 Espécies de guarda
8.2.3 Guarda compartilhada
8.2.4 Guarda na dissolução consensual
8.3. O direito de visitas e de ter os filhos em companhia
8.4. O direito de fiscalização
8.5. Alienação parental
Capítulo 9 – O NOME DOS CÔNJUGES
9.1. Introdução
9.2. Normas gerais
9.3. O nome dos cônjuges na ação de conversão em divórcio
9.4. O nome dos cônjuges no divórcio direto
9.4.1 Introdução
9.4.2 Cônjuge culpado
9.4.3 Necessidade de requerimento
9.4.4 Exceções
9.4.5 Prejuízo para identificação
9.4.6 Distinção com o nome dos filhos
9.4.7 Dano grave
9.4.8 Questão processual
9.4.9 Culpa recíproca
9.4.10 Cônjuge inocente
Capítulo 10 – ALIMENTOS
10.1. Generalidades
10.2. A obrigação alimentar
10.3. Características
10.4. Pensão alimentícia ao cônjuge
10.4.1 Pensão alimentícia na conversão da separação em divórcio
10.4.2 Pensão alimentícia na ação direta de divórcio consensual
10.4.3 Pensão alimentícia na ação direta de divórcio litigioso
10.4.4 Fixação e extinção da obrigação
10.4.5 Renunciabilidade da pensão alimentícia entre cônjuges
10.4.6 Omissão do acordo
10.5. Pensão alimentícia aos filhos
10.5.1 Contribuição proporcional
10.5.2 Irrenunciabilidade
10.5.3 Extinção da obrigação
10.5.4 Extinção automática
10.5.5 Maior inválido
10.5.6 Alimentos gravídicos
10.6. Valor da pensão aos filhos e ao cônjuge
10.6.1 Possibilidade e necessidade
10.6.2 Critério prevalente
10.6.3 Preservação do statu quo
10.6.4 Revisão do valor
10.6.5 Novo casamento do devedor
10.7. Garantias para o recebimento da pensão
10.8. Alimentos provisórios e provisionais
10.9. Prisão do devedor de alimentos
10.10. A transmissibilidade da obrigação alimentar
Capítulo 11 – A PARTILHA DOS BENS
11.1. Noções sobre partilha
11.2. A separação de fato e a partilha
11.3. Partilha na conversão da separação em divórcio
11.4. Partilha na ação de divórcio direto
11.5. Bens a partilhar
11.6. Doação e promessa de doação
11.7. Aplicação da teoria da Disregard
Capítulo 12 – QUESTÕES PROCESSUAIS
12.1. Atribuições do juiz substituto
12.2. Valor da causa
12.3. O papel do Ministério Público nas ações de divórcio
12.3.1 O MP
12.3.2 Funções do agente ministerial
12.3.3 O promotor de justiça nos processos de divórcio
12.3.4 O recurso do MP nos processos de divórcio
12.3.5 O MP e a partilha
12.3.6 O MP e a exceção declinatória do foro
12.3.7 A homologação de acordo de alimentos pelo órgão do MP
12.4. Despesas processuais
12.4.1 Processos consensuais
12.4.2 Conversão litigiosa
12.4.3 Divórcio direto litigioso
12.5. A representação do cônjuge incapaz
12.6. Propositura do divórcio pendente separação culposa
12.7. Segredo de justiça
Capítulo 13 – A SENTENÇA ESTRANGEIRA DE DIVÓRCIO
13.1. Homologação de sentença estrangeira
13.2. O divórcio realizado fora do país
13.2.1 Direito anterior
13.2.2 Alteração pela Lei do Divórcio
13.2.3 Prazo para o requerimento de homologação
13.2.4 Produção dos efeitos
13.2.5 Imprescindibilidade da homologação
13.2.6 Reexame de decisões anteriores
13.2.7 Partilha
13.2.8 Objeto do processo de homologação
13.2.9 Falecimento do cônjuge
13.3. A separação judicial realizada fora do país e a Emenda 66/10
Capítulo 14 – PRÁTICA DO DIVÓRCIO
14.1. Introdução
14.2. Divórcio direto judicial
14.3. Divórcio direto extrajudicial
14.4. Divórcio por conversão judicial
14.5. Divórcio por conversão extrajudicial
14.6. Separação de corpos judicial
14.7. Separação de corpos extrajudicial
Referências
Sobre o autor
Capítulo 1
Introdução
1.1. Casamento
1.1.1 Origem
O primeiro casamento foi celebrado por Deus entre Adão e Eva[1], depois de constatar que não convinha que o homem estivesse só[2]. E realmente assim sempre foi; o homem sempre procurou uma companheira que estivesse "como diante dele". A primazia dada pelo Senhor ao matrimônio foi tanta[3] que Jesus realizou seu primeiro milagre (a transformação de água em vinho) em uma festa de casamento[4].
Por mais que, ao longo dos anos, o casamento esteja sendo bombardeado, tachado de instituição inútil e antiquada, de camisa de força
, é sabido que o ser humano tem sempre necessitado de alguém que lhe faça companhia. O fato de ser crescente o número de separações e divórcios não tem servido para desestimular as pessoas a se casarem (ou se unirem de outra forma).
É certo, porém, que a família[5] está em crise, posto que alguns o queiram negar. E a crise da família reflete diretamente na sociedade, já que aquela é a base estrutural desta[6]. Como nota J. Kerby Anderson, algumas das mudanças na configuração familiar podem ser atribuídas à mudança social e atitudes psicológicas, tal como materialismo e narcisismo[7].
Criado por Deus, o casamento sempre foi precipuamente um ato religioso. Só em tempos relativamente recentes desvencilhou-se ele da fé, para se tornar um ato laico. No Brasil, somente em 1889, com a instauração da república e separação de Estado e Igreja, criou-se o casamento civil[8].
1.1.2 Natureza jurídica
O casamento foi tido, por muito tempo, como um sacramento, ou seja, algo ligado à divindade[9]. Isso significa dizer que o casamento é instituído por Deus, devendo ser regulado apenas pela lei religiosa. Era a posição, na doutrina, de Borges Carneiro[10] e Coelho da Rocha[11], entre outros.
No século 18[12], o casamento já era concebido como mero contrato, cuja validade e eficácia decorriam exclusivamente da vontade das partes[13].
Essa doutrina influenciou o legislador francês de 1804 e tinha uma inegável consequência: se o casamento era um mero contrato, poderia se dissolver por um simples distrato; a dissolução do casamento, desta forma, ficava na dependência do mútuo consentimento. Era assim no direito romano[14]. E o código civil português também define o casamento como contrato no art. 1.577º:
Art. 1.577º. Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código.
Dessa convicção parece ainda ser Áurea Pimentel Pereira, quando afirma ser
indisputável, portanto, que o casamento é um contrato, e, como tal, é natural que possa ser desfeito, como rescindidos podem ser os contratos em geral, com base no princípio geral de que a inexecução, por um dos contraentes das obrigações assumidas no contrato, desobriga o outro contratante do cumprimento de suas próprias obrigações, dando motivo, uma vez caracterizada a inadimplência, à rescisão, que poderá ser requerida com espeque no art. 1.092, parágrafo único, do Código Civil e especificamente com respaldo nas expressas disposições contidas na Lei 6.515/77[15].
Rainer Czajkowski contesta a natureza contratual do casamento:
É precisamente nesta parte que o casamento também não é um contrato. Quando se casam, os cônjuges aderem e se submetem aos efeitos pessoais que a lei imperativamente outorga ao casamento; eles não contratam estes efeitos. A fidelidade, a assistência moral, as responsabilidades extrapatrimoniais em face dos filhos, por exemplo, não são disponíveis para as partes, nem poderiam ser[16].
Reagindo-se à doutrina contratual, apresentou-se o casamento como uma instituição, o que significa afirmar que ele constitui um conjunto de regras impostas pelo Estado, formando um todo e às quais as partes têm apenas a faculdade de aderir, teoria esta adotada por Henri de Page[17], entre outros. Também Kelsen:
A relação jurídica matrimonial, por exemplo, não é um complexo de relações sexuais e econômicas entre dois indivíduos de sexo diferente que, através do Direito, apenas recebem uma forma específica. Sem uma ordem jurídica não existe algo como um casamento. O casamento como relação é um instituto jurídico, o que quer dizer: um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos no sentido técnico específico, o que, por sua vez, significa: um complexo de normas jurídicas[18].
Entre nós, Washington de Barros Monteiro e Maria Helena Diniz ainda são deste pensar[19]. E Arnaldo Rizzardo argumenta:
É instituição porque elevado à categoria de um valor, ou de uma ordem constituída pelo Estado. É um ente que engloba uma organização e uma série de elementos que transcendem a singeleza de um simples contrato…
Não se estabelece tão-somente uma relação contratual, aderindo ambas as partes a uma série de obrigações, com os correspondentes direitos e adstritas ao mero cumprimento do pactuado. Há uma nova forma de vida. Optam os cônjuges a um estado de vida, a uma união da qual nascem os filhos, se desenvolve a prole e adquirem eles a um patrimônio…
O contrato basicamente é um ato jurídico bilateral, que cria direitos e deveres de ordem patrimonial. As partes dispõem sobre um negócio, ou um determinado assunto e obrigam-se a cumprir as estipulações pactuadas. O relacionamento resume-se às regras discriminadas, impondo-se o cumprimento das mesmas, sob pena de se tornar inadimplente.
O casamento, entretanto, não se resume a um rol de direitos e obrigações de cunho patrimonial ou econômico. Embora envolva esse teor em muitos aspectos, prevalecem os elevados interesses pessoais e morais que o impregnam. O fator determinante de sua celebração é a affectio maritalis, ou o amor que une os esposos. Sua função repousa também na elevada finalidade da procriação. Procura alcançar a identificação de duas existências, traz o conforto recíproco entre os cônjuges, a criação e educação dos filhos e leva a uma vida comum de todos os membros da família. Enfim, conduz a desenvolver os elevados sentimentos de afeto e pendores morais, dentro do espírito de comunidade, abnegação e doação mútua – qualidades estas ou elementos não próprios ou inerentes aos contratos em seu conceito literal e específico…
Algumas obrigações há que impregnam de contratualidade o casamento, como aquelas da mútua colaboração no sustento e nas responsabilidades econômicas. Daí muitos pretenderem encarar o matrimônio como um contrato complexo, isto é, um misto de contrato e de instituição. Predomina, no entanto, o conceito de instituição, pois contém elementos que ultrapassam os limites de contrato[20].
Braga da Cruz, embora reconhecendo ser o casamento uma instituição, observa que isto não implica dizer que o casamento não é um contrato. Não resta dúvida, afirma o autor, que, uma vez celebrado o casamento, surge o estado de cônjuge, que toma a natureza de uma instituição. Mas não é menos certo que esse estado surge de um ato jurídico, o casamento, que reveste em si a natureza de um contrato. Daí concluir que a teoria do casamento como uma instituição não prejudica de modo algum a teoria do casamento-contrato, não destrói a natureza jurídica contratual do casamento[21].
Como nenhuma dessas ideias foi suficiente para explicar a natureza jurídica do casamento, chegou-se à teoria do contrato de direito de família (ou especial ou sui generis), tendo o casamento como ato complexo, reunindo-se o elemento volitivo (contratual) ao elemento institucional. O casamento foi, assim, concebido como uma instituição em que os cônjuges ingressam pela manifestação de sua vontade, feita de acordo com a lei. Essa teoria teve a adesão de Eduardo Espínola[22], Caio Mário[23], Clóvis Bevilaqua[24], Sílvio Rodrigues[25] e Eduardo de Oliveira Leite[26], entre outros.
Note-se que o casamento não se conclui nem se aperfeiçoa apenas pela vontade dos noivos. O oficial público celebra o casamento, não apenas autentica a vontade dos cônjuges (CC, art. 1.535). O casamento é regido por normas cogentes, inafastáveis por acordo recíproco (ex: as partes não podem convencionar que não se vincularão ao dever de fidelidade). Ou seja, a existência de normas absolutas é traço característico do casamento. Ademais, afora o elemento contratual (a vontade das partes), no casamento também impera a participação do Estado[27]. Daí não se poder equipará-lo a um contrato qualquer. Tem-se, portanto, o casamento como um misto de contrato e instituição, como bem ensinam Planiol, Ripert e Rouast: "A só concepção que corresponde à realidade das coisas é uma concepção mista: o casamento é um ato complexo, ao mesmo tempo contrato e instituição, o mesmo que, em nosso antigo direito, era considerado por nossos antigos autores como sendo a um só tempo um contrato e um sacramento"[28].
Carlos César Orcesi da Costa critica a definição do casamento como contrato de direito de família, embora veja nele também um elemento volitivo:
O casamento teria então natureza de um acordo de vontades, mas não a de um contrato, excluído o emprego do termo a negócios de caráter não patrimonial. A questão – vê-se – é fundamentalmente terminológica, além de ser tida por alguns como infrutífera e pouco séria. Todavia a questão, como já dissemos, prende-se à necessidade de rigor científico na utilização dos termos. Como observa criticamente Antunes Varela, salientando antes a posição do Código Civil português, que considerou como contrato o casamento (art. 1.577º), bem como admitiu a constituição de obrigações de caráter não patrimonial, o alargamento da figura do contrato às relações pessoais poderia ter sido evitado, no plano da técnica legislativa, mediante a simples inclusão, nos lugares próprios, das ‘especialidades’, das regulamentações consensuais específicas.
[…] Não obstante, pelos motivos já suficientemente expostos, preferimos precisar a natureza consensual do casamento como acordo de vontades. Lembrando a tradicional distinção canônica entre ‘ato-união de duas pessoas’ e casamento ‘estado-de-fato’, aduzimos ao consentimento, em medidas iguais, a noção de instituição, de modo híbrido ou misto.
Embora o elemento consensual deva estar sempre presente como requisito à manutenção do matrimônio, não resta dúvida de que constantemente também as partes devem respeitar as disposições da instituição social, moral, política, além de jurídica, que representa e significa o instituto[29].
E San Tiago Dantas parte do conceito de contrato ("todo acordo de vontades que visa a criar obrigações) para contestar a natureza contratual do casamento, pois
obrigação tem sentido técnico […] é sempre relativa à posição patrimonial. Casamento não é contrato, pela razão de que não há acordo de vontade visando a criar obrigações"[30]. No mesmo sentido escrevem Giselda Hironaka e Renato Moraes que o casamento, embora seja um negócio jurídico, não é um contrato[31].
Existe ainda uma teoria mista ou eclética, que distingue o ato gerador (casamento-fonte), contratual, do complexo de normas que governam os cônjuges durante a união (casamento-estado), institucional[32], teoria esta que tem a adesão dos irmãos Mazeaud, e, no Brasil, de Sílvio Venosa[33]. Esta teoria peca não pela distinção[34], mas por pretender que o casamento-fonte seja apenas contratual, enquanto o casamento-estado seria apenas institucional. Tanto no casamento-fonte como no casamento-estado há elementos institucionais e contratuais.
Em suma, em nosso modo de ver, o casamento é um contrato de direito de família, ou seja, um misto de contrato e instituição; um contrato especial, com regras próprias, regido pelas regras cogentes do direito de família (não pelo direito das obrigações).
1.1.3 Definição
Encontramos no Corpus Iuris Civilis duas definições de casamento; uma no Digesto, atribuída a Modestino; a outra, atribuída a Ulpiano, é encontrada nas Institutas[35].
Pela primeira, "núpcias são a união do homem e da mulher e consórcio de toda a vida, comunicação do direito divino e humano"[36]. Na segunda se lê que "núpcias ou matrimônio são a união do homem e da mulher, importando numa indivisível comunhão de vida[37]. Observa Vicente Sobrino Pôrto que
no texto, os vocábulos nuptiae e matrimonium são empregados como sinônimos; porém, em verdade, cada um deles tem significado próprio. Nuptiae refere-se, especialmente, às cerimônias que se levavam a efeito para a criação de um vínculo legal entre os nubentes e matrimonium, ao próprio vínculo"[38].
A doutrina moderna tem conceituado o casamento, em consequência de sua natureza jurídica antes mencionada, como "o contrato de direito de família que tem por fim promover a união do homem e da mulher, de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem mútua assistência"[39]. Ou, nas palavras de Pontes de Miranda, "o contrato de direito de família que regula a vida em comum (não só a união sexual) entre o varão e a mulher"[40].
Para Lucy Mair, a vocação primordial no casamento é a paternidade. São homens, diz a autora, "que dão seus nomes, sua situação social – na medida que esta seja hereditária – aos filhos da mulher com a qual hajam celebrado um contrato"[41].
Não se deve perder de vista, ainda, definições menos ortodoxas, como a de Schopenhauer, para quem, "em nosso hemisfério monógamo, casar é perder metade de seus direitos e duplicar seus deveres"[42], ou a de Lockeridge, que o define como "um tipo de funeral no qual nós enterramos uma parte de nós mesmos[43], ou ainda a de Kant, que diz ser o casamento um acordo entre duas pessoas, com vista ao
uso recíproco dos órgãos sexuais de cada um"[44].
1.1.4 Histórico do casamento no Brasil
Até o século 19 o casamento no Brasil era apenas religioso, regulado somente pela Igreja Católica Romana, ficando os não católicos desamparados, já que não tinham regulamentação e registro de seus casamentos. Vigia no Brasil, portanto, a ideia de casamento como sacramento.
Em 1861, o Decreto 1.144 regulou o registro civil do casamento de pessoas não católicas[45]. Não se tratou da instituição do casamento civil, mas somente do registro civil de um casamento religioso celebrado por religiões diferentes da oficial do Estado.
Com a proclamação da república, em 1889, deu-se a separação entre a Igreja e o Estado[46], a chamada laicização do Estado[47]. Foi, então, pela primeira vez no Brasil, estabelecido o casamento civil pelo Decreto 181, de 24 de janeiro de 1890[48], com caráter de exclusividade[49], o que foi ratificado pelo art. 72, § 4º, da Constituição de 1891[50].
O Código Civil de 1916 enquadrou o casamento no título I do livro I da parte especial (arts. 180 a 228). Tratou dos seus efeitos jurídicos no título II (arts. 229 a 255) e dos regimes de bens no título III (arts. 256 a 314).
A Lei 379/37 regulamentou o casamento religioso com efeitos civis, sendo reestruturada pela Lei 1.110/50. A Constituição de 1988 reconheceu o casamento religioso com efeitos civis no art. 226, § 2º, o que foi acolhido no Código Civil de 2002 nos arts. 1.515 e 1.516.
1.1.5 Fins do casamento
As finalidades do casamento em regra apontadas pela doutrina tradicional são: disciplina das relações sexuais entre os cônjuges, proteção à prole e mútua assistência. Esta ideia já se encontrava na encíclica Casti Connubii do papa Pio XI: "A finalidade primária do casamento é a procriação assim como a educação da prole; secundariamente, mútua assistência e remédio à concupiscência"[51].
Hoje em dia estas finalidades precisam ser revistas, em especial no que diz respeito à primeira delas. Com a cada vez maior liberdade sexual existente em nosso meio, não sendo mais comum o aguardo do casamento para a prática sexual, tal finalidade se esvaziou.
Por outro lado, há de se considerar também como finalidade do casamento o alcance de um ideal comum.
Luiz Edson Fachin se refere a fins gerais e específicos. Nos gerais, a estabilidade do sistema das relações sociais, a manutenção do statu quo patrimonial com a posterior sucessão e a instituição do "consórcio de direitos e deveres numa experiência coletivamente limitada. Nos específicos, a
legitimidade ou legitimação" (já superada), a procriação dos filhos e a educação da prole, e bem assim imprimir efeitos jurídicos a certas situações de fato[52].
1.1.6 Elementos do casamento
Como qualquer negócio jurídico, o casamento também requer agente capaz, objeto lícito, possível e determinado ou determinável, e forma prescrita ou não defesa em lei (CC, art. 104).
No casamento, agentes são o homem e a mulher, devendo ambos ser capazes. A capacidade para casar está regulada, principalmente, nos arts. 1.517, 1.521 e 1.523 do Código Civil.
O objeto lícito está relacionado com os fins do matrimônio, ou seja, pressupõe a união do homem e da mulher. Assim, embora em tese até se possa falar em união de pessoas do mesmo sexo, não é admissível falar-se em casamento de pessoas do mesmo sexo[53].
Quanto à forma, o casamento é o negócio jurídico mais solene que se conhece, dizendo-se até que o casamento tem forma soleníssima.
1.1.7 Casamento por conversão
Convencionamos chamar casamento por conversão a duas situações em que o casamento é obtido indiretamente, por meio de conversão, legalmente permitida, de uma união anterior.
A primeira destas hipóteses é prevista no art. 1.516, § 2º, do Código Civil de 2002, que dispõe:
§ 2º O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e observado o prazo do art. 1.532.
Trata, portanto, da concessão de efeitos civis ao casamento religioso puro e simples. Ou seja, o casamento que, em princípio, era somente religioso, sem valor legal (equivalendo a um concubinato), passa a ter efeitos civis como se fosse o próprio casamento civil.
A segunda hipótese de casamento por conversão está regulada no art. 1.726:
Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.
Aqui, a conversão é de uma união estável em casamento civil, ao passo que, na primeira hipótese, converte-se o casamento religioso em casamento religioso de efeitos civis.
Com razão observa Rainer Czajkowski que "o dispositivo homenageia a parte final do art. 226, § 3º, da Constituição[54], mas não o explica. Facilidade de conversão em casamento pressupõe demonstração de união estável. Feita a prova, a publicidade existe. Na falta dela, o oficial pode rejeitar o requerimento[55]. Realmente, a Lei 9.278/96 e o Código Civil de 2002 pouco fizeram para regulamentar o dispositivo constitucional. Deveriam ter enunciado ao menos os requisitos mínimos para a conversão, tal como o fez a Lei 1.110/50[56]. Bem por isso é que os juízes das varas cíveis, de família e orfanológicas do Rio de Janeiro, reunidos sob a coordenação do desembargador Paulo Roberto de Azevedo Freitas, deliberaram unanimemente, para efeito de uniformização de entendimento, que
o art. 8º da Lei 9.278/96 não é autoaplicável"[57], inteligência que se estende ao citado art. 1.726.
Parece-nos, portanto, que, a exemplo do que ocorre na concessão de efeitos civis ao casamento religioso puro e simples, também na conversão da união estável em casamento será necessário o processo de habilitação, com a apresentação pelos conviventes dos documentos exigidos no art. 1.525 do Código Civil e publicação dos editais de proclamas para, no final, demonstrando-se não haver impedimentos matrimoniais, ser homologada a conversão, o que pressupõe, como afirmou Rainer Czajkowski, a demonstração da união estável. Assim, parece-nos ser necessária, para tanto, a justificação judicial.
Outra questão de relevo diz respeito à data a partir da qual se produzirão os efeitos do casamento obtido por conversão. Na concessão de efeitos civis ao casamento religioso puro e simples, a Lei 1.110/50 era clara no sentido de que os efeitos seriam retroativos à data da celebração do casamento[58]. O art. 1.726 do Código Civil, à semelhança do art. 8º da Lei 9.278/96, nada dispôs a respeito para a união estável. Parece-nos, contudo, não haver inconveniente em se proceder da mesma forma.
Há de se referir, ainda, à questão do regime de bens. Em ambos os casos não se tratou dele. O regime seria necessariamente o mesmo contratado por ocasião da primeira união, ou podem os nubentes agora alterar o regime?
Afirmamos nas quatro primeiras edições desta obra que, sobretudo com relação à concessão de efeitos civis ao casamento religioso, não podiam os cônjuges alterar o regime inicialmente contratado, já que, como dissemos, a inscrição produz efeitos retroativos à celebração do casamento (efeitos ex tunc). Assim, prevalecia a regra do art. 230 do Código Civil de 1916[59]. E mesmo quanto à conversão da união estável em casamento, se ele produzisse também efeitos retroativos, a solução à questão devia ser a mesma. Entretanto, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, que, no art. 1.639, § 2º, permitiu a alteração do regime de bens na constância do casamento, tal posicionamento ficou relativamente prejudicado. De qualquer forma, como a alteração do regime de bens carece de exposição de motivos, permanece válida a anterior exposição, pois, não havendo justificativa que autorize a alteração, permanecerá o regime inicialmente contratado.
É claro que os conviventes poderão, ao invés de requerer a conversão da união estável em casamento, contrair casamento da forma ordinária, como se não houvesse união anterior. Nesse caso, entretanto, o casamento não produzirá efeitos retroativos, podendo os nubentes livremente escolher o regime de bens por meio do pacto antenupcial.
Há, por último, de se mencionar o disposto no art. 45 da Lei do Divórcio:
Art. 45. Quando o casamento se seguir a uma comunhão de vida entre os nubentes, existente antes de 28/06/1977, que haja perdurado por 10 (dez) anos consecutivos ou da qual tenham resultado filhos, o regime matrimonial de bens será estabelecido livremente, não se lhe aplicando o disposto no art. 258, parágrafo único, II, do Código Civil.
O dispositivo, hoje revogado (não repetido no código de 2002), tinha por fim básico excepcionar a obrigatoriedade do regime de separação legal de bens, quando o casal já vivia em concubinato desde 1977. Parece-nos, contudo, não se referir ele ao casamento por conversão (que não existia à época da edição da Lei do Divórcio), mas sim ao caso de o casal concubinado pretender o casamento ordinário. A propósito, convém mencionar entendimento esposado na III Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal: "A obrigatoriedade da separação de bens, nas hipóteses previstas nos incs. I e III do art. 1.641 do Código Civil, não impede a alteração do regime, desde que superada a causa que o impôs"[60].
1.2. A dissolução do matrimônio
A indissolubilidade do matrimônio ficou inscrita desde o primeiro momento: "Portanto deixará o varão o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne"[61].
Jesus explicou esta passagem: "Assim não são mais dois, mas uma só carne. Portanto o que Deus ajuntou não o separe o homem"[62].
O profeta Malaquias também se manifestou neste sentido: "E não fez ele somente um, sobejando-lhe espírito? E por que somente um? Ele buscava uma semente de piedosos; portanto guardai-vos em vosso espírito, e ninguém seja desleal para com a mulher da sua mocidade. Porque o Senhor Deus de Israel diz que aborrece o repúdio…"[63].
Também São Paulo deixou inscrita a indissolubilidade do matrimônio[64], só permitindo novo casamento após a morte do cônjuge[65].
O papa Leão XIII também falava dos males do divórcio:
Pelo divórcio as alianças matrimoniais tornam-se instáveis, enfraquece-se o mútuo afecto, a infidelidade recebe perniciosos incitamentos, ficam comprometidas a proteção e a educação dos filhos, proporciona-se ocasião de se dissolverem as sociedades domésticas, semeiam-se no seio das famílias os germes da discórdia, diminui-se e abate-se a dignidade da mulher, porque corre o perigo de ser abandonada, depois de ter servido às paixões do homem[66].
Não obstante, não tardou a se constatar não ser possível, em alguns casos, a continuidade da convivência "até que a morte os separe. Já a lei mosaica permitia o repúdio:
Quando um homem tomar uma mulher, e se casar com ela, então será que, se não achar graça em seus olhos, por nela achar coisa feia[67], ele lhe fará escrito de repúdio, e lho dará na sua mão, e a despedirá da sua casa"[68].
E o sacerdote Esdras comandou uma espécie de divórcio (ou, mais propriamente, repúdio) coletivo, com o fim de fazer cumprir a lei de Deus: "Então, se levantou Esdras, o sacerdote, e disse-lhes: Vós tendes transgredido e casastes com mulheres estranhas, multiplicando o delito de Israel. Agora, pois, fazei confissão ao Senhor, Deus de vossos pais, e fazei a sua vontade; apartai-vos dos povos das terras e das mulheres estranhas"[69].
Mas Jesus esclareceu que Moisés assim o permitiu "por causa da dureza dos vossos corações", o que não ocorria no princípio[70]. Claudionor Corrêa de Andrade lembra que tal permissão visava a que "os maridos não maltratassem nem tiranizassem suas esposas. Porque naquela época, apesar do caráter elevado e nobilíssimo da Lei Divina, os homens tratavam suas mulheres como se fossem estas meros objetos"[71].
Não é sem razão, portanto, que a Igreja Católica Romana, até hoje, proíbe o divórcio[72], posto que esta posição radical encontre fortes oposições[73]. Com propriedade observa Clóvis Bevilaqua que este é um assunto "em que as opiniões se mostram irredutíveis, porque dependem da concepção que cada um tem do mundo e, em particular, da sociedade. Discutir o divórcio não é discutir uma questão jurídica. A matéria é, antes, do domínio da sociologia, pois transcende os limites do direito, e interessa à moral, aos costumes e à educação"[74].
Mas, em que pese a oposição da Igreja Católica Romana e da maioria das igrejas evangélicas, a tendência moderna é a admissão da dissolução do matrimônio, que é permitida em quase todos os países, posto que alguns vejam nisto grande mal[75].
No direito romano, como consequência da concepção que tinham do casamento, o divórcio era algo extremamente normal[76].
O Código Civil de 1916, como visto, não previa o divórcio, permitindo a dissolução do matrimônio apenas pela morte, vedando o mesmo efeito para a morte presumida.
Esse sistema foi alterado pela Emenda 9, de 1977, que introduziu o divórcio no Brasil, regulamentada pela Lei 6.515/77 (Lei do Divórcio).
O Código Civil de 2002, no art. 1.571, § 1º, passou a admitir a presunção de morte como causa de abolição do casamento[77]. Contraria, assim, o que dispunha o art. 315, parágrafo único, do código de 1916, que expressamente excluía a morte presumida como causa de extinção do matrimônio. Ou seja, por mais duradoura que fosse a ausência, não tinha ela o condão de encerrar o casamento[78]. Com a revogação deste dispositivo pelo art. 54 da Lei do Divórcio, e não tratando esta expressamente do tema, manifestaram alguns autores que seria possível a cessação do matrimônio pela morte presumida[79].
Não obstante, entendemos que a morte presumida não tinha este condão. Posto que não repetida expressamente a proibição do dispositivo revogado do Código Civil de 1916, não se podia requerer a declaração de dissolução do vínculo matrimonial por morte presumida de um dos cônjuges, visto que o instituto da morte presumida se referia exclusivamente à sucessão dos bens deixados pelo ausente. Necessário se fazia, portanto, que o cônjuge promovesse o divórcio, o que lhe seria, inclusive, mais fácil, já que o divórcio direto dependia apenas de dois anos de separação de fato, ao passo que, para a configuração da morte presumida, ordinariamente, se faz necessária a ausência por dez anos (art. 1.167, inc. II, do CPC de 1973; art. 37 do diploma civil de 2002). Talvez por esta razão não tenha o legislador repetido a norma do revogado art. 315. Naquele, como não se aceitava o divórcio a vínculo, era necessário deixar expresso que também não se aplicaria a presunção de morte. A partir da Lei 6.515/77, instituído o divórcio, dificilmente alguém se utilizaria desta presunção para romper o vínculo conjugal. Ademais, como lembrava Yussef Said Cahali, "ausente qualquer provisão legal que o autorize, continua inexistindo qualquer ação direta para a declaração da ruptura do vínculo matrimonial devido à ausência declarada ou presumida do cônjuge; nem essa ausência, ainda que declarada judicialmente, tem o condão de produzir ipso jure a dissolução do matrimônio"[80].
O Código Civil de 2002 alterou esta situação, decretando, no art. 1.571, § 1º, a dissolução do casamento pela ausência do outro cônjuge em decisão judicial transitada em julgado. Pode agora o cônjuge do ausente optar entre pedir o divórcio para se casar novamente ou esperar pela presunção de morte, que se dá com a conversão da sucessão provisória em definitiva. O divórcio, embora mais rápido, tem a desvantagem de fazer o cônjuge perder o direito à sucessão. Com efeito, sendo o cônjuge herdeiro ainda que haja descendentes ou ascendentes do de cujus (ou, no caso, do ausente), nos termos do art. 1.829, precisará, não obstante, conservar a posição de cônjuge até a conversão da sucessão provisória em definitiva, quando, só então, haverá realmente a vocação hereditária. Caso se divorcie antes, embora tendo a vantagem de poder se casar novamente desde logo, terá a desvantagem de perder a capacidade sucessória na sucessão do ausente.
Entretanto, a lei não resolve algumas questões que a norma suscita: em primeiro lugar, em que momento se considera presumida a morte do ausente, para o fim da ab-rogação do seu casamento? Interpretando isoladamente os arts. 22 e 23[81], poder-se-ia chegar à singela conclusão de que a dissolução se daria tão logo se desse o desaparecimento do ausente. Mas tal interpretação contraria a sistemática do instituto, bem como a letra do art. 6º, que dispõe: "A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva". Assim, é somente com a conversão da sucessão provisória em definitiva que se presume a morte do ausente, pelo que somente essa conversão é que dissolve o casamento do ausente.
Há quem defenda a ideia de que o cônjuge do ausente, para casar-se novamente, deve promover o divórcio. Mas tal entendimento não pode ser aceito. Que o divórcio acaba com o vínculo conjugal não se duvida. Entretanto, não se pode exigir o divórcio no caso em tela, pois a lei erigiu a morte presumida como causa independente de extinção do vínculo. Vale dizer: a morte é, ao lado do divórcio, causa de dissolução do casamento; a conversão da sucessão provisória em definitiva, fazendo presumir a morte, desfaz também o vínculo, e por si só, pelo que nada mais se pode requerer para rompê-lo, pois já estará o casamento dissolvido com a sentença de conversão. Faltaria objeto à ação de divórcio iniciada depois da declaração de ausência, pois o casamento encontra-se extinto. Quisesse a lei que o cônjuge do ausente promovesse o divórcio, nada precisaria ter dito, pois assim era no sistema da Lei do Divórcio sem qualquer texto legal.
A sentença declaratória de ausência, nos termos do art. 9º, inc. IV, e do art. 94 da Lei de Registros Públicos, deve ser registrada no registro civil. Daí resultaria para o cônjuge do ausente a condição de viúvo? A lei não o diz, mas é de se supor que sim, pois seria esta a consequência principal do registro da sentença de conversão da sucessão provisória em definitiva. Mas: viúvo de cônjuge vivo? Sim, porque não se pode negar que o presumido morto é um possível vivo. E mais: uma viuvez revogável
? Admitindo a lei o retorno do ausente até dez anos depois da conversão da sucessão provisória em definitiva, podendo ele reassumir seus bens (art. 39), ou, mesmo depois dos dez anos (embora sem reassumir seus bens), naturalmente poderá o ausente reabilitar-se civilmente, deixando de ser presumido morto, com o que estará revogado o estado de viúvo do seu cônjuge.
Pode o ex-cônjuge do ausente, pretendendo casar, habilitar-se matrimonialmente? Que documentos deve apresentar? Vejamos o que diz o art. 1.525:
O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser instruído com os seguintes documentos: […] IV – declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos; V – certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença declaratória de nulidade ou de anulação de casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença de divórcio.
De princípio, vê-se que o ex-cônjuge terá que declarar seu estado civil para casar novamente. Declarará o estado de viúvo, com as implicações antes ditas? Ou, declarando o estado de casado, aceitará o oficial do registro civil a sua habilitação? Como ficaria, neste caso, o impedimento do art. 1.521, inc. VI[82]? Mas o maior problema é que a lei não previu a juntada da certidão do registro da sentença de conversão para fins de habilitação matrimonial. No citado inc. V do art. 1.525 só se fala em certidão de óbito, de anulação ou de divórcio; esqueceu-se o legislador de que o nubente que foi casado pode não ter nenhum desses documentos, mas apenas a certidão de registro da sentença de conversão, documento que, nos termos do art. 1.571, § 1º, deve-lhe ser suficiente.
Observe-se, pois, que a lei não se refere, no inciso V, à sentença de conversão da sucessão provisória em definitiva, como prova da presunção de morte do cônjuge anterior de um dos nubentes. Entretanto, dada a regra do art. 1.571, § 1º, que admite a presunção de morte como fator de dissolução do casamento, deve ser admitida a certidão da sentença de ausência em lugar da certidão de óbito do cônjuge anterior.
Outra consequência não prevista pelo legislador, e esta a mais grave, é o eventual retorno do ausente após o casamento de seu ex-cônjuge. Imagine-se que, após a sentença de conversão, o ex-cônjuge do ausente se case, aproveitando-se da disposição do art. 1.571, § 1º, vindo, depois do casamento, a reaparecer o ausente. Como fica o primeiro e o segundo casamento do cônjuge do ausente? Dir-se-á ser simples a solução, pois o citado parágrafo diz que o primeiro casamento se dissolve pela presunção de morte, equivalendo, portanto, ao divórcio, ou à morte real. Daí seguiria a consequência de que, estando extinto o primeiro casamento, válido ficaria o segundo[83]. Mas deve-se discutir: a presunção de morte é uma presunção absoluta (juris et de jure)? Não seria antes uma presunção relativa (juris tantum)? Não se pode negar o seu caráter de presunção relativa, já que o ausente pode retornar e, em consequência, provar que não está morto realmente. Sendo presunção relativa, desfaz-se com a prova de que não houve morte real, ou seja, com o reaparecimento do ausente. Então, desfeita a presunção, seria lógico se entender desfeita também a dissolução do casamento. E a consequência disto seria desastrosa: o segundo casamento do cônjuge do ausente foi feito em bigamia, sendo, portanto, nulo[84]. Esta é a solução adotada pelo direito italiano[85]. Seria razoável anular o casamento do ex-cônjuge do ausente pelo reaparecimento deste depois de tanto tempo? Melhor seria se a lei tivesse disposição semelhante ao § 1.348 do BGB (código civil alemão), que dizia expressamente ficar válido o segundo casamento nesse caso[86].
Por fim, ainda um questionamento: pode o próprio ausente se beneficiar do fim do casamento pela ausência? Ou em outros termos: pode o ausente, estando vivo em algum lugar, contrair validamente um novo matrimônio? A lei não o diz, mas, partindo-se do pressuposto de que a dissolução se dá pela morte presumida, não estando o ausente morto realmente, não há ruptura do casamento, pelo que não poderá ele validamente casar novamente. Mas aí teremos outro problema: enquanto para o cônjuge do ausente o casamento estará desfeito, para o ausente não, permanecendo ele casado. Mas, casado com quem? Casado com alguém que é viúvo ou que já se casou com outra pessoa?
De todo o exposto, concluímos que seria melhor que o legislador tivesse evitado a disposição em comento, mantendo a não dissolução do casamento pela presunção de morte, de modo que fosse necessário ao cônjuge do ausente promover o divórcio, evitando, assim, todas as complicações antes enunciadas.
E foi justamente isto que fez o projeto de nova Lei do Divórcio (Projeto 5.432/2013, atualizado agora no Projeto 9.041/2017): pretende-se alterar o § 1º do art. 1.571, para restaurar a boa e velha doutrina do código de 1916, nestes termos: "O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, não se aplicando a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente".
1.3. A dissolução do casamento no direito comparado
1.3.1 Direito argentino
Como observa Ricardo Gallardo, o primeiro código civil argentino, obra do Dr. Dalmacio Vélez, entrou em vigor em 1º de janeiro de 1871, registrando-se desde então o princípio da indissolubilidade do matrimônio, que quedou incólume mesmo após as leis 2.393/1888 e 2.681/1889[87].
A Argentina só incluiu definitivamente em seu código civil a possibilidade do divórcio vincular em 1987, com o advento da Lei 23.515/87[88], que alterou diversos artigos do código civil referentes ao matrimônio.
Lagomarsino e Uriarte dão a exata noção da situação que reinava naquele país à época:
Ao momento de assumir as novas autoridades constitucionais em dezembro de 1983, a única forma de divórcio admitida pelo direito positivo argentino era o divórcio relativo, denominado também separação pessoal ou separação de corpos. A espécie do divórcio vincular ou absoluto recebida pela Lei 14.394 se encontrava derrogada ou suspendida sine die, segundo fosse a tese adotada na interpretação do art. 1º do Dec.-lei 4.070/56. Dali em diante, durante cerca de trinta anos, havia-se negado ao tema um tratamento legislativo não obstante haver-se elaborado diversos projetos de lei de divórcio e de derrogação do Dec.-lei 4.070/56, ademais dos de resolução ou declaração e os que reproduziam projetos anteriores[89].
E Francisco Ferrari Ceretti nos informa da larga discussão então reinante sobre a eficácia da sentença estrangeira de divórcio, em face da falta de disposição legal a respeito[90].
Com o advento da Lei 23.515/87, passou o código a tratar, então, da separação pessoal dos cônjuges no capítulo IX do título I (Del matrimonio) da seção segunda (De los derechos personales en las relaciones de familia), arts. 201 a 205. Seus efeitos foram regulados no capítulo X, arts. 206 a 212. O divórcio foi apreciado no capítulo XII, arts. 214 a 216, ficando seus efeitos narrados no capítulo XIII, arts. 217 e 218. Ademais, adotava a lei argentina causas rígidas para a separação culposa, assim discriminadas no art. 202:
Art. 202. São causas de separação pessoal:
1) o adultério;
2) a tentativa de um dos cônjuges contra a vida do outro ou dos filhos, sejam ou não comuns, seja como autor principal, cúmplice ou instigador;
3) a instigação de um dos cônjuges ao outro a cometer delitos;
4) as injúrias graves. Para sua apreciação o juiz tomará em consideração a educação, posição social e demais circunstâncias de fato que podem apresentar-se;
5) o abandono voluntário e malicioso.
No ano de 2014 foi aprovado o novo Código Civil e Comercial da Nação (Lei 26.994, de 7 de outubro de 2014), o qual não mais regulamenta a separação pessoal, mas sim o divórcio como meio de dissolução do matrimônio.
Art. 435 Causas de dissolução do matrimônio
O casamento se dissolve por:
a) morte de um dos cômjuges;
b) sentença final de ausência com presunção de morte;
c) divórcio declarado judicialmente.
1.3.2 Direito português
Anota Lúcia Stella Ramos do Lago que o divórcio foi introduzido em Portugal pelo Decreto 1, de 3 de dezembro de 1910[91], tanto o divórcio litigioso, pedido por um dos cônjuges contra o outro, como o divórcio por mútuo consentimento, requerido conjuntamente por ambos os cônjuges. A legislação de 1910 esteve em vigor até a Concordata com a Santa Sé, de 7 de maio de 1940.
A legislação concordatária manteve o divórcio quanto aos casamentos civis e aos casamentos católicos celebrados até 1º de agosto de 1940. Só não poderiam dissolver-se por divórcio os casamentos católicos posteriores a essa data[92].
O código civil português[93] disciplina a dissolução da sociedade e do vínculo conjugal nos capítulos XI e XII do título II (Do casamento
) do livro IV (Direito da família
), arts. 1.767º a 1.795º.
Começa ele por tratar da simples separação judicial de bens
, que pode ser requerida por qualquer dos cônjuges, sempre em caráter litigioso (art. 1.768º), "quando estiver em perigo de perder o que é seu pela má administração do outro cônjuge" (art. 1.767º). A consequência desta separação judicial de bens é a mutação do regime de bens para o de separação, procedendo-se à partilha do patrimônio comum como se o casamento tivesse sido dissolvido (art. 1.770º). Ou seja, o casamento, em si, não se altera, nem mesmo no que diz respeito à vida em comum; somente a comunhão de bens é que é desfeita, passando a vigorar o regime da separação[94]. A simples separação judicial de bens é irrevogável (art. 1.771º).
Dispõe o código civil lusitano, em seguida, sobre o divórcio, permitindo-o por mútuo consentimento ou de forma litigiosa (art. 1.773º, 1), podendo aquele ser feito em juízo ou na conservatória do registro civil[95], se o casal não tiver filhos ou se, havendo, o exercício do poder paternal já estiver judicialmente regulado; o litigioso, somente em juízo.
O divórcio por mútuo consentimento requer que os cônjuges estejam casados há pelo menos três anos. O processo é lento[96]: o juiz designa uma primeira conferência[97] em que tentará conciliar os cônjuges. Não obtido êxito, adverti-los-á de que deverão renovar o pedido após um período de três meses a um ano. Sendo o pedido renovado, o juiz convocará os cônjuges para uma segunda conferência (art. 1.777º), quando então se dará a homologação.
O divórcio litigioso pode ser requerido por um cônjuge "se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum" (art. 1.779º). Não poderá, entretanto, pedir o divórcio o cônjuge que tiver instigado o outro a praticar o fato, tiver criado condições propícias à sua verificação ou tiver revelado, por seu comportamento posterior, principalmente por perdão, não considerar o ato como impeditivo da vida em comum (art. 1.780º).
Também se pode dar o divórcio litigioso quando houver separação de fato por seis anos, ausência (sem quaisquer notícias) por quatro anos ou alteração das faculdades mentais que comprometa a vida em comum por mais de seis anos (art. 1.781º). O primeiro caso, que no nosso direito é de separação ou divórcio remédio[98], lá pode ser considerado também como culposo, já que, nos termos do art. 1.782º, 2, o juiz deve declarar a culpa dos cônjuges, quando a haja[99].
Havendo culpa recíproca, ambos serão declarados culpados, mas, se a culpa de um deles for consideravelmente maior que a do outro, a sentença o declarará principal culpado. E, em Portugal, a declaração de culpa do autor independe de reconvenção deduzida pelo réu, podendo ser declarada, até mesmo, após o prazo de caducidade (art. 1.787º).
O cônjuge declarado único ou principal culpado perde os benefícios recebidos ou por receber do outro cônjuge ou de terceiros (art. 1.791º), devendo, também, reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento (art. 1.792º).
O direito ao divórcio caduca em dois anos, contados da data em que o ofendido teve conhecimento do fato capaz de fundamentar o pedido[100]. O prazo corre separadamente em relação a cada fato (art. 1.786º).
Ocupa-se o direito lusitano, em seguida, da separação judicial de pessoas e bens, fazendo remissão ao disposto quanto ao divórcio (art. 1.794º). Dispõe que a reconciliação pode ser feita a qualquer tempo, por termo no processo de separação ou por escritura pública, sujeita a homologação judicial ou do conservador do registro civil (art. 1.795º-C).
1.3.3 Direito alemão
Na Alemanha, o BGB[101], como é conhecido o código civil daquele país, foi promulgado em 18 de agosto de 1896, sendo hoje um dos códigos civis mais antigos do mundo[102].
Tratava ele, originalmente, do divórcio no título sétimo (§§ 1.564 e ss.). Esse título foi derrogado pela Lei do Matrimônio de 1938 (§ 84)[103] e, posteriormente, pela Lei do Matrimônio de 20 de fevereiro de 1946 (§ 78), que passou a cuidar do divórcio em seus §§ 41 a 76. A Lei da Família, de 14 de junho de 1976, trouxe o divórcio novamente para o BGB, que agora está, em sua parte fundamental, disciplinada nos §§ 1.564 a 1.568.
O BGB não cogita de nenhuma forma de separação judicial; tão somente do divórcio.
O divórcio pode ser consensual ou litigioso, conforme preconiza o primeiro dos dispositivos citados[104]. Mas o divórcio litigioso não é baseado na culpa dos cônjuges. Ao contrário, o fator principal na Alemanha é o fracasso do casamento, o que se evidencia pela leitura do § 1.565:
[Princípio do fracasso; Prazo mínimo de separação] (1) O casamento pode ser dissolvido se o mesmo fracassou. O casamento é considerado como tendo fracassado se a vida em comum deixou de existir e se não é possível esperar que os cônjuges a restabeleçam. (2) Se os cônjuges viverem separados há menos de um ano, o casamento somente poderá ser dissolvido se a continuação do casamento representar uma penúria excessiva para o requerente, por motivos atribuíveis à pessoa do outro cônjuge[105].
Nesse sentido é a lição de Günther Beitzke:
A nova lei só conhece, em princípio, uma só causa de divórcio, a falência do casamento, explicitada na lei pela fórmula: ‘O casamento fracassou quando a comunhão de vida dos cônjuges atingiu o fim e quando não pode se esperar que os cônjuges a restabeleçam’ (§ 1.565). A noção de culpa é eliminada; não se pronuncia mais sobre os erros dos cônjuges[106].
O divórcio pode ser pedido após um ano de separação de fato se for consensual ou, mesmo se litigioso em princípio, se o réu com ele concordar[107]. Do contrário, serão necessários três anos de separação de fato[108].
O § 1.567 explica o que se deve ter por separação de fato no direito germânico, deixando claro que pode ela se dar no mesmo lar:
[Pessoa que vive separada] (1) Os cônjuges vivem separados se não houver comunidade doméstica entre eles e um dos cônjuges não quiser restabelecer essa comunidade porque recusa a vida em comum de casamento. A comunidade doméstica também não existe mais se os cônjuges viverem separados dentro do lar matrimonial. (2) A vida em comum por período reduzido, para a reconciliação dos cônjuges, não interrompe ou prejudica os prazos previstos no § 1.566[109].
Por fim, o § 1.568 prevê a chamada "cláusula de dureza" (Härteklauseln), proibindo o divórcio se a manutenção do casamento for excepcionalmente necessária para os filhos ou para um dos cônjuges[110].
Trata o BGB da pretensão de mantença
no § 1.569 e seguintes[111], ao passo que o processo é contemplado no ZPO[112].
1.3.4 Direito francês
O código civil francês, de 1804, admitiu, originariamente, o divórcio. Mas tal disposição teve duração efêmera; a Lei de 8 de maio de 1816 aboliu o divórcio[113], tendo sido restaurado mais tarde na Terceira República, com a Lei de 27 de julho de 1884.
A Lei 75-617, de 11 de julho de 1975, reformou o título VI do livro I (Das pessoas), nos arts. 229 a 310, sendo o capítulo I dedicado às causas do divórcio, o capítulo II, ao processo de divórcio[114], o capítulo III, às consequências do divórcio, o capítulo IV, à separação de corpos (correspondente à nossa separação judicial), e o capítulo V, ao conflito de leis relativas ao divórcio e à separação de corpos.
Nova reforma sofreu a matéria pela Lei 2.004-439, de 26 de maio de 2004, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 2005. Esta lei alterou inclusive a redação do art. 228 (antes incluído no capítulo VIII do título V, a respeito das segundas núpcias), principiando a tratar do divórcio a partir deste. Como notou Thierry Garé, professor da Universidade de Toulouse, em palestra ministrada sobre a reforma, "a lei nova visa acelerar os procedimentos de divórcio. Várias inovações respondem a esse objetivo… Mas as duas inovações mais marcantes concernem à existência de uma audiência única no divórcio por consentimento mútuo e a elaboração de um tronco comum procedimental nos divórcios contenciosos"[115].
O art. 229, na redação anterior, definia que o divórcio podia ser pronunciado por mútuo consentimento, por ruptura da vida em comum e por culpa. A nova redação dada pela Lei 2.004-439 substituiu a hipótese de ruptura da vida em comum por duas outras: a aceitação do princípio da ruptura do casamento e a alteração definitiva do laço conjugal.
O divórcio por mútuo consentimento está regulado nos