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A política externa brasileira em disputa: agentes e mecanismos do processo decisório na era Lula
A política externa brasileira em disputa: agentes e mecanismos do processo decisório na era Lula
A política externa brasileira em disputa: agentes e mecanismos do processo decisório na era Lula
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A política externa brasileira em disputa: agentes e mecanismos do processo decisório na era Lula

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A política externa brasileira em disputa: agentes e mecanismos do processo decisório na era Lula é, pois, contribuição valiosa não só para o estudo dos mecanismos de interação entre os Poderes na formulação da política externa brasileira, como um convite à reflexão para a análise das experiências políticas de partidos na institucionalidade brasileira, em suas dimensões doméstica e internacional, em diferentes tempos. Uma janela aberta para compreensão desse "passado presente" que permanece obra inacabada quando se pretende entender o panorama global de fragilidade da democracia frente aos ditames do neoliberalismo e à ascensão da extrema direita neste século XXI. 



INGRID SARTI
LanguagePortuguês
PublisherFolio Digital
Release dateApr 13, 2022
ISBN9786586911220
A política externa brasileira em disputa: agentes e mecanismos do processo decisório na era Lula

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    A política externa brasileira em disputa - Glauber Cardoso Carvalho

    capa_a-politica-externa.png

    A política externa brasileira em disputa

    Glauber Cardoso Carvalho

    A política externa

    brasileira em disputa

    Agentes e mecanismos do processo decisório na era Lula

    folio

    Copyright © 2021 do autor

    Copyright © 2021 desta edição, Letra e Imagem Editora.

    Todos os direitos reservados.

    A reprodução não autorizada desta publicação, no todo

    ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

    Grafia atualizada respeitando o novo

    Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

    Revisão: Priscilla Morandi

    Imagem da capa: [Palácio do] Congresso Nacional : [Palácio Itamaraty] : Brasília, DF: IBGE, [19--]. Série: Acervo dos municípios brasileiros. ID: 41761. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=441761. Acesso em: 01/08/2020

    Conselho Editorial

    Felipe Trotta (PPG em Comunicação e Departamento de Estudos Culturais e Mídia/UFF)

    João Paulo Macedo e Castro (Departamento de Filosofia e Ciências Sociais/Unirio)

    Ladislau Dowbor (Departamento de pós-graduação da FEA/PUC-SP)

    Leonardo De Marchi (Faculdade de Comunicação Social/Uerj)

    Luana Pinho (Faculdade de Oceanografia/Uerj)

    Marta de Azevedo Irving (Instituto de Psicologia/UFRJ)

    Marcel Bursztyn (Centro de Desenvolvimento Sustentável/UNB)

    Micael Herschmann (Escola de Comunicação/UFRJ)

    Pablo Alabarces (Falculdad de Ciencias Sociales/Universidad de Buenos Aires)

    Roberto dos Santos Bartholo Junior (COPPE/UFRJ)

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

    C331p Carvalho, Glauber Cardoso

    A política externa brasileira em disputa: agentes e mecanismos do processo decisório na era Lula / Glauber Cardoso Carvalho. - Rio de Janeiro : Fólio Digital, 2021.

    342 p. ; 16cm x 23cm.

    Inclui bibliografia e índice.

    isbn

    978-65-86911-22-0

    1. Relações Internacionais. 2. Política externa. 3. Brasil. 4. Governo Lula. I. Título.

    CDD 327

    2021-310 CDU 327

    Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

    Índice para catálogo sistemático:

    1. Relações Internacionais 327

    2. Relações Internacionais 327

    www.foliodigital.com.br

    Fólio Digital é um selo da editora Letra e Imagem

    Rua Almirante Alexandrino, 1494/subsolo 201

    cep: 20241-263 – Rio de Janeiro, rj

    tel (21) 2558-2326

    letraeimagem@letraeimagem.com.br

    www.letraeimagem.com.br

    À minha mãe
    Ao Edilson Junior

    LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES

    Sumário

    Apresentação

    Prefácio

    Ingrid Sarti

    Introdução: o caminho da disputa

    Decisões e agentes de um brasil em transformação: a análise de política externa e a integração regional

    O campo de estudo da Política Externa brasileira: base histórico-conceitual sobre desenvolvimento e autonomia

    A tomada de decisões e seus agentes: a análise de política externa e possibilidades de cooperação internacional

    A política externa e seus níveis de análise

    A dinâmica da relação das instituições do Estado e da sociedade na ação internacional

    A estrutura do processo decisório para a integração regional sul-americana na era lula: quem age pela autonomia?

    Agenda eleitoral: os programas de governo e chegada do Partido dos Trabalhadores ao Executivo nacional

    1989 - Bases do plano alternativo de governo

    1994 - Uma revolução democrática no Brasil

    1998 - União do povo – Muda Brasil

    2002 - Um Brasil para todos

    2006 - Lula de novo com a força do povo

    Planejamento colocado em prática

    Agentes do processo decisório executivo da Política Externa brasileira

    Lula da Silva: o presidente metalúrgico

    Celso Amorim: o ministro mascate

    Samuel Pinheiro Guimarães Neto: o embaixador anti-Alca

    Marco Aurélio Garcia: o professor da integração

    MRE: estrutura e mudanças na burocracia especializada

    Outros ministérios com competências internacionais

    O Legislativo como agente do processo decisório de política externa

    Competências constitucionais e estrutura do Poder Legislativo

    A reivindicação do aumento da participação

    Do nunca antes ao quase lá: a unasul e o banco do sul entre interesses e entraves

    Nunca antes: a Unasul entre a vontade do Executivo e o regimento do Legislativo

    Tentativa de abortar o processo antes mesmo de nascer

    O início do processo da Unasul no Congresso Nacional em 2008

    A integração mais dois anos como projeto

    Seis meses depois: do projeto ao decreto

    Quase lá: O Banco do Sul, a Venezuela e o uso de mecanismos regimentais sem a prática da rejeição

    Antecedentes da proposta original do Banco do Sul: um desafio ao Sul

    O Banco do Sul entre o dilema das lideranças e de seu alcance

    Procedimentos regimentais para buscar informações

    As comissões e suas estratégias

    Os interesses de todas as oposições

    A chegada do Banco do Sul ao Congresso brasileiro anos depois

    O banco que não saiu do projeto

    Casos simbólicos: Venezuela no Mercosul, Bolívia e Banco dos Brics

    Conclusão: a falácia de que todos querem a integração

    Referências

    Anexos

    Apresentação

    O presente livro deriva da minha tese de doutoramento em Economia Política Internacional, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E começo ressaltando a possibilidade dela não ter sido escrita. Menos por interesse ou possibilidades materiais, como vi ocorrer com pesquisadores no trajeto da pós-graduação, e mais por questões conjunturais e políticas. Explico.

    Iniciei o processo de doutorado em 2014 e ainda pairava a esperança de um novo tempo de integração. Havia ainda dentre os pesquisadores uma noção de que havia possibilidade de confiar no aprofundamento do regionalismo como circunstância política concreta, cujo apoio das nações era claro, cuja capacidade de arregimentar visões favoráveis era reforçada diariamente no fazer político, sobretudo no Brasil.

    Nós estávamos nos enganando. As forças ocultas estavam prestes a aparecer, e todo o espectro positivo foi substituído por um contínuo de tristeza e negatividade, de separação e divisão nacional. Um golpe estava em curso e foi o responsável pela brusca deposição da presidenta reeleita.

    A onda não levou somente a democracia, mas toda a construção de autonomia e desenvolvimento que vimos analisando estava agora por um fio. A integração foi golpeada também por discursos inflamados de mudança e, mais perigosos, de renovação.

    A política externa brasileira, analisada em um conjunto teórico-conceitual com a investigação de duas temáticas fruto das épocas de boncança, estava na esteira da reviravolta. Como eu pesquisaria algo que estava desacontecendo, métodos e técnicas de pesquisa deveriam substituir o entusiasmo? Do projeto para a versão final, as alterações foram se acumulando. Não, meu tema não era a conjuntura imediata, mas o processo. Não era o novo ator de um governo temeroso, mas ajudou a questionar onde a integração efetivamente se localizava na política brasileira.

    O caminho estava retraçado. Pensar nos atores e na agenda de integração, compreender onde ela se relacionava com a busca da autonomia e em que situação se deslocava do espectro do Estado para funcionar ao bom gosto de poderes pontuais. Traçar este caminho desde as visões de Análise de Política Externa não foi o caminho metodológico mais óbvio e consensual. A visão crítica que alimenta a minha pesquisa desde muito tempo encontrou na APE a possibilidade de construir um novo olhar.

    Compreendi, outrossim, que o trabalho investigava e registrava um período histórico que havia sido rico em possibilidades e aberturas, tanto quanto em oposição. Desligado da mente o habitual, mergulhei nos poderes da República e coletei um número sem fim de fontes para trabalhar. Ouvi e li todos os áudios e documentos relacionados ao tema dos arquivos disponibilizados pela Câmara dos Deputado e pelo Senado Federal, da era Lula e depois. Apenso ao final uma boa série desse material para que se mantenha o registro diante de tantas mudanças. Orgulhei-me de ter chegado ao fim proposto. Orgulhei-me quando recebi as avaliações de uma banca de alta qualificação. Orgulhei-me quando, aprovado, pude constatar que, após um processo, outros muitos se iniciavam.

    Abatida a democracia e a luta política pela festa midiática, pelo governo do vice, o pleito de 2018 conseguiu eleger um novo governo nos escombros do ultraconservadorismo e do fascismo, no lastro das fake news e no retorno de um projeto terra-planista, adoradora do globalismo e da síndrome do vira-lata. Estava aí a constatação de que, de fato, toda a pesquisa entrou para a história.

    Nas futuras leituras deste livro, espero que o leitor compreenda que qualquer política, sobretudo qualquer feição da política externa que aqui aprofundamos um pouco o conhecimento, é temporária. Qualquer avanço está disposto a ser estancado, assim como retrocessos são detidos em algum momento. Cabe ao pesquisador, ao professor, ao cidadão, investigar, ensinar e atuar para que esses pontos de inflexão, de desconexão, de revés sejam registrados, alterados e consolidados no curso de nossas vidas.

    Registro ainda como marcas do tempo que se impuseram para tudo mudar, foi a pandemia de Covid-19. Também, se não fosse ela, o livro já estaria pronto. E sobretudo, não teríamos mais de 555 mil mortos. Vidas tiradas, também, por despreparo e por desrespeito do governo. Pela conivência dos seus eleitores e pela sociedade como um todo, anestesiada e acovardada frente aos mandos e desmandos.

    Enfim, devo a realização final deste livro à pressão contínua com o coração de Edilson Junior e com a amizade de Larissa Rosevics, a quem desde já agradeço as belas palavras da orelha. Por eles, hoje, essa pesquisa ultrapassa o círculo da internet e se materializa.

    Agradeço à Ingrid Sarti, aqui pela primeira vez, retirando-a do lugar de professora e orientadora como ela insiste que eu não devo usar há tanto tempo. Ingrid, amiga, foi fundamental para o processo de crescimento profissional, mais talvez do que ela própria saiba. Apesar do nosso processo não ter sido também sem riscos – é possível que isso nem exista de verdade –, creio que tivemos longos e bons anos juntos de pesquisa e amizade, da qual espero continuar desfrutando no espaço de nossa existência.

    Não vou repetir os outros agradecimentos da tese, pois sempre acreditei que é o tipo de marca de um tempo. Resguardo-me a registrar apenas uma menção especial ao companheiro Roberto Saturnino Braga, com quem tive a honra de trabalhar por tanto tempo, que dentre tantas lições sempre ressaltou estudar e caminhar como os fundamentos para uma vida longa e feliz.

    Fiz uma revisão adicional ao que foi aprovado e depositado, não em conteúdo, mas em ajustes pontuais, além de correções. Ciente de que sempre encontraremos erros e questões, assumo todas as falhas e omissões, baseadas ademais na teimosia de manter certas estruturas de texto de linguagem pessoais. Assumo também a teimosia das intromissões feitas na bela revisão e diagramação da Fólio Digital, na figura de Isis Silveira, a cujo Conselho Editorial devo agradecer a aprovação para publicar.

    Glauber Cardoso Carvalho

    Rio de Janeiro, 01 de agosto de 2021

    Em meio à pandemia do coronavírus.

    Prefácio

    Ingrid Sarti

    ¹

    A política externa do governo Lula é frequentemente destacada por seu êxito no âmbito das políticas públicas implantadas pelos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016). Quando se considera a política externa brasileira desde a Constituição de 1988, o período Lula distingue-se pelos bem-sucedidos resultados na tentativa de promover a autonomia do país com vistas a um novo equilíbrio entre o Norte e o Sul.

    A PEB de então foi protagonista de uma estratégia de inserção do Brasil no sistema global que pretendia tanto a independência do centro do capitalismo rumo a um mundo mais próximo à multipolaridade, como evocava uma dimensão terceiro-mundista, fortalecendo assim o continente por meio da integração da América do Sul. Foram também emblemáticas as políticas sociais de combate à pobreza que se destacam no projeto Sul-Sul, cujo efeito mobilizador e transformador era ainda incipiente, quando interrompido pelo golpe de 2016.

    Um golpe, sabe-se, nunca é um raio caído no céu azul. É sempre urdido no tempo e seu principal responsável, o capitalismo financeiro, não costuma aparecer como protagonista do espetáculo. Compreende-se assim que a política externa chamada ativa e altiva, objeto de uma acirrada oposição dentre os entusiastas do neoliberalismo dominante nas elites brasileiras, sedimentou o golpe de Estado de 2016, que afastou a presidenta Dilma, registrando o momento de uma derrota do projeto autonomista regional e revelando uma estratégia agressiva de retomada da hegemonia do sistema.

    A partir de então – desde o início da gestão de Michel Temer e acentuadamente no atual governo Bolsonaro (desde 2018) –, o veloz desmonte das conquistas obtidas pelos governos do PT transformou o projeto autônomo desenvolvimentista e seus resultados em matéria de análise política historicamente identificada a um passado recente.

    O trabalho de Glauber, adaptação de sua tese de doutorado, soma-se à importante literatura que se dedicou a descrever e analisar as iniciativas de investimento no projeto de integração sul-americana e no fortalecimento das potências emergentes reunidas no BRICS no período 2003/2016. Estudos apontaram também as vulnerabilidades estruturais, como as dificuldades em superar o modelo agrário-exportador e a fragilidade das políticas de desenvolvimento industrial e proteção ao meio ambiente. Frisaram a importância da democracia como valor intrínseco aos projetos de governos progressistas da América do Sul, uma vez que, no progressismo do século XXI sul-americano, a democracia esteve vinculada às possibilidades de inventar um novo modelo econômico e social.

    Por sua formação, Glauber transita pela interdisciplinaridade da economia política internacional, da ciência política e das relações internacionais em criteriosa pesquisa sobre agentes e mecanismos do processo decisório na era Lula. Examina os procedimentos do Legislativo diante da tarefa de avaliar o processo de criação de instituições como a Unasul e o Banco do Sul, dois órgãos-chave para o êxito da integração sul-americana. O autor descreve a trajetória da proposta do Banco do Sul, que nas mãos de um parlamentar chegou e na gaveta ficou esquecida, sem resposta no Congresso Brasileiro. Com Glauber, aprende-se muito sobre o enredo pouco divulgado das tramitações do Legislativo que podem favorecer ou obstruir a validação de processos relevantes para o exercício da política externa, particularmente no caso de tratados internacionais ainda em fase de negociação.

    A política externa brasileira em disputa: agentes e mecanismos do processo decisório na era Lula é, pois, contribuição valiosa não só para o estudo dos mecanismos de interação entre os Poderes na formulação da política externa brasileira, como um convite à reflexão para a análise das experiências políticas de partidos na institucionalidade brasileira, em suas dimensões doméstica e internacional, em diferentes tempos. Uma janela aberta para compreensão desse "passado presente" que permanece obra inacabada quando se pretende entender o panorama global de fragilidade da democracia frente aos ditames do neoliberalismo e à ascensão da extrema direita neste século XXI.

    Em que pese vasta literatura disponível, no caso brasileiro, a pergunta que ainda se impõe é a de como o país emergiu de uma primavera democrática com a liderança mundial do combate à fome para concluir a segunda década em plena instabilidade provocada por um golpe seguido de um governo autoritário e tendência genocida, a despeito de democraticamente eleito.

    Rio de Janeiro, junho de 2020

    1 Professora titular de Ciência Política. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS). Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

    A consciência da própria personalidade internacional modula a maneira pela qual cada país deseja inserir-se no mundo. Baseia-se na estimativa realista ou não das potencialidades nacionais e visa atingir interesses concretos econômicos ou políticos. Por outro lado, a visão do país no mundo deve também agir no sentido de reexaminar o valor real desses interesses em termos de custos e benefícios. Em algumas ocasiões, pode até levar ao abandono definitivo do que antes parecia vital e irrenunciável.

    rubens ricupero.

    A diplomacia na construção do Brasil. 2017. p. 28.

    PALÁCIO DO ITAMARATY – Ministério das Relações Exteriores – Brasília – Tirada em 23 de março de 2018. Flirck Gabriel Fernandes – CC Attribution-ShareAlike 2.0 Generic (CC BY-SA 2.0). Disponível em: https://bit.ly/3AivjvB. Acesso em: Jul. 2021.

    Introdução

    O caminho da disputa

    Não é fácil determinar o alcance da política internacional, na medida em que ela se distinga da política externa do Brasil. No terreno político, os limites são sempre fluidos e nunca se apresentam com rigor e nitidez. Na realidade, a ação exterior é uma só, apenas com aspectos e projeções diferentes. A política externa e a política internacional se ajustam e se completam, tal como, no campo específico da segurança, a tática e a estratégia.

    Embaixador Araújo Castro, 1978²

    A política externa brasileira (PEB) do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) foi protagonista de um processo de integração regional sul-americana ancorado na busca do desenvolvimento e da autonomia do continente e que assumiu a característica de resistência ao processo de globalização neoliberal no século XXI. A retomada do conceito de desenvolvimento pelo Brasil que havia sido abandonado e substituído pela ideia politicamente neutra de prosperidade³ encontrou convergência nos países sul-americanos e fez com que a integração ganhasse ressonância também neles. O esgotamento econômico e social e a resistência ao modelo neoliberal levaram às crises que ocorreram no final do século e, como resultado das eleições presidenciais, houve uma renovação dos quadros Executivos, consagrando-se programas favoráveis aos processos de integração.⁴ Uma virada de página ocorreu na história da América do Sul e também de rompimento do consenso vigente na década de 1990.⁵ A subida ao poder de governos de centro-esquerda⁶ se traduziu no amplo estímulo às políticas de inclusão social que passaram a nortear os projetos nacionais e de impulsão da integração regional.

    No caso brasileiro, o projeto de uma política externa levado a cabo por um governo de corte nacionalista, conforme destaca Gonçalves,⁷ ancorada na integração regional autônoma e no desenvolvimento social, foi um profundo divisor de águas nas propostas políticas que se enfrentaram reiteradamente desde 2003. Esse enfrentamento e as dificuldades que surgiram estão também relacionados às mudanças sociais e econômicas promovidas internamente, abrangentes o suficiente para incluir a sociedade em um novo ciclo de consumo, emprego, aumento da renda real, ampliação do acesso a bens comuns e promoção do bem-estar e da industrialização nacional visando à redução das desigualdades socioeconômicas.

    Nesse contexto, foi notável a promoção da integração sul-americana como estratégia política, igualmente a aproximação a outros países em desenvolvimento. O destaque, dentre as muitas iniciativas,⁸ foi o fortalecimento do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a rejeição e derrota do projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), que reforçou a contraposição aos desmandos políticos dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que propôs emancipação frente aos enlaces ditados pelas organizações internacionais de cunho financeiro, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), ou de cunho político, como a Organização dos Estados Americanos (OEA). Além disso, no campo educacional, foi importante a ação brasileira de criação da Universidade da Integração Latino-Americana (Unila).⁹ A isso se somam as iniciativas do Ibas, dos Brics, a expansão da relação com a África e com o Oriente Médio. O processo de ampliação das relações internacionais, sobretudo no Sul global, passou, dessa forma, a ser objeto de crescente debate interno, perceptível no aumento do interesse sobre o tema nas eleições nacionais para cargos do Executivo e do Legislativo, e também na multiplicação de pesquisas, fóruns e cursos da área internacional.

    É justamente a observação desse interesse nas questões de política internacional no Legislativo que nos levou a analisar a dinâmica entre o Poder Executivo e o Congresso Nacional brasileiro no campo da política externa, mais especificamente na tramitação de dois processos que dizem respeito à integração sul-americana no governo Lula: a criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a proposta do Banco do Sul. A hipótese é que o Legislativo buscou ampliar seu espaço de atuação e competência em decisões internacionais, o que teria resultado na imposição de limitações e constrangimentos às negociações do Executivo nesse campo, e que afetaram especificamente essas duas iniciativas.

    A Unasul e o Banco do Sul são os dois casos mais emblemáticos dentre as propostas do período, cujas realizações aprofundariam de forma real o processo de negociação da integração sul-americana dentro do projeto de desenvolvimento autonomista. No que diz respeito ao Brasil, a ratificação para criação dessas instituições precisou também da aprovação do Congresso Nacional, e nessa esfera contou com uma ação interessada e questionadora que difere das interpretações correntes que indicam um processo de delegação de decisão ao Executivo ou apontam um desinteresse em temas internacionais.¹⁰

    Assim, este livro se volta para a análise do processo decisório dentro da política externa brasileira com relação aos seus agentes, competências e mecanismos disponíveis para atuação, não só no Executivo como no Legislativo. Formulada pelo Poder Executivo, capitaneada pelo presidente Lula, consideramos que a PEB do período seguiu uma proposta amadurecida pelo Partido dos Trabalhadores (PT) por quatro pleitos e foi executada por uma assessoria condizente com uma proposta específica de política externa para a integração. Como ministro das Relações Exteriores (MRE), o embaixador Celso Amorim, por exemplo, já havia proposto a formação de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (Alcsa) na década de 1990. O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que foi nomeado como secretário-geral do MRE, posicionava-se fortemente contra a Alca e em defesa de um Mercosul ampliado. Ao mesmo tempo, Lula convidou não um diplomata, mas um professor, intelectual e fundador do PT, Marco Aurélio Garcia, para ser seu assessor de Relações Internacionais, este que defendia uma atuação autônoma à potência hegemônica e o fortalecimento político da América do Sul.¹¹

    O objeto de estudo é, portanto, a tramitação das propostas de criação dos dois organismos sul-americanos no âmbito do Congresso Brasileiro e seu confronto com a proposta vinda do Executivo após o término da negociação internacional. Cabe notar desde já que a Unasul e o Banco do Sul se configuram como duas vertentes do projeto de integração sul-americana ampliada, uma representando um viés político, dentro de uma instituição de organização flexível, e outra representando o viés econômico e financeiro, buscando romper com a vulnerabilidade externa na demanda por financiamento.

    A título de introdução, a Unasul foi uma proposta brasileira do governo Lula que atualizou a antiga proposta da Alcsa e adotou a Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) para formar um processo fundado no entendimento político. É caracterizada como um espaço de diálogo e de concertação. Foi um processo original, como já analisamos em outra ocasião,¹² expressado na criação de conselhos setoriais que visavam ao aprofundamento do conhecimento e pretendiam tornar-se uma plataforma para negociações em múltiplos campos temáticos. A ideia de uma união, tal como consolidada, tem origem na redemocratização do Cone Sul, e a base da integração de todo o continente foi o fortalecimento do Mercosul.¹³ A origem da Unasul está nos encontros entre os mandatários da região, tendo alcançado sua formalização com o Tratado de Brasília, em 2008. Seguindo os procedimentos de incorporação de atos internacionais, Lula enviou a proposta para o Congresso Nacional naquele ano. Esse movimento foi seguido por um intenso debate depois de muitas obstruções dentro da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, tendo sido aprovado em 2011. Ainda que o tratado tenha sido promulgado pela presidenta Dilma Rousseff em 2012, notamos que a organização já funcionava e já tinha alcançado resultados em momentos de crise política na região.

    Já os antecedentes do Banco do Sul, proposta do presidente venezuelano Hugo Chávez, apontam que o conceito seguia a entidade financeira proposta por uma comissão internacional da ONU – Comissão do Sul – na década de 1980,¹⁴ que procurou identificar as potencialidades e vulnerabilidades dos países do Sul. A ideia da instituição foi renovada nos encontros presidenciais que caminhavam para a aproximação de toda a América do Sul a partir do processo de ampliação do Mercosul, no qual acederia a Venezuela – outro fato que contou com a objeção concreta do Legislativo brasileiro, que baseou sua argumentação no que consideram um comportamento não democrático de Chávez.¹⁵ A concretização da iniciativa, antes mesmo da Unasul, ocorreu pela ata de fundação do Banco, em 2007, apesar de seu convênio constitutivo ter sido assinado em 2009 por Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela.

    É possível verificar que o projeto deste banco apresentou duas diferentes questões. A primeira é que as principais negociações não foram realizadas pelo Itamaraty, mas pelo Ministério da Fazenda. A segunda é que o convênio foi enviado para o Congresso Nacional por Dilma em ٢٠١٢ e que, depois de diversas aprovações em comissões, o projeto simplesmente saiu da pauta de discussão da Câmara. Sua importância em termos de possibilidade de promoção da autonomia financeira regional se contrasta com os debates que se seguiram naquela instância, que dão conta de parlamentares desconexos com o momento e as propostas da integração sul-americana, afoitos pela crise internacional e discordantes dos propósitos do Banco de prover a região com alternativas de financiamento de projetos de desenvolvimento.

    Partindo do exposto acima, estruturamos o livro em três capítulos. No primeiro, introduzimos uma base histórico-conceitual sobre desenvolvimento e autonomia no projeto de PEB, apoiados em pesquisas que mostram a participação de múltiplos atores dentro do Estado, dos quais enfatizaremos a interação entre os Poderes Executivo e Legislativo.

    O segundo capítulo busca localizar as ideias da integração sul-americana dentro da PEB de Lula; para isso, voltamos a análise para as propostas históricas do PT e para as personagens do processo decisório, citadas acima, como instâncias internas do Poder Executivo. Também salientamos as mudanças realizadas em termos de estrutura, que enfatizam um movimento de reforço no projeto de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, contrastamos as noções de ação do MRE apresentando as competências internacionais de outros órgãos do Executivo e das possibilidades de agência do Poder Legislativo em ações que visam aumentar a ingerência deste na realização de tratados internacionais ainda em sua fase de negociação.

    É no terceiro capítulo que o objetivo desse trabalho se desenvolve precisamente na análise da tramitação da Unasul e do Banco do Sul, do Executivo ao Congresso brasileiro. Para recomposição dessa narrativa, utilizamos os arquivos públicos dos poderes da República para extração das fontes e registros históricos. A construção das confusas idas e vindas do debate da integração a partir das fichas de tramitação dos projetos para a incorporação legal no ordenamento brasileiro, ainda que extensa em seu conjunto, é inédita. Na análise do material, buscaremos identificar a atuação dos envolvidos e a possível construção de uma obstrução política do Legislativo que expressa também a motivação de ampliação da participação em política externa.

    2 CASTRO, Araújo. O pensamento de Araújo Castro. In: BRIGAGÃO, Clóvis; FERNANDES, Fernanda (org.). Diplomacia brasileira para a paz. Brasília: Funag, 2012 [1978]. p. 96.

    3 GONÇALVES, Williams. O Mercosul e a questão do desenvolvimento regional. In: RESENDE, Erica; MALLMAN, Maria Izabel. Mercosul 21 anos: maioridade ou imaturidade? Curitiba: Appris, 2013. p. 51.

    4 SADER, Emir. A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana. São Paulo: Boitempo, 2009. p. 66.

    5 GONÇALVES, Williams. A inserção do Brasil na América do Sul. Oikos, v. 10, n. 2, p. 133-149, 2011.

    6 Esse movimento tomou a maior parte dos países da América do Sul, como a Argentina, com Néstor Kirchner (2003-2007) e Cristina Kirchner (2007-2015); a Bolívia, com Evo Morales (2006-); o Brasil, com Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016); o Chile, com Michelle Bachelet (2006-2010/2014-2018) e Sebastián Piñera (2010-2014); o Equador, com Rafael Correa (2007-2017); o Paraguai, com Nicanor Duarte (2003-2008) e Fernando Lugo (2008-2012); o Uruguai, com Tabaré Vázquez (2005-2010) e José Mujica (2010-2015); e a Venezuela, com Hugo Chávez (1999-2013) e Nicolás Maduro (2013-).

    7 GONÇALVES, Williams. O Mercosul e a questão do desenvolvimento regional. 2013. Op. cit., p. 59.

    8 Essa reinserção global do Brasil, resumida conceitualmente como a política externa ativa e altiva, atuou fortemente com sucesso em outras áreas, como na liderança do G-20 nas negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Doha; na influência para a implementação da Cúpula contra a Pobreza e a Fome; na consolidação do G-4, formado pelo Brasil, Alemanha, Índia e Japão para a reforma da Organização das Nações Unidas (ONU), sobretudo no que dizia respeito ao aumento da representatividade do Conselho de Segurança; nas participações na prevenção de conflitos e no comando da força de paz no Haiti – Minustah; na aproximação com o Oriente Médio e com a África; na formação do Fórum Ibas – Índia Brasil e África do Sul e dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Cf. AMORIM, Celso. Política externa do Governo Lula: os dois primeiros anos. Análise de conjuntura, Rio de Janeiro, Observatório de Política Sul-Americana/Iuperj, n. 4, 4 mar. 2005. Disponível em: http://bit.ly/2FLm2QH. Acesso em: 30 jan. 2018.

    9 Sobre o assunto ver: ROSEVICS, Larissa. O Mercosul Educacional e a criação da Unila no início do século

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