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Estrelas de couro: A estética do cangaço
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Estrelas de couro: A estética do cangaço
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Estrelas de couro: A estética do cangaço

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O fenômeno do Cangaço, que tem sido fonte inesgotável de inspiração para artistas dos mais diversos gêneros — da Literatura ao Cinema, do Teatro às Artes Plásticas — tanto na vertente erudita quanto na popular, ganha neste livro, agora em quarta edição, um estudo aprofundado de sua estética, exacerbada nos trajes e equipamentos dos cangaceiros. Anéis, medalhas, lenços coloridos, bornais bordados, chapéus de couro enfeitados com estrelas e moedas — tudo se coaduna com o espírito dionisíaco de dança e de festa dos espetáculos populares nordestinos e compõe uma estética peculiar, rica e original, minuciosamente estudada por Frederico Pernambucano de Mello.
LanguagePortuguês
PublisherCepe editora
Release dateApr 13, 2022
ISBN9788578589028
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    Estrelas de couro - Frederico Pernambucano de Mello

    Prefácio

    Foi no início da década de 1970 que conheci pessoalmente Frederico Pernambucano de Mello e travei contato com os primeiros resultados de suas pesquisas e reflexões sobre o Cangaço — tema que nos fascina a ambos e que é, a meu ver, o maior responsável pela sedução que o sertão nordestino vem exercendo, por motivos diversos e desde o início do século XX, sobre várias gerações de escritores, sociólogos, historiadores e artistas brasileiros, de todas as regiões do país. Em 1973, em um artigo que publiquei no extinto Jornal da Semana, do Recife, a propósito do romance Sem lei nem rei , de Maximiano Campos — escritor nascido no Recife, de estirpe da Zona da Mata pernambucana e das casas de engenho, mas cujo romance gira em torno do Cangaço, da caatinga e das casas de fazendas sertanejas — fiz referência ao trabalho de Frederico Pernambucano nos seguintes termos:

    Ao tempo em que apareceu Sem lei nem rei, eu ainda não conhecia Frederico Pernambucano, um dos maiores conhecedores do Cangaço com quem já tive oportunidade de conversar. Não conhecia, portanto, sua teoria a respeito da personalidade dos cangaceiros, teoria que procura explicar a psicologia desse nosso herói extraviado através de dois polos principais: o orgulho e aquilo que Frederico Pernambucano chama de o escudo ético. Com a franqueza e a ausência de inveja com que procuro me pautar, digo que, sem sombra de dúvida, a teoria de Frederico Pernambucano — que eu espero ver um dia colocada por ele em livro — foi a única que, até o dia de hoje, me pareceu convincente: foi a única que explicou a mim próprio os sentimentos contraditórios de admiração e repulsa que sinto diante dos cangaceiros.

    (Jornal da Semana, Recife, 24 a 30 de junho de 1973)

    O meu desejo de ver a teoria de Frederico Pernambucano em livro se realizaria em 1985, com a publicação do seu admirável Guerreiros do sol: Violência e banditismo no Nordeste do Brasil, livro que se tornou um clássico da historiografia do Cangaço. Trata-se, de fato, de um livro de qualidades incomuns, ao qual tenho voltado de vez em quando para relê-lo e sentir o mesmo impacto, a mesma força que ele me transmitiu na primeira leitura — sem que eu tenha até hoje compreendido bem, diga-se de passagem e sem desrespeito à memória de Gilberto Freyre, a afirmação que este faz em seu erudito prefácio, quando aponta as lições que Frederico teria aprendido com os romancistas ingleses.

    Tendo passado toda a minha infância e parte da adolescência no sertão da Paraíba, entre os anos de 1928 e 1942, foi desde cedo que entrei em contato com o mundo estranho dos cangaceiros, para fazer-me valer da expressão de Estácio de Lima. Menino ainda, antes mesmo de ter aprendido a ler, ouvia casos e histórias envolvendo os cangaceiros, suas incursões pelas vilas e fazendas e seus atos de heroísmo e crueldade, narrados por meus familiares e pelo povo sertanejo, por agregados e trabalhadores das fazendas do meu Pai e dos meus tios. Depois, na feira de Taperoá, entrava em contato com os cantadores e poetas populares, através dos quais muitas daquelas histórias reais eram transfiguradas na primeira poesia de natureza épica que conheci em minha vida.

    Com o passar do tempo, naturalmente, à medida que eu crescia e abria os olhos para o mundo, tudo aquilo foi se identificando com o meu universo familiar e pessoal. Eu tomava consciência, por exemplo, de que meu Pai, João Suassuna, que governara a Paraíba de 1924 a 1928, e que, então deputado federal, tombara assassinado em 1930, numa rua movimentada do centro do Rio de Janeiro, naquele que até mesmo um dos seus adversários políticos — José Américo de Almeida — considerou o mais monstruoso dos atentados, foi, ao longo do seu mandato de Governador — ou de Presidente, como se dizia no tempo —, incansável na luta contra o Cangaço, tendo sido o grande responsável pelo fim dos ataques e incursões dos bandoleiros em terras paraibanas. Com o aumento considerável no efetivo da força policial, reforço no armamento, adoção de uniforme mais condizente com as condições ecológicas da caatinga e a criação de tropas fora de linha, a Paraíba, durante o governo de João Suassuna — que contava com o apoio incondicional do coronel José Pereira, seu correligionário e líder político da cidade de Princesa — passou inclusive a colaborar de modo efetivo com outros estados nordestinos na luta contra o Cangaço, tendo as volantes paraibanas ido em auxílio de municípios de Pernambuco, do Ceará e de Alagoas. Foi, aliás, no município de Flores, em Pernambuco, lutando contra uma volante da Paraíba, que o bando de Lampião sofreu, em 1925, uma de suas maiores baixas — a morte de Levino Ferreira, um dos irmãos do chefe. De maneira que é com imenso orgulho que ouço, ainda hoje, o repente popular:

    Lampião acovardou-se

    com a sua cabroeira.

    Não entra na Paraíba

    com medo de Zé Pereira:

    o doutor João Suassuna

    mandou dar-lhe uma carreira.

    Que se entenda, então, que quando afirmo a minha admiração pelos cangaceiros, fazendo a sua exaltação enquanto figuras romanescas e de expressão do Nordeste, ou reconhecendo a coragem da sua vida épica e desgarrada, não estou, de maneira nenhuma, fechando os olhos para o fato de que eram também bandidos impiedosos, que sacrificavam vidas de pessoas indefesas e pacatas da forma a mais brutal possível — e creio que isso tenha ficado claro naquele artigo há pouco citado, quando falo num sentimento contraditório de admiração e repulsa.

    Mas, de fato, não há como negar o fato de que o cangaceiro não era um bandido comum. Sem entrar em detalhes que identificariam tipos de Cangaço dentro do Cangaço, o cangaceiro era um guerreiro extraviado no tempo, com sentimentos de honra e lealdade fora dos padrões normais, às vezes somente compreendidos no seio do seu próprio grupo. Como já afirmei em outra oportunidade, creio sim que somente quem estuda o fenômeno do Cangaço com espírito sectário pode se extremar na admiração sem reservas ou na condenação total dos cangaceiros, vendo-os ora como reivindicadores sociais, por um lado, ora como simples bandidos, no sentido estritamente jurídico do termo, por outro.

    A aura de epopeia que indiscutivelmente o envolve tem feito do Cangaço, ao longo do tempo, fonte inesgotável de inspiração para artistas dos mais diversos gêneros — da Literatura ao Cinema, do Teatro às Artes Plásticas — tanto na vertente erudita quanto na popular. E se há no Cangaço um elemento épico, este é ainda exacerbado pelos trajes e equipagem dos cangaceiros, com os seus anéis e medalhas, seus lenços coloridos, seus bornais cheios de bordaduras, os chapéus de couro enfeitados com estrelas e moedas — tudo isso que se coaduna perfeitamente com o espírito dionisíaco de dança e de festa dos nossos espetáculos populares e compõe uma estética peculiar, rica e original, agora minuciosamente estudada por Frederico Pernambucano neste seu novo trabalho, que tenho a honra de prefaciar. Como bem afirmou Carlos Newton Júnior, em um dos poemas do seu livro Canudos, trata-se, de fato, de uma

    Estética orgânica, estética

    de organismo, de vida.

    Contrária ao branco, ao cinza,

    à morte descolorida.

    Ora: se todo prefaciador é de certo modo suspeito em seus elogios, devo confessar que, no meu caso, a suspeição aumenta ainda mais, pois vejo que eu e Frederico Pernambucano concordamos em quase tudo o que diz respeito ao Cangaço. Além disso, Frederico encontra frases e expressões precisas e de grande efeito poético para definir as suas ideias, sempre ricas e cheias de sugestões. Para dizer, por exemplo, aquilo que afirmei há pouco, no tocante ao fato de que os cangaceiros não eram bandidos comuns, afirma Frederico que eles eram criminosos na epiderme e irredentos no mais fundo da carne. Outra expressão muito bem conseguida é a blindagem mística que Frederico identifica a certa funcionalidade dos trajes dos cangaceiros, pela profusão de signos de defesa e rebate que eles usavam como adornos.

    De maneira que, se tivessem sido outras as minhas inclinações no campo das Letras; se o destino e a vida tivessem me direcionado, em algum momento, não para a Beleza da Literatura, mas para a Verdade das ciências — da História, da Sociologia ou da Antropologia; se a enigmática roda da Fortuna tivesse me lançado em outro palco que não o do Picadeiro de Circo onde exerço, até hoje, ainda animoso e cheio de esperanças, as minhas artes de Palhaço frustrado, de Cantador sem repentes e de Professor; não seria outro, senão este Estrelas de couro, de Frederico Pernambucano de Mello, o livro que eu gostaria de ter escrito.

    Ariano Suassuna

    Recife, 15 de março de 2010

    O regresso da asa-branca, Givanildo, Acervo Fundação Joaquim Nabuco, Centro de História Brasileira, Recife, Brasil

    Cangaceiro não vive só de briga. Lampião sabia tocar uma gaita de oito baixos. E seus homens gostavam de dançar. Havia preferência pelos enfeites de ouro. Muitos levavam moedas esterlinas no chapéu. Ah, era bonito. E o perfume, então! Todos usavam. E não economizavam.

    Cangaceiro Balão, Realidade, n. 92, ano VIII, nov. 1973, p. 46.

    Seria de recomendar-se a proibição de fardamentos exóticos, de berloques, estrelas, punhais alongados e outros exageros notoriamente conhecidos. A impressão se faz no cérebro rude.

    E à primeira oportunidade, o chapéu de couro cobre a testa e o rifle pende a tiracolo.

    Relatório da Comissão Acadêmica Coronel Lucena ao interventor federal de Pernambuco, 17 de agosto de 1938, Caderno Acadêmico, n. 4, set. 1942, p. 103.

    Detalhe do mapa Terra Brasilis, do Atlas Miller, 1515–1519, Lopo Homem (com Pedro e Jorge Reinel), manuscrito iluminado sobre pergaminho, 41,5 x 59 cm. Biblioteca Nacional de Paris, França

    Foi depois da despedida solene da Faculdade de Direito do Recife, com a formação superior estralando de nova, mas de pouco fascínio sobre nosso projeto de vida então em esboço avançado, que procuramos a Fundação Joaquim Nabuco, também no Recife, na esperança de engajar na equipe que Gilberto Freyre formara em 1949, e que vinha reescrevendo o passado da região Nordeste, com base em pesquisas originais, desde quando finalmente se instalara, no começo dos anos 1950. Fontes quanto possível de primeira mão, calçadas por bibliografia consistente. O passado era o que nos interessava em caráter pessoal, embora seja de justiça registrar que a Casa também estudava o presente e ia além: desenhava futuros, concebendo políticas públicas vincadas pela criatividade. Uma instituição de ciências sociais minimamente burocrática, sensível ao trinômio gilbertiano região-tradição-modernidade , em uma palavra. Por ela tinham passado, não havia muito, um José Antônio Gonsalves de Mello, maior autoridade universal sobre domínio holandês no Brasil; um René Ribeiro, antropólogo a quem se devem estudos pioneiros sobre o misticismo e o messianismo, tão à flor da pele em nossa cultura; um Estêvão Pinto, responsável pela recuperação da memória da saga do trem de ferro pelo setentrião brasileiro; um estatístico do porte de Antônio Carolino Gonçalves; um filósofo da educação como Paulo Maciel. E ali ainda se encontravam geógrafos de obra vivaz como Mauro Mota, Gilberto Osório de Andrade, Mário Lacerda de Mello e Raquel Caldas Lins, o primeiro também — e sobretudo — poeta, a quem a Academia Brasileira de Letras soube acolher e celebrar, juntando-se a estes, vindo da Universidade Federal de Pernambuco, o também historiador Manuel Correia de Andrade; um sociólogo de gabinete e de rua como Renato Carneiro Campos, a revelar em livro o que chamou de ideologia dos poetas populares da região; um psicólogo social como Sylvio Rabelo, dos melhores biógrafos de Euclides da Cunha até hoje, autor também de estudo de consideração obrigatória sobre os artesãos sertanejos, à frente os tantos que vicejavam derredor do padre Cícero do Juazeiro; um folclorista e etnógrafo como Mário Souto Maior; um educador provado como Carlos Maciel; um bibliólogo e humanista da sensibilidade de Edson Nery da Fonseca. Sem esquecer valores jovens, no afã da construção de carreiras que se afirmariam no tempo, a exemplo do sociólogo Sebastião Vilanova, do antropólogo Roberto Motta, do ecólogo Clóvis Cavalcanti, do cientista político Joaquim de Arruda Falcão, do estatístico Luiz Paulo de Castro, dos educadores Fernando Gonçalves, Graziela Peregrino, Geruza Gomes, Creuza Aragão e Miriam Brindeiro, das bibliotecárias Edilma Coutinho, Teresa Cristina Dantas e Lúcia Gaspar, do romancista Raimundo Carrero, do ficcionista e poeta Maximiano Campos, dos administradores, bons governantes, Fernando Freyre e Rubens de Souza, dos economistas Carlos França e Sérgio Guerra — este, a se fixar depois, com sucesso, na política partidária — dos jornalistas Homero Fonseca e Leonardo Silva, dos poetas e bons pesquisadores de gabinete Jaci Bezerra, Alberto Cunha Melo e Paulo Gustavo, de juristas do saber e da experiência de um Nilzardo Carneiro Leão, um Lucas Suassuna, um Edgar Matos, um Manuel Cavalcanti. Por fim, entre os juveníssimos, não se percam os nomes dos auxiliares Anco Márcio Tenório Vieira e João Alfredo dos Anjos, talentos que viriam a se firmar na docência universitária e na diplomacia de carreira, respectivamente. Salvo os mais jovens, todos sob a regência convincente de Gilberto Freyre, a quem jamais faltava tempo, no mínimo, para o cavaco de fim de tarde com os auxiliares, apesar dos compromissos intermináveis no Brasil e no estrangeiro, ocasião em que eram passadas, sem ranço professoral qualquer, as orientações necessárias àquele fundo de unidade dos produtos da Casa. Nunca desvendamos o domínio de Freyre sobre o tempo, de que se ocupou em tantos estudos e sobre que parecia possuir comando de bruxo…

    Foi então, numa convocação de 1972, que ingressamos naquele centro de estudos de tanta ressonância para a região, a ponto de ser chamado de Segunda Escola do Recife. Ali, com acesso livre ao quadro de profissionais que tanto admirávamos e à biblioteca especializada, procuramos desenvolver as preocupações de anos verdes com aspectos da colonização do Nordeste do Brasil, de maneira particular os que dizem respeito às vertentes populares heroica, mágica e desenvolvimentista, atento ao modo por que a violência operou seus efeitos em cada etapa do processo.

    Particularmente sobre o heroico popular, enveredamos pelo estudo do universo de relações estabelecido pelas figuras do valentão, do cabra, do capanga, do pistoleiro, do jagunço e do cangaceiro — conceituações familiares a ouvidos nordestinos sobretudo de ontem — atuantes, em regra mas não exclusivamente, no meio rural, na longa fase cinzenta da transição privado-público quanto ao controle sobre a violência. Quanto ao monopólio desta pelo Estado.

    Para os livros que findaríamos por publicar sobre a matéria, no caso, o Guerreiros do sol: Violência e banditismo no Nordeste do Brasil, de 1985, enriquecido por prefácio de Gilberto Freyre, quarta edição revista lançada em 2004 pela Editora A Girafa, de São Paulo, tratado sobre a presença desses elementos na formação da sociedade rural da região, e Quem foi Lampião, de 1993, terceira edição em 1998 pela Stähli Edition, de Zurique, com braço ativo no mercado brasileiro até 2000, uma biografia compacta sobre a mais destacada figura do cangaço em qualquer tempo, valemo-nos do conceito jurídico de banditismo rural, combinado com o conceito de desviância e com certas agregações absorvidas da antropologia cultural.

    Ao tempo em que esses estudos foram sendo produzidos, com muitas viagens ao sertão para tomadas de depoimento de remanescentes das correrias do ciclo histórico do cangaço, não pudemos fugir da oportunidade de formar coleção privada que hoje, passados muitos anos de seu início tímido em 1984, e mesmo sem ter por si o ânimo de um colecionador apaixonado por esse tipo de ocupação — que nunca foi o nosso caso — impõe-se como a mais completa, rigorosa e rica dentre quantas existem no país sobre o assunto, tendo sido apresentada, em rompimento apropriado de longo ineditismo, na Mostra do Redescobrimento, da Fundação Bienal de São Paulo, no ano de 2000, no Parque do Ibirapuera, no âmbito do módulo Arte Popular Brasileira, seguindo depois para exposições menos aparatosas no Rio de Janeiro, no Espaço Correios; em Santiago do Chile, no Museu Nacional de Belas Artes; e em Cambridge, Inglaterra, no Museu Fitzwilliam, a conclusão do programa dando-se em dezembro de 2001.

    Para a mostra inaugural, no desempenho da curadoria que nos tinha sido entregue pela Associação Brasil 500 Anos, braço executivo da Fundação Bienal à época, estudamos cada uma das peças, de 1997 até a abertura a 23 de abril de 2000, conversando, sempre com proveito, com o curador geral, professor Nelson Aguilar, sobre o que íamos encontrando de significativo no acervo, de que são pontos de interesse as oito questões que nos permitimos avançar aqui, à guisa de aperitivo ao que se irá examinar nos capítulos à frente:

    1 — que se trata de peças de raridade extrema, por conta da repressão sofrida por seus usuários nos períodos colonial, imperial e republicano, unívocos, os três sistemas de governo, no afã de abater os sinais de rebeldia que imantavam esses troféus a olhos oficiais, e relegando praticamente ao vazio as vitrines de possível museu sobre os movimentos sociais insurgentes de nossa história;

    2 — que configuram expressões da arte popular brasileira conhecida, como artefatos impregnados de uma simbólica afetada esteticamente por sistema de significados, atitudes e valores compartilhados em um dado tempo e lugar, consectários, portanto, do que somos como país mestiço situado no trópico: terra de muitas naturezas e de etnias variadas, capaz de fazer da aceitação possível da diferença o traço nacional de sua unidade. A busca do que essa arte insinua sem nunca dizer claramente, vestida de sutilezas como se apresenta de costume, nos aponta para a ancestralidade de uma Europa de linha ibérica e vai além, no recuo do tempo, por meio da filtragem que se processou ali das tradições do Mundo Antigo, todo esse insondável vindo a cumular em complexidade com a incorporação colonial dos sedimentos afronegro e ameríndio, para ficarmos apenas nos elementos de raiz. No âmbito de balizas assim abrangentes, o conteúdo flui nos traços de uma estética marcada pelo arcaísmo, de que se faz sinal mais forte a frontalidade sobranceira das figuras. É o mais que se tem como regra. E por esta caminham a mesa e a festa, o religioso e o profano, o seráfico e o fescenino, além da trepidação crescente que vem da fricção entre o rural e o urbano, em prejuízo do primeiro. Em extinção ou já extinto, segundo alguns. Há espaço para a crítica de costumes. Para o anonimato e para a assinatura. Para a afirmação de polos de produção local à volta de um mestre, com seus artífices, como para o produtor isolado. Um mundo ad libitum, enfim, não somente nesse ponto da organização dos ateliês senão no que diz respeito às cores, aos motivos, às técnicas ou à combinação destas, tudo confluindo para a formação do mosaico invariavelmente vivaz, colorido, buliçoso e barulhento da alma do povo brasileiro. As peças do cangaço não refogem desse quadro comum de referências, insista-se no registro;

    3 — que guardam ainda com a arte popular brasileira mais conhecida e estudada, a da cerâmica, a da cestaria, a da luminária, a da carranca e a do ex-voto, as características de serem produzidas para fruição no seio da comunidade de que brotam, e de resultarem de relação próxima ou remota do homem com a divindade;

    4 — que, diferentemente do que se passa com essas expressões de arte, emanam de circunstância de conflito sempre possível, com a perspectiva da morte violenta do usuário insinuando-se no cotidiano, o que as faz refertas de uma simbologia mística, exacerbada em profusão de signos de defesa e rebate, como costuma acontecer com grupos sociais sujeitos a constante risco de vida;

    5 — que são exemplos da arte de projeção do homem, de que falava Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala, para caracterizar uma arte brasileira autóctone que, ao contrário da arte de composição ou de copiagem que nos foi imposta pela educação colonial religiosa, não separaria a arte da vida, podendo o insurgente bater no peito e dizer: eu carrego comigo a minha arte, presente na aba de meu chapéu, na tampa e nas alças de meu bornal, nas minhas cartucheiras, coldres, talabartes, perneiras, luvas, cantis e até nas alpercatas. Nesse sentido, a arte do cangaceiro se faz janela de acesso ao mais profundo da arte brasileira própria da terra, identificada por Freyre;

    6 — que configuram arte de síntese, de sinais singulares pobres, por conhecidos imemorialmente, a exemplo do signo-de-salomão, da flor de lis, da cruz de malta, da estrela de oito pontas, do oito contínuo, dos florais variados, de oito, seis e quatro pétalas, mas de conjunto final inconfundível, rico e não repetitivo — revestindo o caráter de obra de síntese, portanto — apesar da convivência cotidiana estreita entre homens e mulheres de um mesmo bando, do despertar ao deitar, às voltas

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