Reflexões em Psicanálise: compreensões sobre o sujeito e o coletivo: Volume 1
By Luís Pierott and Laís Locatelli
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Reflexões em Psicanálise - Luís Pierott
O CONCEITO DE NARCISISMO À LUZ DA PSICANÁLISE: CONSIDERAÇÕES SOBRE O FILME HER
Patrick Deconto Pelicciolli
http://lattes.cnpq.br/8996599935089104
RESUMO: O presente artigo promove a discussão da obra cinematográfica Her
, utilizando a teoria psicanalítica enquanto instrumental para a fundamentação da análise. O romance futurista, produzido por Spike Jonze e lançado em 2013, permite ao espectador acompanhar a rotina do protagonista Theodore Twonbly e depara-se com cenas revelando um processo doloroso de luto após divórcio e o estabelecimento de relacionamento amoroso com um Sistema Operacional recém-lançado no mercado. As cenas da trama são articuladas com as bases conceituais propostas por Freud em seus artigos metapsicológicos, focando sobretudo no conceito de narcisismo e a constituição do Eu, explorando-os em sua amplitude teórica. Por fim, discute-se as implicações éticas dos avanços tecnológicos e seus desdobramentos nos processos de subjetivação, traçando paralelos com as experiências contemporâneas em um tempo hiperdigital.
Palavras-chave: Narcisismo; Psicanálise; Contemporaneidade.
INTRODUÇÃO
(...) Há em cada espécie de vida uma qualidade própria e um prazer peculiar, e quando se passa para outra vida, ainda que melhor, esse prazer peculiar é menos feliz, essa qualidade própria menos boa, deixam de existir, e há uma falta.
(Fernando Pessoa)
Her (Ela, em tradução livre) é o nono filme da carreira de Spike Jonze como diretor de cinema e foi lançado em 2013, sob forte expectativa, principalmente por trazer no seu elenco renomados atores, com especial destaque para Joaquin Phoenix, protagonista da obra, e Amy Adams, que naquele momento já contava com quatro indicações ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. O elenco ainda conta com Rooney Mara e Scarlett Johansson, que empresta sua voz para a personagem Samantha, o sistema operacional que fala ao ouvido do protagonista.
Na trama, acompanhamos a vida de Theodore Twonbly, escritor que vive um doloroso processo de divórcio. O filme exibe-nos um — nem tão distante — futuro, no qual a tecnologia ocupa cada espaço da vida humana, seja automatizando a iluminação da casa conforme cada hora do dia ou intermediando o orgasmo sexual através de um chat por áudio. Porém, por trás do romance futurista, o roteiro demonstra que nem mesmo a mais avançada tecnologia é capaz de regular a complexidade das relações humanas.
Tal cenário acima descrito concede campo fértil necessário para a entrada em cena de um novo sistema operacional, oferecido a Theodore como se fosse uma espécie de secretária eletrônica, contudo, incrementada por uma tecnologia de inteligência artificial, capaz de promover um tipo de interação bastante sofisticada com seu usuário. A despretensiosa adesão de Theodore ao sistema se tornaria o ponto de partida para uma intensa experiência relacional, cujos desdobramentos o protagonista não cogitava.
O filme, enquanto material base deste estudo, apresenta uma rica variedade de elementos pertinentes à vida contemporânea, com especial relevo ao uso da tecnologia como dispositivo de subjetivação. A psicanálise foi utilizada como ancoradouro para análise desta obra cinematográfica, visando aliar a ficção e a teoria, especificamente, com o conceito psicanalítico do narcisismo.
A ATUALIDADE FUTURISTA DE HER
Em meio à distopia tecnológica, Theodore vive um prolongado luto devido a seu doloroso divórcio, adiando constantemente a assinatura da oficialização da separação conjugal, cujo desenlace ocorreu há aproximadamente um ano. Sua apatia ante a vida salta aos olhos desde o início. Nos interstícios da vida ordinária de Theodore, há pausa para momentos em que se perde em nostalgia, suscitada pela lembrança dos tempos de alegria singela vividos ao lado de Catherine. Nessas horas se desnuda uma evidente ferida ainda não cicatrizada por Theodore, sinalizando-nos para um processo de luto, fruto ainda deste rompimento.
A vida de nosso infeliz protagonista é dividida entre dias de trabalho e solitárias noites jogando videogame, até que adquire um sistema operacional (SO) para seu computador, sendo este possuidor de inteligência artificial, evoluindo conforme as respostas que recebe do usuário. Quando topa entrar na brincadeira
do sistema operacional, Theodore ainda se encontrava submerso por uma cotidianidade entediante. Em seu trabalho – e esta é uma saborosa ironia lançada à mão por Spike Jonze –, Theodore atua como redator de cartas na empresa BeautifulHandWrittenLetters
. Tais cartas são encomendadas para serem endereçadas a pessoas queridas, de amigos para amigos, maridos para esposas, etc; Theodore acompanha alguns destes clientes há anos, a fim de aprimorar o potencial afetivo dessas cartas, que versam sobre universos íntimos de famílias e casais.
Alguns aspectos concernentes a esta sociedade futurista merecem ser destacados. O primeiro é a terceirização da escrita das cartas, geralmente de teor íntimo e afetivo, revelando- nos traços de um embotamento afetivo em grande escala, ao passo em que as demonstrações de carinho e discursos amorosos precisam ser contratadas, como se fosse uma prestação de serviços qualquer. O segundo é a aparente ausência de interações humanas em locais públicos, como na rua ou no metrô, onde os transeuntes passam falando com seus próprios equipamentos eletrônicos, aparentemente alheios ao cenário em que transitam. Individualismo? Fragilidade das relações sociais? Uso demasiado de tecnologias digitais? Estas parecem ser algumas questões que Her endereça ao telespectador, trazendo à tona problemáticas que não são de todo estranhas ao que vivemos na contemporaneidade.
Nosso solitário protagonista aparenta estar vivendo em um estado de anestesiamento e desencontro com o mundo externo. Não obstante esteja sofrendo as agruras do luto de seu casamento – cujos devaneios do tipo daydream parecem suscitar em Theodore reminiscências de uma conjugalidade que fora também dotada de momentos de alegria genuína, partilhada pela experiência do acordar junto em uma manhã qualquer, por exemplo –, acarretando num inevitável processo de reinvestimento narcísico — que opera o retorno dos investimentos libidinais para o Eu —, é notável que o protagonista consiga se conectar com a história de amor dos seus clientes e produzir textos recheados de uma afetividade que parece tão rarefeita para o sujeito enlutado. Podemos traçar assim um paralelo do processo de luto a uma intensa dor orgânica, demonstrado por Freud no texto em que introduz o conceito de narcisismo.
É algo sabido, e tomamos por evidente, que alguém que sofre de dor orgânica e más sensações abandona o interesse pelas coisas do mundo externo, na medida em que não dizem respeito ao seu sofrimento. Uma observação mais precisa mostra que ele também retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos, que cessa de amar enquanto sofre. [...] Diríamos então que o doente retira seus investimentos libidinais de volta para o Eu, enviando-os novamente para fora depois de curar-se. (FREUD, 2010, p. 25-26).
Assim como no caso de uma dor de dente, cujo teor aflitivo impede de nos conectarmos com o mundo à nossa volta até que a dor cesse, no caso do processo de luto, o sujeito neurótico se encontra debilitado na sua capacidade de investimento libidinal nos objetos. Não nos surpreende, portanto, que Theodore tenha relutado em marcar um encontro com outra mulher, e quando deste encontro uma centelha afetiva pareceu acender, ele tenha desertado imediatamente dessa experiência.
Vivenciando o processo de luto, Theodore evita assinar os papéis do divórcio como se isso representasse, concretamente, a separação do objeto, remetendo ao sentimento de desamparo proveniente dessa perda. De acordo com Freud (2010), o sujeito precisa vivenciar e desfazer os vínculos com o objeto perdido para que, futuramente, novos possam ser estabelecidos. Nesta situação, perde-se não somente o interesse pelo mundo externo, como o interesse libidinal dos objetos amorosos. O rompimento amoroso remonta ao narcisismo, ao passo em que os investimentos, anteriormente direcionados ao objeto, retornam ao eu. Freud utiliza a metáfora do protozoário, que estende e recolhe seus pseudópodes, como análoga aos investimentos realizados no objeto.
É, portanto, em meio a esse processo de retração da libido em direção ao eu, que Theodore faz o download do software e passa a interagir com seu novo sistema operacional, que, nesta etapa de instalação, seduz Theodore ao oferecer-lhe os privilégios de uma inteligência artificial compatível com suas características. Ou seja, existe aí uma oferta tentadora para o sujeito pouco disposto a encarar os dissabores provenientes do encontro entre humanos, demasiado humanos. A suposta não humanidade tecnológica apontaria para a concretização de uma das fantasias mais excitantes já concebidas pelo sujeito neurótico: a possibilidade de subjugar perversamente este outro, sem suscitar os perturbadores sentimentos de culpa, já que se trata de uma máquina destituída das suscetibilidades próprias da alma humana.
THEODORE E SUA BUSCA ERRÁTICA PELA COMPLETUDE
Durante as configurações das suas preferências no novo sistema, Theodore é surpreendido com a pergunta: "Como é a relação com sua mãe?". Surpreso, responde que a mãe não lhe dava muita atenção, e pouco caso fazia quando Theodore se punha a falar de si; contudo, sua fala nesse momento é interrompida pelo sistema, que finaliza suas configurações. Em que medida tal questão poderia influenciar o comportamento do Sistema Operacional (SO) para com Theodore? Este questionamento é um indicador do lugar que ela irá ocupar em sua vida.
Aparentemente inocente, este questionamento permite desvelar um caminho profundo na compreensão da constituição do sujeito. Para a psicanálise, como reafirma Lazzarini (2006), o Eu se constitui na relação com o outro. A autora salienta que, além de nascer em uma condição de desamparo, o bebê humano encontra-se em um estado de indiferenciação com a mãe. Para seu desenvolvimento, ele precisa do olhar do outro, bem como realizar uma série de identificações para alcançar o distanciamento da relação simbiótica com o objeto. Logo, o momento fundante do Eu se dá, então, pela unificação das pulsões até o momento desorganizadas
(LAZZARINI, 2006, p. 85). A criança avança do Eu ideal para a busca do ideal de Eu através da vivência de perda da posição idealizada no olhar dos pais. Conforme a autora, a angústia implica neste rompimento e traz a possibilidade da inscrição da alteridade. O que resultará deste processo é a constituição de uma subjetividade que estará marcada pela cultura em que está inserida.
Originalmente, Freud (2010) postula que todo ser humano possui dois objetos sexuais, sendo ele mesmo e o outro que lhe cuida (a mãe ou um substituto), cuja escolha decorre das primeiras vivências de satisfação. Posteriormente, ele abordará as duas formas de escolha objetal, narcísica ou anaclítica. Tais escolhas se dariam conforme o modelo dos objetos parentais e com as identificações ocorridas no período edípico, marcadas pela ambivalência presente em todo processo identificatório
. (LAZZARINI, 2006, p. 98)
Sendo assim, podemos afirmar a importância das primeiras relações objetais na constituição do sujeito, bem como as consequências futuras na vida deste. É possível teorizar que a resposta de Theodore poderia prover informações relevantes na forma como o SO deveria se comportar