Cartas de amor e ódio
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(...) Amar muito é um ato de imensa coragem! A coragem é o mais poderoso combustível na relação entre presente e futuro. A coragem é o presente enérgico, que caminha para o futuro com uma espada na mão.
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Cartas de amor e ódio - Gabriel de Brito Velho
Porto Alegre, 18 de abril de 2003
Rosamaria
A tristeza entrou em mim. E tornou-se logo imensa. Ela inicia quando saímos do shopping. Foi crescendo, crescendo… e quando teu táxi desapareceu, ela me surpreendeu pela intensidade e vastidão. Fiquei cravado na calçada por um bom tempo. Me senti perdido. Mas por quê?! me perguntei. Nada acabou! O jardim não se fechou para mim, ainda não! A rosa adorada foi severa, distante, mas não me expulsou. Luta por ela, persevera! O jardim das delícias
está vindo para ti, Gabriel, vindo do futuro! Bela é a rosa que vem do futuro! Sentiste nela o perfume de uma estrela. Um aroma do paraíso. Ela não mergulhará no passado! Continuará sempre, sempre, vindo do futuro. Sentiste por ela o imediato amor, o imediato e imperativo amor. Ela te dominou! Sim, em um instante, te capturou, cativou, dominou. Passou a ter sobre ti um poder terrível.
Vertiginoso e maravilhoso precipício é o instante do amor, quando surge como uma eclosão de eternidade. Espantoso precipício, torrente de fogo, abismo que devora. É a mais esplêndida loucura! Pouquíssimos vivem isso. Platão já falava que amor e loucura têm a mais íntima relação. Eles são suscitados por deuses, e os humanos, de que tais forças se apoderam, são os Diletos, os Eleitos… Goethe e Nietzsche os colocam acima da humanidade comum, acima do Herdenmensch
, o homem rebanho.
Há pessoas que, com gostosa e bela volúpia, se pegam
na boate Saudade. Com força, vigor, misturando seus corpos na busca sequiosa do gozo, esses devotos exacerbados do prazer sexual em sua maioria são tragados pelo vulcão da pura imediata feroz volúpia. Esse fogo terrível os devora e os torna eunucos para os tesouros da emoção não carnal, cuja deusa protetora é a irmã maravilhosa (mas muito independente e caprichosa…) do divino e torrencial Príapus, deus do sexo. E eles devem assim estar quase tão longe dos Diletos e Eleitos do Amor quanto as lamentáveis sombras religiosas apaixonadas por Cristo e pelo ódio e horror que Ele tinha ao sexo. E não menos do que os obcecados que se afogam na superfície do imediato, a vida banal e racional despreza e condena os Diletos e Eleitos do Amor. Para estes, o instante do amor é eclosão de eternidade.
Mas nada do que eu me dizia me reanimava! Eu estava submerso em tristeza, atolado em confusão. E meu monólogo agravava ainda mais a minha situação de Gabriel-sem-Rosa…
Graças a ti, eu tinha vivido em um estado-de-felicidade durante quase quarenta horas.
Foi, realmente, uma felicidade esplêndida. Tu me encheste de paraíso! Muito obrigado por essas quarenta horas! Eu queria eternizá-las. Mas o que tu disseste no shopping, e o tom em que falaste, rompeu esta beatitude. E agora não sei o que me espera. Estou perplexo, aturdido. As tuas ponderações quase me nocautearam. Agora já não sei para onde ir. Não sei como te amar. Não posso te tocar! Cristo dizia: Noli me tangere!
— Ninguém me toque!
. E tu aplicas isso justamente contra mim! Eu passo a te ver como uma Rosa bíblica intocável. Me comportarei doravante como teu sacerdote. Nossos encontros serão cerimônias religiosas, e não poderão ocorrer naquele viveiro obsceno dos mil arretos, que é o Saudade.
Mas, falando sério, nem em tempos atuais nem em tempos remotos me deparei com uma posição
como a tua: precisas fazer um longo estudo para ver se sentes algo por mim. Por enquanto só sentes que nada sentes
. E, ao longo dos anos, irás observando se, finalmente, sentes-que-sentes-que-sentes… Acontece que eu então já estarei tão velho, que não haverá nada para sentir, a não ser alguma prótese! Estou mesmo desconfiando, cheio de vergonha, que devo dar uma rude, vulgar interpretação à tua frase, tantas vezes repetida: que nada sentes
, isto é, como querendo me informar que eu, que eu… (ai, que vergonha!) pequei mortalmente contra o divino Príapus! Cometi pecado mortal contra a vida, a força, o vigor! Com murchidão, flacidez, respondi, com palidez de eunuco, ao desafio aguerrido dos teus seios e quadris palpitantes, à provocação atrevida do teu corpo belicoso e faminto, que se contorcia de revolta contra as tuas vontades de freira débil-mental, que se rebelava contra as tuas regras monásticas…
Mas eu não entrei em harmonia com essa desobediência maravilhosa da tua carne sôfrega, sequiosa, trêmula, de ninfa louca, tarada, essa rebeldia da tua pele ardente e o clamor ansioso das tuas grutas ávidas… Fui linear na minha submissão às tuas normas: Não me toca!
e Se me tocares, não me aperta!
. E Se me apertares, não me espeta!
. É que nós dançávamos, e algumas vezes, a despeito das interdições jansenistas, nossos corpos se tocaram e se colaram… E teus mandamentos arrogantes e puritanos, impertinentes e imbecis, associados à minha esporádica timidez sexual quando danço, ensejaram o crime hediondo de que falei acima, o pecado mortal contra Príapus, meu deus e meu senhor!
Estou me lembrando de duas canções em que aparece Rosa Maria
. Uma tu certamente conheces bem: Rosa Maria, vamos pular a fogueira, a noite está fria…
. Vem! Pula comigo! Se nos queimarmos um pouco, não será nada trágico… A outra canção é francesa, mais exatamente franco-suíça: Ô c’est elle la plus belle de tout le canton, Rose Marie!…
. Ah, é ela a mais bela de todo o cantão!
Canton
é cada um dos estados em que se divide a Suíça: Canton de Berna, Canton de Valais, etc. Infelizmente só me lembro desse trechinho da canção… Ela é tipicamente interiorana, country music
, própria do que tu chamas de interior do interior
. Eu ouvia muito essa canção entre meus 15 e 17 anos, relembrando o ano que tinha vivido em Genebra, na Suíça francesa, quando eu tinha 14 anos, mas sobretudo evocando, fantasiando situações campestres, bucólicas, especialmente um cenário de festa rural, que ocorria entre duas colinas de um verde estupendo: centenas de pessoas, cantando e gesticulando, homenageavam, extasiadas, uma esplêndida menina loira de uns 15 anos, Rose Marie. Essa cena se repetia sempre, sempre, e me causava uma imensa alegria, um jorro de felicidade. Eu ouvi muitíssimas vezes essa música justamente para provocar esse estado de exaltação e deleite. A esplêndida menina loira, Rose Marie, foi, na época, um dos meus principais temas
solitários de devaneio e gozo intelectual. Foi justamente nessa fase que se agigantou em mim a perigosa propensão à fantasia, à fruição solitária, à curtição sem fim, curtição nos atos da pura e solta imaginação; propensão a me instalar no jardim maravilhoso da exaltação e do deleite. Esse solitário jardim das delícias
busca avidamente reter dentro dele a fruição suculenta, busca capturar e aprisionar as próprias fontes de êxtase, e me afasta perigosamente da realidade social e, o que é mais trágico, do corpo celestial da mulher.
Imensa ansiedade e colossal expectativa são a paisagem assídua da minha mente quando decido sair dos meus jardins monacais e rumar para o teu corpo. Por que insisto tanto no teu corpo?! Vou responder com franqueza: quase não consegui ver vida intelectual e cultural em ti!