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Os Intelectuais das Ciências Humanas e a Religiosidade: secularização, religiosidade e intelectuais das Humanidades na Amazônia
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Os Intelectuais das Ciências Humanas e a Religiosidade: secularização, religiosidade e intelectuais das Humanidades na Amazônia
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Os Intelectuais das Ciências Humanas e a Religiosidade: secularização, religiosidade e intelectuais das Humanidades na Amazônia

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Este livro estuda o modo pelo qual ocorrem as relações entre religiosidade e a condição de intelectual das Ciências Humanas na Amazônia. Neste intuito, usando informações históricas e estatísticas, faz, primeiramente, a desconstrução da ideia do senso comum, sob a qual julga-se que o saber das Ciências Humanas seria causa quase implacável de ateísmo ou agnosticismo para aqueles que dele tomam parte. Após isso, dialogando com autores como Max Weber, Georg Simmel e Micea Eliade, constrói uma reflexão histórica e teórica acerca das relações entre fé e razão no ocidente, estabelecendo uma tipologia analítica dessas relações para suas expressões sociológicas. Em seguida, corroborado pelos pensamentos de autores como Antônio Flávio Pierucci e Peter Berger, a obra elucida a situação moderna da religião, ressaltando as especificidades do processo de secularização pelo qual passa a sociedade ocidental e amazônica e também o modo como este se relaciona com o grupo social dos intelectuais das Ciências Humanas. Ao fim, analisa sete entrevistas realizadas com intelectuais das disciplinas de Filosofia, Psicologia, Ciência Política, Geografia, Sociologia, Antropologia e História – de diferentes posições religiosas – a respeito de suas relações com a religiosidade, de uma perspectiva pessoal.
Certamente, útil e esclarecedor para professores e intelectuais das Ciências Humanas, bem como para religiosos em geral.
LanguagePortuguês
Release dateMay 10, 2022
ISBN9786525236742
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    Os Intelectuais das Ciências Humanas e a Religiosidade - Dayvison Santos

    PARTE I

    FÉ E RAZÃO

    CAPÍTULO 1 O BINÔMIO FÉ-RAZÃO E SUA COMPLEXIDADE

    Fé e razão têm se relacionado de forma muito dinâmica no decurso da história da humanidade. Em geral, seus modos de contato se intercalam entre momentos de conflito e momentos de relativa paz. Durante certos períodos considera-se que as duas limitam-se mutuamente, demarcando o alcance de ação de cada uma pelo início do domínio da outra, o que gera conflito quando esses limites são traspassados (BARBOUR, 2004); noutros, pensa-se que elas lhe dão com domínios distintos de realidade que não se relacionam diretamente sem desfigurarem-se, por isso mantêm a paz entre si, em virtude desses domínios não poderem ser misturados.

    Num primeiro momento histórico, a relação entre fé e razão se mostrou como relação entre filosofia e mitologia. Esta etapa ocorreu na antiguidade, entre os séculos IV a.C. e I d. C., com o advento da filosofia clássica. Nesse contexto, as relações entre filosofia e fé se davam no sentido de uma purificação da fé pela análise racional, visava-se transcender as orientações mitológicas para ter fundamento racional para a fé em divindades. Assim sendo, fé e razão se comportavam de forma bastante distinta, porém relacionavam-se com certa afinidade. Ora, se por um lado a investigação racional corroborava e robustecia a fé, por outro, a investigação racional ganhava qualidades universais por meio da compreensão de que as narrativas míticas estavam encharcadas por verdades, embora poluída por superstições mitológicas parcializadas. Conforme S. João Paulo II (1998), o conceito de divindade (filosófico e teológico) se beneficia amplamente com este processo¹.

    Com o advento da era cristã, no século I d.C., essa relação foi modificada. Os primeiros cristãos entendiam que a aproximação entre fé e razão era perigosa, especialmente do modo como se dava na época. A saber, tentava-se subordinar, baseados na filosofia clássica, os parâmetros da fé à análise racional. Isso, para eles, era absurdo, porque a verdade cristã seria superior a verdade racional da filosofia. Portanto, a aproximação entre fé e razão era vista como provável causadora de desvios da genuína verdade. Mas, para além disso, nos primeiros anos da era cristã, entendia-se a atividade filosófica como secundária. Pensava-se que o mais urgente era pregar as boas novas do Cristo. Desta maneira, o filosofar era relegado a segundo plano.

    Após este momento de tensão dá-se um de convergência. O desenvolvimento do cristianismo, com uma ideia de verdade caracteristicamente democrática, disponível a todos, teve implicações filosóficas relevantes. Agora, a verdade, assim como sua investigação, não está mais disponível a um grupo seleto de pessoas – em geral os filósofos –, mas a todos os homens universalmente. Destarte, temos um cenário onde a verdade seria una, tanto em sua compreensão religiosa como na racional. A verdade buscada pela filosofia teria sido encontrada por vias de fé, mediante o cristianismo. O cristianismo seria a verdadeira filosofia, como acreditava Clemente de Alexandria. Entretanto, simultaneamente havia conflito.

    Alguns menosprezam os cristãos como incultos e irracionais, por motivo da secundarização da razão por eles manuseada. Neste contexto, alguns intelectuais cristãos, como Orígenes, fizeram amplo uso da filosofia para combater críticas aos cristãos que seriam supostamente baseadas na filosofia. Desenvolve-se, então, o momento embrionário da teologia enquanto forma de conhecimento distinta. Ela se relacionava com a filosofia sem ser, no entanto, totalmente subsumida por ela. Desta feita, sendo os limites não muito bem estipulados, temos um momento de correlação entre fé e razão, mas sem distinção clara entre as duas esferas epistemológicas.

    Em seguida há, efetivamente, a introdução do período mais eminente de aproximação entre fé e razão, entre os séculos V e XV d.C. É o período de cristianização da filosofia (S. JOÃO PAULO II, 1998), o momento onde surge a filosofia patrística. Com isto, contudo, não se quer significar uma filosofia fajuta, mas um estilo de pensamento filosófico que buscava ver as continuidades entre razão e fé. Vultos desse movimento foram, dentre outros, Agostinho e Dionísio areopagita. Neles, conhecimento filosófico e conhecimento teológico se misturavam com facilidade, de modo que ambos tratariam no fundo da mesma coisa: a busca da verdade. Nesse período, portanto, grandes sínteses entre fé e razão foram feitas.

    Esse movimento de convergência foi levado a diante com o emergir do pensamento escolástico de S. Anselmo e S. Tomás de Aquino. No entanto, essa colaboração entre fé e razão agora toma contornos um pouco distintos. Ao contrário de se confundirem, conhecimento racional e conhecimento da fé agora são tomados como radicalmente abalizados. Isto significa que a reflexão filosófica não pode atingir resultados que são de natureza teológica por si própria e, por sua vez, conhecimentos teológicos, embora possam ser tratados filosoficamente, jamais poderiam ser tratados como simples prosseguimento de reflexão racional da filosofia.

    Apesar das eminentes distinções entre filosofia e teologia, razão e fé, neste contexto, estabelecidas pela escolástica, a convergência entre os dois domínios de conhecimento é clara. Ambas buscam a verdade, porém por métodos diferentes e em níveis de realidade também diferentes. E estas diferentes metodologias, apesar de tudo, são colaborativas e não contraditórias ou conflitantes. Para S. Tomás de Aquino, elas não poderiam divergir, pois no fim das contas objetivam o mesmo, a saber, a verdade.

    Após este largo período, digamos, pacífico entre fé e razão, inicia-se o mais complexo momento de conflito entre as duas dimensões do conhecimento. É o período de gênese da era moderna (séculos XVI, XVII e XVIII), em conjunto com a moderna filosofia e com moderna ciência. Nesse período, razão e fé passam a ser radicalmente antinômicas. A razão sofre certa redução ao racionalismo empiricamente verificável, enquanto que fé trata apenas das coisas compreendidas como irracionalmente fundamentadas – ética e crenças. A razão, por seu empirismo, determinismo e verificabilidade vai ganhando primazia social enquanto a fé é tomada como superstição, sentimentalismo e irracionalidade.

    Esta limitação da razão ao empírico e concreto consolida-se por causa do advento do cartesianismo e positivismo filosófico, portanto é autolimitação da razão, isto é, um processo endógeno à própria razão. Nesse novo cenário, todo conhecimento racional precisa ser mediado pela concretude para ser considerado legitimamente fundamentado e real, tudo se reduz ao visível, palpável e útil, como nos mostra Ortega y Gasset (ESCÁMEZ SÁNCHEZ, 2010). O conhecimento racional expulsa, dessa maneira, toda a metafísica do âmbito epistemológico, em virtude de sua nova concepção de realidade sempre ligada ao concreto. Estando, agora, sempre submisso à concretude, à empiria, à verificação experimental, o conhecimento racional não pode mais se debruçar, por exemplo, sobre a existência de Deus, sobre a vida após a morte, etc. Como já vai ficando claro, estamos falando do momento histórico onde a ciência moderna ascende ao papel central de operação da razão. Hipócrates, Galeno e Avicena em seus estudos relacionados à medicina podem ser vistos como precursores antigos e medievais desta separação radical entre ciência, de um lado, e religião e magia, de outro.

    Apesar desse movimento, as questões metafísicas fundamentais, eminentemente humanas, permanecem em vigor. O de onde? (viemos) e para onde? (iremos), por exemplo, continuam a nos perseguir, segundo Bento XVI (2006). Decorre disto que, os limites que a razão científica impôs sobre si própria fazem com que estas indagações não possam ser respondidas por meio de uma ciência que reduz o domínio da racionalidade. Afora esses temas puramente metafísicos, existem problemas de natureza prática e social, como a ética, por exemplo. Mesmo os meios sociológicos ou psicológicos da ciência moderna não são suficientes para promovê-la ou sustentá-la, afirma o mesmo Bento XVI (2006).

    Sob condições de modernidade, razão e fé (ciência e religiosidade, em suas formas socioculturais modernas) dispõem-se em domínios da vida completamente distintos e quando misturam-se ocorre grande conflito ao se entender que o contato entre as duas prejudica o desenvolvimento de ambas (COLLINS, 2007; BARBOUR, 2004). Outro ponto importante, nesse quadro, é a fragmentação do conhecimento em diversos ramos científicos.

    A multiplicação de ramificações e sub-ramificações do conhecimento científico, ciências naturais, Ciências Humanas, tecnologias, etc. fez com que a apreensão da verdade – principal objetivo da razão até a era moderna – fosse igualmente fragmentada. Ademais, sua apreensão em parcelas promove incompatibilidade entre o conhecimento destas mesmas parcelas. Esse conflito, resulta na inacessibilidade da verdade em sua totalidade ou, mais radicalmente, na perda da noção de existência da verdade universal, como se pensava em eras históricas anteriores. A função da razão, desta feita, é completamente modificada. Não visa mais a verdade, apenas a certeza; não objetiva mais completude, contenta-se com o parcelamento do real; e não consegue propor respostas eficientes aos problemas fundamentais da humanidade – de onde viemos?, há vida após a morte?, existe algum tipo de divindade?, etc. – e mesmo a problemas mais imediatos, tais como violência urbana, epidemia de depressão, suicídio, etc.

    Por outro lado, a fé também se vê prejudicada. Similarmente à intelectualidade moderna, à fé moderna competiria apenas o ajustamento subjetivo, fundado na experiência e na consciência puramente subjetiva. O âmbito da fé, portanto, foi radicalmente reduzido. Ela deixa de tratar da totalidade da realidade que não é alcançada por vias puramente racionais, para agora tratar apenas de realidades subjetivas e subjetivamente compreendidas². Talvez mais importante ainda, seja perceber que a largueza da fé e da razão anteriores à modernidade derivavam da compreensão da largueza do homem e da natureza³. Consequentemente, a redução da razão e da fé que acima mencionamos expressa também a redução – ou mesmo reificação – do próprio homem e da natureza.

    Evidentemente, neste processo de engendramento da intelectualidade e da fé moderna houveram avanços significativos. No entanto, esses avanços assentaram-se em alicerces que posteriormente vetaram outros. A redução da razão à concretude e empiria foi de grande valor para o aprofundamento de conhecimentos empíricos. Mas, por outro lado, por exemplo, reduziu levianamente o homem a uma máquina, um ser que pode ter todos os seus comportamentos supostamente explicados por condicionamentos exógenos a ele e puramente concretos, é nesse sentido que Hannah Arendt (2014) aponta para o surgimento das ciências do comportamento – referindo-se as ciências sociais –, um tipo de conhecimento a partir do qual compreende-se que o homem não mais age, apenas comporta-se, segundo os condicionamentos sociais. O desprezo por aquilo que é real, porém não empírico, aplicado pelas ciências modernas, então, reduz evidentemente o homem.

    A fé, por seu turno, ao ser reduzida ao âmbito subjetivo da vida (BENTO XVI, 2006), oportunizou maior autoconhecimento interior humano, mas, ao mesmo tempo, por ter sofrido limitações endógenas e exógenas em nossa era, não conseguiu articular a dimensão subjetiva da vida como sua dimensão objetiva. Esse movimento causou vários prejuízos psicológicos ao homem, por sua falta de articulação com a totalidade da realidade. O homem moderno, tal como apresentado por Bento XVI (2006), é quebrado, um ser fragmentado.

    Portanto, o parcelamento da realidade e de sua compreensão; a redução da fé, da razão, do homem e da natureza ao concreto e empírico; a perda do desejo pela depreensão total da verdade e da realidade; a subjetivação hermética da dimensão da religiosidade e da ética são idiossincrasias tanto da fé quando da razão modernas.

    No contexto da modernização, portanto, há o engendramento de toda uma ciência desconexa da fé como revela Weber (2013), tanto institucionalmente como pessoalmente, já que há, de um lado, o fomento de uma ciência que não relacione sua produção de conhecimento com nenhum fundamento religioso, tendo em vista sua inverificabilidade empírica e concreta, bem como, de outro, existe claríssimo incentivo a que cientistas de todas as áreas do conhecimento – e até pessoas comuns – sejam ateus ou, no mínimo, agnósticos (DAWKINS, 2007). Ademais, aqueles intelectuais que tentam manter sua prática científica em simultaneidade com uma vida religiosa, por vezes, são considerados acadêmicos impuros ou impuramente acadêmicos (PIERUCCI, 1999).

    Entretanto, é público, através de trabalhos de historiadores da ciência (NUMBERS, 2009), que alguns mitos acerca do conflito ciência-fé, especialmente sobre o período medieval, no qual havia a supremacia social da fé, foram construídos e difundidos até os dias atuais tanto por cientistas como por religiosos em geral. Esses mitos dizem respeito especialmente a suposta supressão da ciência pela igreja na era medieval. Tais estudos históricos afirmam, por exemplo, que a Igreja Católica Apostólica Romana foi a instituição que mais investiu financeira e socialmente em produção do conhecimento astronômico desde a recuperação do conhecimento tradicional, no final da idade média (fins do século XIV), até o iluminismo (século XVIII). Ademais, investiu provavelmente mais do que todas as outras instituições juntas. Isto derruba o argumento de que a instituição religiosa seria inimiga da ciência moderna.

    Além disso, afirmam esses estudos históricos que nenhum cientista foi morto ou perseguido no medievo por suas concepções científicas, mas por suas concepções puramente teológicas e religiosas, consideradas heréticas pela igreja. Giordano Bruno, por exemplo, que segundo a opinião corrente teria morrido em virtude da verdade de sua produção científica e de sua filiação ao pensamento de Copérnico, na verdade, foi incinerado pela inquisição católica por suas concepções heréticas acerca da divindade ou não divindade de Cristo. Obviamente, esse não é um motivo menos torpe para uma atrocidade como esta, mas o interessante aqui é a verdadeira motivação do ato, que destoa da opinião corrente.

    Galileu Galilei, considerado por muitos, fundador da ciência moderna, supostamente perseguido e torturado pela igreja católica, teria, na realidade, sido muito bem tratado (ao menos do ponto de vista físico) inclusive em todo processo de julgamento inquisitório ao qual foi submetido. Até a famigerada descoberta da esfericidade da terra por Cristóvão Colombo já é questionada, tendo em vista que, em verdade, desde a antiguidade aristotélica até o século XVI, pelo menos, a ideia socialmente corrente e majoritária era de que a terra era esférica e não plana como difundiu-se em todo o ocidente.

    Há, portanto, este nível institucional (igreja apoiando a produção científica), mas igualmente interessante é o nível pessoal do tema. Para darmos mais um exemplo acerca de certos mitos relativos ao conflito razão-fé, vamos ideia de que a ciência, em uma espécie de contragolpe na fé, promove, quase que por sua natureza, o ateísmo e o afastamento de seus praticantes de qualquer disposição religiosa. No entanto, essa afirmação não corresponde à realidade. Charles Darwin, por exemplo, que muitos pensam ter deixado suas crenças no cristianismo por motivos relativos à sua atividade científica sobre a origem das espécies e a evolução humana, embora muitos de seus seguidores tenham assim procedido, jamais o fez. Na realidade, ele rejeitou o cristianismo por motivos pessoais, relacionados a dúvidas acerca do amor e da justiça de um deus cristão, e isso em decorrência de duros golpes sofridos por ele especialmente no que tange à sua família, qual seja, a morte do de seu pai e de sua filha.

    Para além disso, há intelectuais modernos – aqueles condicionados pelos paradigmas racionais e científicos típicos da modernidade – que no decorrer de sua trajetória intelectual voltaram-se à fé, o que indica que, do ponto de vista subjetivo (e talvez até objetivo) em nada esta contraditou a primeira. Nessas condições, se encontram, por exemplo, os antropólogos Evans-Pritchard, Victor Turner e Edith Turner, que encontraram a fé durante suas atividades antropológicas (DULLO, 2015). Nesse mesmo contexto, há aqueles que sempre mantiveram sua fé reunida a sua atividade intelectual em todo tempo, como Mary Douglas na Antropologia (DULLO, 2015) e Peter L. Berger na Sociologia.

    Em concatenamento com esse momento histórico de conflito entre fé e razão, temos o processo de secularização ocorrendo progressivamente desde o advento da modernidade. De modo geral, esse processo diz respeito a perda de poder (político, social, moral e cultural) da religião sobre a sociedade (PIERUCCI, 1997). Sabemos que durante o medievo todas as relações sociais eram engendradas e legitimadas pela fé e pela instituição católica. Nada tinha existência social, política, cultural, moral e até epistemológica se não fosse dada pelo catolicismo.

    O processo de secularização vem exatamente na direção de acabar com esta influência, a qual em certo sentido também era controle. Assim, simultaneamente à modernização do mundo ocidental, esse poder do catolicismo é paulatinamente expropriado. É assim que ocorre a separação entre Igreja e Estado, por exemplo. Também é assim que temos a constituição de um grupo intelectual que agora age sem conexões vitais com a igreja. Até este momento, a intelectualidade, enquanto grupo social, era propriedade da Igreja, sendo por ela cultivada e organizada. Mas, com a modernização podemos afirmar que também é ensejada uma espécie de secularização da intelectualidade, tendo ela agora em suas próprias mãos sua produção cultural, institucionalmente desconexa de constrições religiosas⁵.

    Essa relativa autonomia e peculiaridade do grupo dos intelectuais na modernidade também é apontada pelo sociólogo Karl Mannheim (1974, 1986). Para este, no entanto, essa desvinculação dos intelectuais não se referia apenas à religião, mas a quaisquer grupos sociais com ideologias particulares: classes, sindicatos, partidos, religiões, seitas, etc. A intelligentsia de Mannheim é, com efeito, um grupo social intersticial – aloca-se entre grupos sociais – que é responsável pela representação pública e legítima da realidade. Em se tratando de nosso tempo histórico atual, essa camada social é composta por cientistas, jornalistas, juristas, filósofos, profissionais das chamadas Humanidades, bem como escritores e literatos. Seriam eles responsáveis pela síntese – e também pela avaliação – das diversas visões de mundo existentes.

    Vale ressaltar, contudo, que como apontou Weber, a marca mais evidente dos intelectuais modernos – assim como da sociedade moderna em geral – é o racionalismo. Portanto, não se trata aqui de padres intelectuais, como no medievo, responsáveis pela síntese, porém com limitações doutrinárias relativas à igreja. Estamos falando agora de intelectuais desvinculados, interessados em descobertas e formulações racionais e não no atendimento de necessidades relativas às ideologias de um ou de outro grupo social, embora por vezes isso ocorra, mas sem tornar a intelligentsia, de uma vez por todas, funcionária de alguma ideologia.

    Nítido está, portanto, que institucionalmente temos progressiva separação entre intelectualidade e fé. Porém, acima já indicamos que no nível pessoal esta relação nem sempre segue os mesmos caminhos do nível institucional. Corrobora essa incongruência os estudos realizados no século XX por psicólogos da religião acerca da fé de cientistas.

    Em 1916, a conhecida pesquisa de James Leuba chocou os Estados Unidos ao revelar que entre os cientistas, mesmo após os constantes avanços das ciências, a crença em um Deus pessoal⁶, que responde orações, e na vida após a morte permanecia forte. A pesquisa foi realizada através da aplicação de questionários e seus resultados estão postos na tabela abaixo, extraída do texto de Paiva (2002):

    A amostragem de Leuba foi de 1000 cientistas das áreas de Biologia e Física, escolhidos aleatoriamente na American Men of Science, sendo 400 considerados, pela mesma instituição, como grandes cientistas. Essa diferenciação interna é interessante, porque nos remete à uma latência, qual seja, uma transição de cientista para grande cientista. Não podemos falar do antes do cientista porque isso não está contido (nem implicitamente) na pesquisa, mas obviamente um grande cientista hoje, foi apenas um cientista ontem. Por isso, é possível uma conexão entre os resultados para os dois grupos, embora não seja esse nosso interesse primário aqui.

    Acerca da crença em um Deus pessoal, os resultados percentuais, expostos na Tabela 1, revelam que a crença peremptória de cientistas em um Deus pessoal (42%) somada àqueles que sobre isso tem dúvida (17%), superam os 42% daqueles que descreem. No que tange aos grandes cientistas, o número de pessoas que crê diminui para 28% enquanto que o de descrença aumenta para 53%. No entanto, curiosamente, o número dos que tem dúvida acerca da existência de um Deus pessoal aumenta (21%). Os números nos propõem algumas reflexões não necessariamente conclusivas, não obstante sejam indicativas: a) os cientistas em geral não são pessoas irreligiosas, ou seja, não são pessoas desprovidas de crenças em coisas de ordem sobrenatural; b) a elevação de cientista a grande cientista pode contribuir para o aumento da descrença em um Deus pessoal e também para diminuição de crença em um Deus pessoal mas, simultaneamente também pode fomentar a dúvida acerca da existência de um Deus pessoal.

    No tocante à crença na vida após a morte, os números apresentados na Tabela 1 são ainda mais representativos. Entre os cientistas, 51% acredita na vida após a morte, por conseguinte, pouco mais da metade dos cientistas acreditam peremptoriamente que algo existe após a vida natural, sendo que 30% tem dúvidas a respeito e apenas 20% descreem. Em relação aos grandes cientistas, a descrença é de 25% e a dúvida de 44%, enquanto a crença é de 35%, o que indica que a qualidade de grandes cientistas pode ser contribuinte mais das dúvidas do que das certezas acerca desse tema. Porém, ainda assim, o percentual daqueles que assumem a crença supera o daqueles que assumem a descrença. Importante também é notar que a qualidade de grandes cientistas parece contribuir também para o crescimento da descrença e para o a diminuição da crença.

    Leuba repetiu sua pesquisa em 1933, mas agora somente entre os considerados grandes cientistas. Os números reafirmam as indicações que fizemos acima, ou seja, de que entre grandes cientistas há tendências de acréscimo da descrença e decréscimo da crença. No entanto, o novo estudo revela uma leve diminuição nos números relativos a dúvida da existência de um Deus pessoal (sendo agora de 17%) e um considerável decréscimo no que respeita à dúvida na existência da vida a após a morte, passando agora a 29%, como é evidenciado na Tabela 2, reproduzida abaixo:

    O questionário de Leuba foi reproposto pelos psicólogos Larson e Witham em 1997 e aplicado entre os cientistas americanos em geral. Os resultados foram novamente alarmantes. A pesquisa realizada mostra que a fé em um Deus pessoal e na vida após a morte não foi consideravelmente alterada entre os cientistas em geral, a despeito dos progressos da ciência e da secularização modernas. A Tabela 3, a qual traz os resultados percentuais dessa pesquisa, segue abaixo

    Os números observados na Tabela 3 apontam para a diminuição da dúvida, e crescimento da descrença, todavia também apontam para espantosa manutenção da fé entre os cientistas em geral. 39% deles creem na existência de um Deus pessoal que responde a orações. E 38% acredita na existência de algum tipo de vida após a morte. Mais uma vez, verifica-se estatisticamente a tendência de que o mundo científico em geral não pode ser considerado fator de ensejo à perda da fé. Talvez de ensejo à redução das dúvidas, mas não à perda da fé.

    Por semelhante modo, Larson e Witham repropuseram ainda, em 1998, a pesquisa de Leuba junto aos grandes cientistas⁷. Os resultados outra vez possuem grandes semelhanças. A descrença entre grandes cientistas se eleva consideravelmente. 72% descreem na existência de um Deus pessoal e 77% descreem na vida após a morte. Por sua vez, a crença tem índices baixíssimos, de 7% para crença em um Deus pessoal e de 8% para crença na vida após a morte. Os percentuais referentes à dúvida, contudo, variam pouco, agora ficando em 21% para crença em um Deus pessoal e 23% para crença na vida após a morte. A Tabela 4, reproduzida por Paiva (2002), com os números percentuais, segue abaixo:

    Há, portanto, indícios claros de que ciência e fé coexistem de maneira bastante próxima. Ademais, de um ponto de vista sociológico, pode-se plausivelmente se pensar, considerando a dinâmica da secularização contemporânea, que os números relativos aos grandes cientistas, nas pesquisas supracitadas, podem estar relacionados ao grau de secularização variado que atinge esses atores sociais, já que grandes cientistas são geralmente aqueles que, além de atingir alto grau em seus estudos acadêmicos, possuem reconhecimento institucional, por isso condicionados mais de perto pelos constrangimentos seculares e secularizantes das instituições sociais, acadêmicas e intelectuais modernas.

    Outrossim, as pesquisas em voga sempre preservam uma opacidade (FERREIRA, 2009). Ao indagar sobre a crença em um Deus pessoal que responde orações, restringe as perspectivas de fé dos sujeitos investigados, porquanto não crer em um Deus pessoal não significar necessariamente não crer em um Deus ou em deuses, logo, também não significa ser ateu. Portanto, se pensarmos na fé de um ponto de vista mais amplo – digamos, da crença em um Deus ou deuses, sejam pessoais ou impessoais, que respondem ou não a orações – os números que se referem à crença e descrença poderiam ser

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