Terceirização enquanto fraude aos direitos sociais
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O livro se propõe a apresentar uma visão distinta da tradicionalmente adotada pelos autores clássicos do Direito do Trabalho. Ao invés de se limitar à análise dogmática de enunciados normativos sobre o tema, busca contextualizá-lo historicamente e politicamente.
Aqui, o fenômeno da terceirização é analisado sob uma perspectiva crítica e multidisciplinar, para demonstrar que o fenômeno se insere no contexto da dualização do assalariado, como ferramenta de implosão das relações individuais de trabalho e desmantelamento sindical.
A obra traz ainda proposições para enfrentamento da problemática representada pela terceirização: a reafirmação da luta coletiva como ferramenta de empoderamento da classe trabalhadora; e a adoção de uma hermenêutica estruturante, baseada nos princípios da proteção e da vedação ao retrocesso social.
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Terceirização enquanto fraude aos direitos sociais - André Torquato
CAPÍTULO 1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
1.1 AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO CAPITALISTA: GLOBALIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO
Durante a segunda metade do século XX, sobretudo a partir do final da década de 1960, a economia política da sociedade capitalista passou por inúmeras transformações, as quais se refletem na nova configuração geopolítica, em novas práticas de Estado, bem como em mudanças nos hábitos de consumo.
As inovações tecnológicas oriundas desse momento histórico, especialmente a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte redundaram, conforme ressalta Everaldo Gaspar de Andrade, numa verdadeira compressão do tempo-espaço
.¹
Ao analisar esse cenário, David Harvey destaca a substituição do fordismo pelo modelo de acumulação flexível.² O autor aponta a rigidez do modelo fordista como a principal razão de seu fracasso e se refere à crise do petróleo de 1973 como marco paradigmático dessa passagem.³
A produção de bens imateriais, como serviços, símbolos, informações e valores, gradativamente substitui a produção em larga escala de bens materiais, característica essencial do capitalismo fordista da sociedade industrial.
Nesse contexto, conforme expõe Domenico de Masi,⁴ a exploração do trabalho manual no interior das indústrias, desvalorizado diante das novas tecnologias, é paulatinamente sobreposta pelo trabalho intelectual, criativo e imaterial. Além disso, as novas relações de trabalho, com os avanços na tecnologia da informação, passam a se desenvolver em dimensão transnacional.
A substituição da força de trabalho pela reprodução automatizada gera superprodução em escala global, de modo a reduzir o valor das mercadorias finais e, consequentemente, a taxa média de lucros. Significa dizer que a mais-valia total produzida já não mais trazia a rentabilidade esperada.⁵
Daí ocorre uma fuga dos investimentos do setor produtivo para o setor especulativo, de modo que o mercado financeiro se torna o principal palco de circulação do capital. Trata-se da forma mais abstrata de acumulação de riqueza, totalmente desvinculada da produção material.
Segundo Chesnais,⁶ através do capital portador de juros, busca-se o lucro sem que seja necessário sair da esfera financeira, sob a forma de juros de empréstimos, de dividendos ou de quaisquer pagamentos recebidos apenas em razão da posse de ações ou de outros títulos.
Nesse cenário, os avanços na tecnologia da informação desempenham um papel fundamental na agilização das transações de ativos no sistema financeiro e contribuem para o fortalecimento desse setor.
O deslocamento de recursos para aplicações especulativas, de acordo com Aglietta,⁷ desfavorece o crescimento econômico. Na medida em que as empresas se sentem desencorajadas a investir em inovação e produtividade, não há geração de emprego.
Ao concentrar as rendas que não foram reinvestidas em produção e nem consumidas, as instituições financeiras, em especial as não bancárias,⁸ se tornam poderosas credoras internacionais e passam a impor aos estados a desregulamentação cada vez maior dos mercados.
De acordo com Dominique Plihon:
Com o peso crescente da dívida, os tesouros públicos nacionais não podiam mais contar exclusivamente com os investidores nacionais. Era necessário apelar aos investidores internacionais, em particular aos investidores institucionais, para que adquirissem títulos públicos nacionais. É desse modo que, no início, as autoridades públicas liberalizaram e modernizaram os sistemas financeiros para satisfazer suas próprias necessidades de financiamento
.⁹
Em pouco tempo, o neoliberalismo passa a ser implantado nos países capitalistas centrais como política de Estado. É o que se verificou na Inglaterra na década de 80. Sob o governo de Margareth Thatcher, o parque produtivo inglês passou por profundas modificações, com redução das empresas estatais, retração do setor industrial e expansão do setor de serviços privados.¹⁰
Nos EUA, as políticas neoliberais foram capitaneadas por Ronald Reagan, em cujo governo o macartismo da guerra fria foi reintroduzido. Com base no discurso de combate aos inimigos
da liberdade, Reagan retomou a corrida armamentista, investindo pesadamente no setor bélico sob o pretexto de gerar empregos e manter a liderança militar norte-americana.¹¹
Com o declínio da União Soviética e a queda do muro de Berlim em 1989, o neoliberalismo encontrou terreno ainda mais fértil para se impor. Sem o contraponto representado pelo modelo soviético, o capitalismo pode avançar sem a necessidade de manutenção do estado de bem-estar social.¹²
No Brasil, conforme aponta Juliana Esteves,¹³ a Constituição Federal de 1988, contrariando a guinada liberal ocorrida nos países capitalistas centrais, ainda buscou consagrar um sistema de proteção social nos moldes do Welfare state, especialmente no capítulo destinado à seguridade social, em que se previa uma vasta rede para financiamento dos benefícios.
Mas, como também destaca a autora, o cenário internacional, já amplamente dominado pelo capitalismo financeiro, impôs também ao Brasil a adoção de políticas liberalizantes, como a privatização de empresas estatais, a elevação das taxas de juros para estimular a entrada de capital estrangeiro e o redirecionamento de receitas da seguridade social para custear o pagamento de juros e amortizações da dívida pública.¹⁴
É inegável que as últimas décadas do século XX e as primeiras do século XXI vêm sendo marcadas por profundas alterações no sistema de produção capitalista, sobretudo em função da globalização, da supremacia do capital financeiro e da brutal redução do papel do Estado na economia.
1.2 O DECLÍNIO DO WELFARE STATE E O FIM DAS GARANTIAS SOCIAIS
Diante da mundialização financeira,¹⁵ as políticas keynesianas se mostraram insuficientes para conter as injustiças sociais. Em sua expansão global, o capitalismo já não admite a convivência com as medidas do Estado Social do pós-guerra. Para que as margens de lucro se mantenham crescentes, as políticas de flexibilização e desregulamentação se tornam imperativas.
É interessante registrar que a necessidade capitalista de constante expansão no globo terrestre já fora prevista por Marx e Engels.¹⁶ Conforme os autores alertavam, a burguesia precisa de um mercado em constante expansão, dando forma cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países e ratificando a tendência que já se manifestava desde o início de sua hegemonia:
A burguesia, na sua dominação de classe de um escasso século, criou forças de produção mais massivas e mais colossais do que todas as gerações passadas juntas. Subjugação das forças da Natureza, maquinaria, aplicação da química à indústria e à lavoura, navegação a vapor, caminhos-de-ferro, telégrafos eléctricos, arroteamento de continentes inteiros, navegabilidade dos rios, populações inteiras feitas saltar do chão — que século anterior teve ao menos um pressentimento de que estas forças de produção estavam adormecidas no seio do trabalho social?
¹⁷
O cenário atual reflete a mesma lógica de expansão sem limites. Segundo Evilasio Salvador:
O quadro revela as limitações das políticas keynesianas diante da internacionalização do capital, com sinais de esgotamento do padrão de financiamento das políticas sociais e a reação do capital à queda das taxas de lucro, na sua sanha pela acumulação e, portanto, por superlucros. Os capitalistas se armam para revogar as conquistas sociais do pacto social-democrata investindo contra os trabalhadores, em busca de restabelecer um novo padrão de acumulação para saída da crise
.¹⁸
As garantias sociais obtidas ao longo do século XX são vistas como entraves à rentabilidade exigida pelo mercado financeiro. Os custos salariais, a redução da jornada de trabalho, bem como o pagamento de tributos para financiamento da seguridade social são apontados como obstáculos para a resolução das crises capitalistas.
Para Juliana Esteves:
A financeirização da economia e do capital produtivo força a redução dos direitos dos trabalhadores – ponta mais fraca da relação. Custos com mão-de-obra são reduzidos em prol da rentabilidade acionarial mínima exigida pelo mercado. O novo sistema de capitalismo impõe baixos salários, redução de impostos e encargos sociais, alicerces do financiamento da proteção social
.¹⁹
Segundo a autora, os trabalhadores aos poucos deixam de fazer parte da empresa como empregados, passando a compô-la como se fossem pequenos acionistas.²⁰
Essa mudança de perspectiva significa, em outras palavras, o compartilhamento dos riscos da atividade empresarial com a classe trabalhadora. As garantias de pleno emprego e de manutenção do poder de compra salarial são revogadas e os trabalhadores ficam à mercê das instabilidades do sistema financeiro.
Na seguridade social, os regimes de repartição, onde vigora a solidariedade intergeracional, dão lugar aos regimes de capitalização, onde cada um acumula seu próprio patrimônio para custeio de seus próprios períodos de inatividade. É o que André Orléan chama de individualismo patrimonial
.²¹
Ideólogos capitalistas, como Peter Drucker,²² aplaudem o que seria uma espécie de capitalismo dos trabalhadores, na medida em que cada um deles é dono de suas próprias reservas acumuladas ao longo da vida, e tais reservas, sob a lógica financeira, funcionam como instrumentos de reprodução do capital. Os trabalhadores seriam assim pequenos proprietários dos meios de produção.
Nessa esteira, o individualismo clássico do capitalismo liberal volta a ganhar força. As teorias de gestão e de administração pertencentes à versão organizacional tradicional, conforme aponta Andrade,²³ desempenham um importante papel nesse processo. Através dessas novas técnicas de gestão, incentiva-se a competição entre os empregados no interior das empresas, pondo em relevo a velha regra do "cada um por si". Com isso, destrói-se o espírito de união entre os trabalhadores. A exploração da força de trabalho, antes verificada apenas na dimensão física, passa a se consolidar também na dimensão psíquica. Para o autor:
Uma visão crítica da história organizacional ajuda, por fim, a compreender como as novas formas de gestão, ao introduzir o discurso da liberdade contra a opressão do trabalho, passaram a capturar ainda mais a subjetividade do trabalho – a comprar também o saber e a criatividade -, a cobrar ainda mais trabalho e compromissos com a organização. O que está acontecendo não é apenas o controle e a apropriação do trabalho braçal, físico, mas, repita-se, do saber, da criatividade e da própria vida do empregado. Os trabalhadores, sentindo-se
livres,
donos do seu saber e de sua criatividade, passam a trabalhar ainda mais, já que não se tem como mensurar o tempo dedicado à criação – como se não bastassem os controles ainda mais sofisticados que ampliam o Poder Disciplinar e a Subordinação da Força do Trabalho ao Capital
.²⁴
Ao mesmo tempo, como aponta Mota,²⁵ os grandes meios de comunicação promovem uma verdadeira glorificação do empreendedorismo e do individualismo patrimonial. No Brasil, os principais telejornais e os periódicos de grande circulação, quando tratam da seguridade social, insistem em acusar de deficitária a previdência social pública, omitindo, porém, que grande parte dos recursos da seguridade são indevidamente deslocados para possibilitar o superávit primário e satisfazer os credores da dívida pública galopante.
Além disso, ao tratar de temas econômicos, a mídia corporativa utiliza linguagem aparentemente técnica e convoca especialistas
para emitirem seus pareceres, de modo a insinuar que tais assuntos são demasiado complexos para que sejam compreendidos pela população comum sem a intermediação desses "experts".²⁶
Por fim, taxam pejorativamente como ideológicas – e, portanto, inoportunas – as sugestões contrárias à cartilha neoliberal, como se a glorificação do individualismo e do empreendedorismo que tanto promovem fosse desprovida de carga ideológica.
Obtêm-se assim o apoio da opinião pública para consolidar a ideia do estado mínimo e, consequentemente, a desregulamentação da economia e o abandono das políticas públicas de proteção social.
Todo esse processo de dilapidação das garantias sociais serviu para aprofundar as desigualdades sociais em todo o planeta, agravando a miséria e as demais mazelas características do sistema capitalista.
Como afirma José Soares Filho,²⁷ vive-se em um momento marcado pela extrema concorrência comercial, pelo desemprego estrutural, pelo agravamento das desigualdades sociais e, em especial, pela precarização das condições e do mercado de trabalho.
No que concerne especificamente às relações de trabalho, Ricardo