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A proporcionalidade e a eficiência econômica: uma proposta de diálogo no contexto da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal até o ano de 2018
A proporcionalidade e a eficiência econômica: uma proposta de diálogo no contexto da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal até o ano de 2018
A proporcionalidade e a eficiência econômica: uma proposta de diálogo no contexto da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal até o ano de 2018
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A proporcionalidade e a eficiência econômica: uma proposta de diálogo no contexto da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal até o ano de 2018

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A hipótese é que proporcionalidade e eficiência econômica podem compor um único procedimento para a realização da ponderação entre princípios jurídicos em colisão. Como ponto de partida, será realizado um estudo a partir da abordagem da Hermenêutica Filosófica realizada por Hans-Georg Gadamer, pois o entendimento a respeito do processo de formação da compreensão em geral será essencial para compreender a hipótese proposta. A proporcionalidade (Alexy) e de eficiência econômica (Richard Posner) partem de tradições diferentes, contudo ambos buscam estabelecer critérios para limitação ou mesmo elucidação do arbítrio no exercício da atividade judicante. A aproximação entre os dois conceitos se justifica com base na afirmação de Robert Alexy de que a proporcionalidade atua na busca do Ótimo de Pareto. Para verificar como se dá na prática jurisprudencial brasileira, o trabalho analisou a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) até o ano de 2018. A partir dessa análise, conclui-se que a análise de eficiência compõe dois dos três passos da proporcionalidade, pois a necessidade seria uma análise de custo entre as opções existentes para concretizar um determinado princípio e a proporcionalidade em sentido estrito seria uma análise de custo-benefício envolvendo os dois princípios em colisão, devendo prevalecer o princípio em que os benefícios esperados superem os custos.
LanguagePortuguês
Release dateMay 24, 2022
ISBN9786525243191
A proporcionalidade e a eficiência econômica: uma proposta de diálogo no contexto da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal até o ano de 2018

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    A proporcionalidade e a eficiência econômica - Humberto Fernandes de Moura

    1. ABORDAGENS PRÉVIAS E NECESSÁRIAS: A IMPORTÂNCIA DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE HANS GEORG GADAMER E DA DISCUSSÃO A RESPEITO DA EXISTÊNCIA OU NÃO DA DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL NO ATO DE INTERPRETAR

    Pretende-se compreender as relações existentes entre os conceitos de eficiência econômica e de proporcionalidade. A compreensão proposta encontrou sua inspiração nos estudos da Hermenêutica Filosófica¹² proposta por Hans Georg Gadamer¹³, que se dedicou ainda a esclarecer as condições sob as quais se dá o processo de compreensão de maneira geral.

    Iniciar o diálogo proposto sem relembrar a matriz conceitual do Autor que orientará todo o trabalho significaria uma apropriação de suas ideias sem lhe conferir o merecido crédito, bem como desprezar a importância que os seus conceitos têm para boa compreensão da proposta do trabalho.

    1.1 A IMPORTÂNCIA DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE HANS GEORG GADAMER PARA ESTABELECER O DIÁLOGO ENTRE OS CONCEITOS DE PROPORCIONALIDADE E EFICIÊNCIA ECONÔMICA

    Neste momento inicial serão indicados os conceitos centrais do pensamento de Gadamer, pois suas ideias foram essenciais para a manutenção de postura hermeneuticamente aberta, imprescindível à comparação entre conceitos de proporcionalidade e eficiência econômica, que tem origem em tradições jurídicas tão diferentes. Serão explicitados alguns dos seus conceitos centrais expostos em seu livro Verdade e Método¹⁴.

    1.1.1 A pré-compreensão com a primeira de todas as condições hermenêuticas

    Verdade e Método é o livro em que Gadamer expõe a sua visão madura a respeito da Hermenêutica Filosófica. A partir da preocupação central com o fenômeno da compreensão, ele reúne suas considerações a respeito da metodologia das ciências do espírito, a busca pela verdade e a determinação do método.

    Inicialmente, Gadamer se dedica à experiência da arte, que serviria de paradigma para a Hermenêutica. Em seguida, desenvolve uma teoria da Hermenêutica absoluta¹⁵, com base nos estudos de Schleiermacher¹⁶, o Historicismo Diltheano¹⁷ e a Fenomenologia de Husserl¹⁸ e Heidegger¹⁹. Na parte final, por sua vez, explora o fenômeno da linguagem como a experiência humana de mundo, local propício para a hermenêutica²⁰.

    Para Gadamer, a tarefa da Hermenêutica não é desenvolver um procedimento de compreensão, mas esclarecer as condições sob as quais ela surge²¹, uma vez que a Hermenêutica e a Metodologia constituem âmbitos de problemas diferentes. Tal distinção, aliás, foi o constante ponto de discussão existente entre Gadamer e Emílio Betti a respeito da (im) prescindibilidade de métodos interpretativos. Enquanto Betti buscava oferecer uma teoria geral a respeito do modo pelo qual as objetivações da experiência humana poderiam ser interpretadas²², Gadamer enfatizou que esta não era a sua preocupação²³, pois seu foco sempre esteve na pessoa do intérprete e de que como ele chega à compreensão necessária à hermenêutica.

    A primeira de todas as condições hermenêuticas é a pré-compreensão²⁴, o conhecimento que o intérprete tem do tema antes de ler o texto, por sua própria experiência ou por informação de terceiros. A pré-compreensão consiste em uma série de conhecimentos prévios que condiciona e determina a compreensão do texto em concreto e que funciona como pano de fundo pressuposto e tácito²⁵. Em outras palavras, a compreensão não acontece sem estruturas prévias, pois quando se abre um texto nunca se está completamente livre de toda e qualquer pressuposição, quer dizer, o intérprete se movimenta a partir de uma compreensão prévia que recorta o campo dado de antemão e que, ao mesmo tempo, viabiliza o estabelecimento de um caminho particular²⁶.

    A pré-compreensão passa a condição de possibilidade no modo de olhar da Hermenêutica Filosófica, sendo que os pré-juízos jamais são arbitrários, eles não são inventados, pelo contrário, eles apenas estão inseridos em uma tradição que o intérprete não domina²⁷. Na atividade hermenêutica deve-se reconhecer que a pré-compreensão é um determinante prévio de toda vivência, pois muito antes do que nós compreendamos a nós mesmos, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto evidente na Família, na Sociedade e no Estado em que vivemos²⁸. A compreensão apresenta-se, assim, como um reconstruir de uma construção, na medida que se manifesta como a inversão do ato de falar, em que o intérprete deve percorrer de novo, em sentido retrospectivo, o caminho de percorrido pelo autor²⁹.

    De maneira semelhante à pré-compreensão, também a tradição em que inserido o intérprete condiciona a sua compreensão. Ela, contudo, não deve ser um dogma absoluto, pois é algo vivo que se desenvolve, cresce e se enriquece e as vezes também acaba morrendo. Com isso, Gadamer reconhece o papel da tradição no fenômeno da compreensão, mas também admite que o sujeito pode modificá-la, recriando ou enriquecendo-a, ou mesmo conservá-la, o que constitui uma conduta tão livre como a destruição e a inovação³⁰.

    [...]a margem dos fundamentos da razão, a tradição contribui amplamente para as instituições e comportamentos. A tradição condiciona a compreensão, pois sua influência decorre de uma adoção livre (não foi criada por livre inspiração nem sua validez nela se fundamenta). Tal condicionamento, contudo, não significa um dogma absoluto, pois o sujeito pode modificá-la, recriando ou enriquecendo-a, lembrando ainda que a conservação constitua uma conduta tão livre como a destruição e a inovação. A Hermenêutica está no entremeio entre a estranheza e familiaridade que a tradição ocupa junto a nós, sem embargo, entre a objetividade da distância, pensada historicamente, e a pertença a uma tradição. Por outro lado, a tradição é algo vivo que se desenvolve, cresce e se enriquece e as vezes também acaba morrendo ou seja, a tradição deve ligar o indivíduo, mas não rigidamente, sendo digno de registro que os preconceitos não percebidos podem tornar surdos para a coisa de que nos fala a tradição[...]³¹.

    A tradição e a pré-compreensão limitam, mas também enriquecem a compreensão, pois podem revelar uma série de pré-conceitos e somente com o reconhecimento do caráter essencialmente preconceituoso de toda a compreensão que o problema hermenêutico será levado a sua real agudeza³². Com isso, Gadamer propõe seja levado a cabo uma drástica reabilitação do conceito de preconceito, pois, de maneira semelhante ao que acontece com a tradição e a pré-compreensão, ele reconhece que existem preconceitos legítimos.

    A partir das ideias de tradição e pré-compreensão, Gadamer entende que o fenômeno da compreensão não seria um expediente reservado apenas à ciência, mas sim ao todo da experiência do homem no mundo e que o processo hermenêutico se identificaria no que se denomina círculo hermenêutico, em que o todo, a partir do qual se deve compreender o individual, não pode ser dado antes do individual³³.

    O círculo hermenêutico se apresenta como uma correlação de todo e parte, de geral e particular, em que se entende o todo a partir das partes, o geral a partir dos particulares e os particulares referidos ao geral³⁴, quer dizer, um estado de interdependência entre as normas, em uma ordenação unitária, na qual elas se engrenam umas nas outras, limitando-se, complementando-se, reforçando-se e formando um todo coerente³⁵.

    Compreender é sempre mover-se dentro desse círculo em um constante retorno do todo as partes e vice-versa, isto é, o todo está sempre se ampliando. O conceito de círculo, contudo, é relativo, pois a integração em contextos cada vez maiores afeta sempre a compreensão do individual, além do que deve ser constantemente revisado conforme se avança na penetração de sentido³⁶.

    A compreensão não pode ser entendida como um comportamento exclusivamente reprodutivo, como se se tratasse apenas de uma subsunção, a compreensão é sempre produtiva³⁷. Com isso, quando se logra compreender, compreende-se de modo diferente, pois compreender o contexto em que tomada determinada decisão não significa, contudo, estar-se preso àquela realidade, uma vez que o sentido do texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre³⁸.

    O processo compreensivo realiza-se por meio da concordância entre o universo linguístico prévio detido pelo intérprete (seus pré-juízos) e o evento exterior, que tem como consequência o inevitável estranhamento para fazer girar o círculo hermenêutico e provocar o posterior enriquecimento da experiência de mundo. O processo de compreensão se dá de maneira permanente, sendo essencial entender os papeis centrais desenvolvidos pela pré-compreensão e pela tradição, pois estes revelam pré-conceitos que atingem diretamente a forma como o intérprete compreende o mundo e os textos normativos³⁹.

    1.1.2 A inevitabilidade do subjetivismo do intérprete e a abertura para o outros como a postura hermeneuticamente adequada

    Os estudos de Gadamer esclareceram a inevitável presença do sujeito em todo o processo intelectual de linguagem, na elaboração dogmática, bem como nos processos de intepretação e aplicação dos textos em geral. Quem pretende compreender um texto tem que estar disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si, devendo-se mostrar receptivo, desde o princípio, para a alteridade do texto⁴⁰. Essa abertura para a alteridade do texto não significa, contudo, que a Hermenêutica pressuponha neutralidade com relação à coisa, nem tampouco autoanulamento. Um dos pontos-chave para entender a atividade hermenêutica é reconhecer que a lente da subjetividade é um espelho deformante e que a paisagem se mostra de acordo com nossa retina e nosso coração⁴¹.

    O intérprete não vai aos textos normativos em busca de uma solução ao modo de um matemático e sim a procura de uma fundamentação para a decisão com o objetivo de torná-la uma derivação racional do ordenamento vigente, isto é, o intérprete não busca a solução da lei e sim sua justificativa, com total liberdade para eleição do método hermenêutico⁴². A compreensão não é uma atividade pura, livre de contaminação e não há nem necessidade, nem possibilidade de se limpar o conhecimento humano dos elementos subjetivos e das mediações intersubjetivas⁴³.

    Isso quer dizer que o reconhecimento da inevitabilidade do subjetivismo do intérprete tem como consequência o relativismo da hermenêutica, tendo em vista que a realidade se oferece em perspectivas individuais?

    Diferentemente do que se pode levar a crer, Gadamer não confere superpoderes ao intérprete, ele não legitima a arbitrariedade no ato de interpretar⁴⁴, ao contrário, ele esclarece que o intérprete se apresenta inserido em uma tradição, repleta de pré-conceitos que o condicionam. A postura hermenêutica correta é aquela de total abertura para o outro, quer dizer, o intérprete deve estar disposto a deixar valer na pessoa algo contra ela própria. Ele deve agir para conservar e ampliar a intersubjetividade, atuando na busca do consenso, da plausibilidade e da idoneidade de suas interpretações⁴⁵.

    Gadamer propõe que o intérprete aja como um ser humano experimentado, pois este é sempre o mais radicalmente não dogmático, pois precisamente por ter feito tantas experiências e delas ter apreendido muitos aprendizados, ele está capacitado a fazer novas experiências e delas apreender e a experiência pressupõe que se desapontem algumas expectativas⁴⁶. Em outras palavras, experimentado é aquele consciente da finitude humana, aquele que sabe que não é senhor do seu tempo nem do futuro⁴⁷ e que reconhece os limites de toda previsão e a insegurança de todo plano.

    O intérprete deve se orientar pelo método de pergunta e resposta, pois a compreensão se manifesta como uma relação recíproca, semelhante a uma conversação em que o leitor compreende a partir de si mesmo e de suas experiências e o texto falará a partir do leitor⁴⁸. Para tanto, é essencial que haja um acordo a respeito das bases da conversação e que ela não seja uma mera representação, nem uma imposição do próprio ponto de vista, mas uma transformação rumo ao comum⁴⁹. A ênfase deve estar na força do argumento e não na busca pela vitória a qualquer custo pela argumentação⁵⁰.

    A dificuldade, por sua vez, está na ausência de método que ensine a perguntar, algo que só se adquire com a experiência. É essencial, contudo, que toda pergunta tenha um sentido de orientação, ela deve ser colocada sob determinada perspectiva, pois uma pergunta sem horizonte acaba no vazio. A pergunta deve pressupor abertura, mas também limitação, sendo que a essência do saber não consiste somente em julgar corretamente, mas em excluir o incorreto ao mesmo tempo e pela mesma razão⁵¹.

    Relembrar as noções de Hermenêutica Filosófica foi essencial, pois: reconhece-se de antemão o caráter limitador que exerce a tradição em que os conceitos de proporcionalidade e eficiência estão inseridos. Reconhecer a existência dos pré-conceitos que decorrem dessa tradição é importante para que se avance e se mantenha uma postura hermeneuticamente aberta capaz de levar à compreensão do que a proporcionalidade e a eficiência têm a dizer para além das tradições em que elas estão inseridas.

    Para avançar no diálogo é preciso ainda indicar a discussão tradicional existente a respeito da discricionariedade judicial no ato de interpretar, para em seguida expor o que, também tradicionalmente, proporcionalidade e eficiência econômica tem a oferecer para reduzir a arbitrariedade judicial no ato de interpretar, ou, pelo menos, para se excluir interpretações incorretas.

    1.2 UM INVENTÁRIO DOUTRINÁRIO A PROPÓSITO DA DISCUSSÃO TRADICIONAL A RESPEITO DA EXISTÊNCIA OU NÃO DE DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL

    A Hermenêutica Filosófica de Gadamer propõe que se verifique a tradição em inserida a discussão proposta com a finalidade de se compreender melhor os problemas em torno do questionamento. Para verificar as relações existentes entre os conceitos de eficiência e proporcionalidade e suas propostas para a realização da boa intepretação, serão abordados quatro autores tradicionais que auxiliam na compreensão da tradição positivista do ato de interpretar: Hans Kelsen, Herbert Hart e Ronald Dworkin)⁵², bem como dois autores que abordam a interpretação jurídica a partir da tradição do realismo jurídico (Alf Ross e Richard Posner)⁵³.

    A escolha se justifica na percepção de que a proporcionalidade foi desenvolvida por Robert Alexy dentro da tradição positivista da Europa Continental. Por outro lado, a eficiência econômica como parâmetro para atuação jurídica tem origem na análise econômica do direito, uma das escolas que surgiram a partir do realismo de tradição norte-americana. Enquanto os autores positivistas mencionados se preocupam com a fixação de uma metodologia de interpretação, os realistas destinam seus esforços para compreensão do funcionamento da atividade judicial.

    1.2.1 A discricionariedade judicial na tradição positivista: Hans Kelsen, Herbert Hart, Ronald Dworkin e Robert Alexy

    O item será dedicado a quatro autores considerados tradicionais na literatura jurídica brasileira a propósito do tema discricionariedade judicial. Suas ideias auxiliam na compreensão do imaginário acadêmico-jurídico brasileiro, pois são referências acadêmicas importantes⁵⁴ e suas ideias repercutem na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal⁵⁵. A abordagem, contudo, não tem por propósito investigar e comparar todos os pontos de convergência e divergência entre os autores, mas apenas indicar o seu entendimento a respeito da discricionariedade judicial e a existência ou não de mecanismos para limitá-la.

    O positivismo de Kelsen⁵⁶ foi construído em torno da ideia de que há uma relação de determinação ou vinculação entre uma norma de escalão superior e outra de escalão inferior, a exemplo da relação entre a Constituição e Lei. Entretanto, a vinculação nunca é completa, porque a norma superior não consegue vincular a norma inferior em todas as direções. A norma de escalão superior se apresenta como um quadro ou moldura destinando-se ao intérprete uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, dentro da moldura da norma interpretada⁵⁷. Consequentemente, é conforme o direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura e o juiz é autorizado a escolher entre a possibilidades reveladas pela sua razão. A propósito, Kelsen pronuncia-se da seguinte forma:

    Se o órgão A emite um comando para que o órgão B prenda o súdito C, o órgão B tem de decidir, segundo o seu próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não previu, e, em grande parte, nem sequer podia prever⁵⁸

    A citação ilustra a ideia de Kelsen de que toda aplicação de uma norma – seja ao tempo da sua edição, seja no ato de pura execução – é, em parte determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado. O texto da norma carrega consigo alguma delimitação de sentido, todavia, haverá sempre a indeterminação (a) em relação aos fatos que justificam a aplicação da norma, (b) em relação à consequência da norma ou mesmo (c) em relação a pluralidade de significações de uma palavra⁵⁹. Assim sendo, Kelsen expressamente reconheceu a impossibilidade de uma única interpretação correta⁶⁰, pois ela não envolve apenas um ato intelectual de clarificação e de compreensão, como se apenas a razão estivesse em atividade.

    Para Kelsen, o ato de interpretar envolve também um ato de vontade⁶¹ e seria inútil querer fundamentar uma interpretação com exclusão da outra, vez que a definição da decisão mais correta seria tema afeto apenas a política do direito⁶². Suas ideias provocaram uma série de debates em torno do tema, sendo que muitas das propostas que o sucederam pretendiam oferecer critérios para a redução do subjetivismo por ele certificado e legitimado.

    Em 1961, Herbert Hart⁶³ publica The Concept of Law⁶⁴, trabalho em que compartilha com Kelsen a ideia de que o Poder Legislativo não pode criar antecipadamente e de modo útil normas uniformes a serem aplicadas caso a caso. Segundo Hart, o Direito refere-se, preferencialmente, embora não exclusivamente, a classes de pessoas e a classes de condutas, coisas e substâncias, sendo imprescindível uma individualização posterior⁶⁵. Reconhece que o Poder Legislativo estabelece padrões muito gerais e que eles somente seriam capazes de regular alguns casos, não sendo aptos a delimitar, isoladamente, os casos extremos. Corrobora ainda com a ideia de Kelsen quanto à rejeição da existência de uma única resposta correta, todavia, defende que a resposta deve representar um equilibro razoável entre os diversos interesses conflitantes⁶⁶. Apesar da textura aberta que identificam as normas jurídicas, Hart defende, diferentemente de Kelsen, que o intérprete deve agir com discricionariedade e não total liberdade⁶⁷.

    A propósito da textura aberta das normas jurídica, Hart defende que os padrões de comportamento transmitidos pela legislação muito facilmente funcionam nos casos comuns, contudo, a norma se apresentará imprecisa em algum ponto, pelos mais variados motivos: (a) incapacidade humana de prever o futuro, (b) uso de termos classificatórios, (c) a ignorância do ser humano em relação aos fatos e a seus objetivos diante de um mundo infinito de características⁶⁸. Ele admite que muitas respostas serão construídas por autoridades administrativas ou judiciais, mas exige do intérprete a busca do equilíbrio entre interesses conflitantes, cujo peso varia de caso para o caso⁶⁹. Nas suas palavras:

    Todo sistema jurídico deixa em aberto um campo vasto e de grande importância para que os tribunais e outras autoridades possam usar a sua discricionariedade no sentido de tornar mais precisos os padrões inicialmente vagos, dirimir incertezas contidas nas leis ou, ainda, ampliar ou restringir a aplicação das normas transmitidas de modo vago pelos precedentes autorizados⁷⁰.

    As ideias de Hart também geraram intenso debate acadêmico, sendo que ele identificou em Ronald Dworkin⁷¹ um de seus interlocutores para o diálogo de ideias⁷². Ao debater com Dworkin, Hart é ainda mais assertivo ao afirmar que a textura aberta das normas implica uma incompletude do Direito e que haverá casos em que o texto normativo não oferecerá nenhuma resposta aos problemas em pauta e, para se chegar a uma decisão, os tribunais precisarão exercer a função legislativa limitada que ele denomina discricionariedade⁷³.

    Essa atividade legislativa atribuída ao intérprete, todavia, é restrita e diferente daquela imputada ao Poder Legislativo, pois o Juiz está sujeito a uma série de limitações que restringem as suas escolhas. A discricionariedade deve ser exercida apenas para resolver um caso específico, e não para proceder com reformas amplas⁷⁴. Os juízes estão autorizados a exercer que ele denomina poder intersticial, devendo agir como um legislador consciencioso, de acordo com suas convicções e valores⁷⁵.

    Ronald Dworkin sucedeu Herbert Hart na Chair of Jurisprudence na Universidade de Oxford e desenvolveu seus trabalhos em torno da crítica ao positivismo jurídico⁷⁶, apontando Herbert Hart como alvo específico quando preciso⁷⁷. Dworkin analisa o modelo de John Austin e mais detalhadamente o de Herbert Hart, considerado por ele o mais complexo, para concluir que ambos os modelos reconhecem que as regras jurídicas possuem limites imprecisos e que os casos problemáticos são resolvidos pelo exercício do poder discricionário dos juízes⁷⁸.

    A propósito da discricionariedade judicial, seu pensamento é construído a partir das seguintes noções: (a) a distinção entre regras, princípios e policies; (b) a possibilidade do intérprete alcançar uma resposta certa nos casos difíceis a partir da aplicação de princípios; (c) o repúdio a ideia de criação judicial de normas jurídicas e da discricionariedade judicial; (c) o direito como integridade, exigindo que as normas sejam moralmente coerentes, a partir de argumentos que respeitem o conjunto de direito existente⁷⁹.

    Dworkin não compartilha com Hart a ideia de textura aberta das normas e discricionariedade forte que autorizaria o Juiz a decidir desvinculado de qualquer padrão normativo. Ele distingue três padrões de orientação: as regras, os princípios e as policies. Seu argumento principal é:

    [...] quando os juristas raciocinam ou debatem a respeito de direitos e obrigações jurídicas, particularmente naqueles casos difíceis nos quais nossos problemas com esses conceitos parecem mais agudos, eles recorrem a padrões que não funcionam como regras, mas operam diferentemente como princípios, políticas ou outros tipos de padrões⁸⁰.

    As Policies são definidas como padrões que estabelecem um objetivo a ser alcançado, como uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade ou mesmo a proteção contra às mudanças adversas⁸¹, isto é, as policies estabelecem uma exigência de justiça ou equidade ou alguma dimensão da moralidade⁸².

    Os princípios, por sua vez, possuem uma dimensão de peso ou importância, sendo que apenas no caso concreto será possível aferir qual o mais relevante para a solução do problema⁸³. Os princípios serão frequentemente objeto de controvérsia, visto que, simultaneamente válidos, e o desafio estará em resolver um conflito levando-se em consideração a força relativa de um princípio em comparação com o outro⁸⁴.

    Quanto às regras, Dworkin entende que a sua diferença para os princípios jurídicos é de natureza lógica e que eles se distinguem quanto à natureza da orientação que oferecem⁸⁵. A regra é aplicável de maneira disjuntiva, no modelo tudo ou nada, sendo válida ou inválida. Os princípios implicam diferenças de peso, não comportando exceções enumeráveis, e não estabelecem uma relação condicional automática se-então ⁸⁶.

    Dworkin reconhece, todavia, que o texto normativo nem sempre deixa claro se ele é uma regra ou um princípio⁸⁷ e que muitas vezes os tribunais citam os princípios para justificar a adoção e aplicação de uma nova regra que não existia antes do caso ser decidido⁸⁸. Dos exemplos tirados de sua obra⁸⁹, pode-se concluir que o caso difícil⁹⁰ somente será constatado a partir da análise do caso concreto e da forma como construída a argumentação daquele que leva seu caso ao tribunal⁹¹.

    Para Dworkin, o poder discricionário do juiz é um espaço vazio, circundado por uma faixa de restrições e afetado pelas características do contexto – ao modo de Gadamer⁹². Distingue a existência da discricionariedade fraca e forte. A discricionariedade fraca se realiza a partir de padrões pré-estabelecidos⁹³ ou na hipótese em que o ato não está sujeito a revisão. Já a discricionariedade em sentido forte se apresenta quando a decisão não é controlada por um padrão formulado pela autoridade particular e sim por padrões de racionalidade, equidade e eficácia⁹⁴.

    Dworkin critica aqueles que entendem que o juiz tem total liberdade para decidir ou que ele não está vinculado a qualquer prévio padrão jurídico obrigatório. Se realmente houvesse essa total liberdade, seria necessário reconhecer que nos casos difíceis o juiz estabeleceu a regra por ato de poder discricionário, aplicado ex post facto⁹⁵. Para ele, o positivista deve reconhecer que existem padrões obrigatórios para os juízes que estabelecem quando um juiz pode e quando ele não pode revogar ou modificar uma regra estabelecida⁹⁶. Nem o juiz, que deve proferir a melhor decisão em determinado caso, nem o Sargento, que deve escolher os soldados mais experientes, possui poder discricionário. Ambos têm a obrigação de alcançar uma compreensão e agir com base nela⁹⁷.

    Quando alguém afirma que uma regra é obrigatória, está implícito que ela é sustentada por princípios que os tribunais não podem desconsiderar e que tais princípios superam a importância de outros que contém razões em favor da mudança⁹⁸.Tais princípios não estariam sujeitos a regra de reconhecimento de que falava Hart, visto que não decorrem do Poder Legislativo ou de precedentes vinculantes, mas da compreensão do que é adequado, conforme os membros da profissão e o público ao longo do tempo⁹⁹.

    Ainda para Dworkin, é possível modificar ou revogar uma regra quando houver o favorecimento a algum princípio¹⁰⁰. Essa modificação ou revogação não pode depender apenas das preferências pessoais do juiz e deve respeitar alguns padrões importantes como a doutrina estabelecida, a deferência ao Poder Legislativo e o respeito aos precedentes¹⁰¹. Todavia, ele reconhece a sua incapacidade de conceber uma fórmula para testar quanto e que tipo de apoio institucional seria necessário para transformar um princípio em princípio jurídico, visto ser necessário debater em torno de um conjunto de padrões¹⁰² que não admitiria a sua aglutinação em uma única regra¹⁰³.

    Dworkin, diferentemente do que apregoava Hart, rejeita a ideia de que nos casos difíceis os juízes devem agir como legisladores delegados, pois não cabe ao juiz inventar novos direitos retroativamente¹⁰⁴. Ele também condena o intuicionismo, bem como decisões que não podem fazer parte de uma teoria abrangente dos princípios e das políticas gerais¹⁰⁵. Para ele, existirá uma obrigação jurídica sempre que as razões que sustentam a sua existência sejam mais fortes do que as razões pela inexistência¹⁰⁶, então, não há um poder discricionário e sim um dever imposto aos juízes de levarem em consideração os princípios¹⁰⁷.

    Afastada a hipótese de os juízes agirem como legisladores delegados, Dworkin discute se nos casos difíceis os juízes poderiam recorrer, indistintamente, a argumentos de princípios ou de políticas. Ele patrocina a tese de que as decisões judiciais devem ser geradas por princípios e não por políticas, pois os argumentos de política devem justificar apenas as decisões políticas. Por exemplo, a concessão de um subsídio a determinada área econômica é uma decisão política e o Juiz não tem liberdade para fazer valer sua posição política contrária para avaliar a concessão do referido subsídio em determinado caso concreto. Por outro lado, os argumentos de princípios justificam a decisão a partir do respeito ou da garantia de um direito de um indivíduo ou grupo, como ocorre as leis contra a discriminação¹⁰⁸.

    Ante a falta de legitimidade democrática do Poder Judiciário, as decisões baseadas em policies devem ser operadas por algum processo político que ofereça uma expressão exata dos diferentes interesses a serem levados em consideração. Não se deve sacrificar os direitos de um homem inocente em nome de algum novo dever, criado depois do fato¹⁰⁹. Isso não ocorreria com as decisões baseadas em princípios¹¹⁰, pois um argumento de princípio somente pode oferecer uma justificativa para uma decisão particular se for possível mostrar que o princípio citado é compatível com decisões anteriores e com aquelas que a instituição está preparada para tomar em circunstâncias hipotéticas¹¹¹.

    Dworkin reconhece que a resposta correta e inquestionável somente pode ser alcançada pelo Juiz Hércules¹¹², um juiz capaz de construir um esquema de princípios abstratos e concretos capazes de justificar de maneira coerente todos os precedentes do direito costumeiro com as disposições constitucionais e legislativas¹¹³. O Juiz Hércules verificará nos casos difíceis a natureza do problema e perguntará qual a interpretação que vincula de modo mais satisfatório a linguagem utilizada pelo poder legislativo. Ele reconhece a inevitabilidade do papel a ser desenvolvido pelas convicções pessoais do intérprete, todavia, exerce seu próprio juízo para determinar os princípios de moralidade política que as leis e as instituições da comunidade pressupõem para que eles sejam aplicados ao caso que lhe é apresentado. Em sua decisão, Hércules não deve buscar o estado mental dos legisladores e sim uma teoria política especial que justifique uma determinada interpretação como melhor do que qualquer outra alternativa¹¹⁴.

    Do que se analisou de Dworkin, pode-se considerar que a sua distinção entre policies, princípios e regras foi um marco para a teoria jurídica ocidental, pois boa parte dos estudiosos do Direito partem atualmente de tal distinção, seja para acatá-la, seja para criticá-la. Por outro lado, a ideia de resposta correta a ser alcançada apenas pelo Juiz Hércules foi objeto de inúmeras críticas. Tais críticas serão expostas com base nos autores que se seguirão, sendo bastante comum a comparação existente entre as abordagens de Dworkin e Robert Alexy.

    Os estudos desenvolvidos por Robert Alexy¹¹⁵ englobam preocupações a respeito da teoria da argumentação¹¹⁶, a relação entre Direito e Moral¹¹⁷, bem como a problemática a respeito dos direitos fundamentais¹¹⁸. A análise abaixo se concentra em dois pontos: a discussão a respeito da existência ou não da discricionariedade judicial, bem como da forma de resolução de colisões entre princípios e regras. Em momento posterior, serão abordados os contornos jurídicos da máxima da proporcionalidade.

    Dentro da discussão em torno da discricionariedade judicial, Robert Alexy recepciona parte da diferenciação realizada por Dworkin ao considerar que toda norma é ou uma regra ou um princípio, não acatando, contudo, a ideia de policies¹¹⁹. Para Alexy, os princípios não são normas que estabeleçam exatamente o que deve ser feito e sim mandados de otimização, permissões ou proibições que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, desde que respeitadas as possibilidades jurídicas e fáticas existentes, isto é, os princípios podem ser satisfeitos em graus variados a depender do que é fática e juridicamente possível. Em outras palavras, os princípios não são mandamentos definitivos, mas apenas orientações prima facie que podem ser afastadas por razões antagônicas¹²⁰.

    Por outro lado, as regras são sempre satisfeitas ou não, manifestando-se como razões definitivas no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível¹²¹. Assim, a distinção entre regras e princípios seria qualitativa, e não de grau. Uma das teses principais de Alexy é a de que os direitos fundamentais têm natureza de princípios e, como tal, deve ser considerados mandamentos de otimização¹²².

    Outro problema central enfrentado por Alexy diz respeito à tensão existente entre princípios e entre regras. A propósito do conflito entre regras, Alexy defende (a) a introdução de uma cláusula de exceção em uma das regras ou (b) a declaração de invalidade de uma delas, enfatizando que o conceito de validade jurídica não é graduável. Por exemplo: pode-se introduzir uma exceção à regra de que é proibido sair da sala antes de soar o sinal, a partir de outra regra que ordena a saída da sala quando soar o sinal de incêndio¹²³.

    Já em relação aos princípios, a colisão deve ser resolvida de maneira totalmente diversa. Um dos princípios terá que ceder, sem que o princípio cedente seja declarado inválido ou nele seja introduzida uma cláusula de exceção. Um dos princípios terá precedência em relação ao outro naquele determinado caso, pois, sob outras condições, a resolução poderá ser diversa. No caso concreto, os princípios têm pesos diferentes e aqueles com maior peso têm precedência, então, o conflito não se dá na dimensão da validade e sim na dimensão de peso¹²⁴.

    A metodologia proposta por Alexy para resolver as colisões entre normas de direitos fundamentais é o sopesamento a partir do qual será definido qual norma terá maior peso no caso concreto¹²⁵. Em linhas gerais: (a) deve-se verificar a consequência da aplicação isolada de cada um dos princípios, com a finalidade de se constatar ou não uma contradição; (b) em seguida, deve-se averiguar se a contradição não é resolvida com a declaração de invalidade de um dos princípios ou se será resolvida por meio da introdução de uma exceção. (c) por fim, deve-se estabelecer uma relação de precedência condicionada¹²⁶ entre eles, com base nas circunstâncias do caso concreto, fixando-se as condições sob as quais um princípio tem precedência em face do outro¹²⁷.

    Em outras palavras, a lei de colisão/sopesamento propõe: (a) avaliação das consequências da não satisfação de um princípio, (b) a avaliação da importância do segundo princípio e (c) a aferição se a importância do segundo princípio justificaria ou não a afetação do primeiro¹²⁸.

    Alexy aplica o referido procedimento na análise do caso Lebach para concluir pela correção da decisão que proibiu a repetição de notícia sobre grave crime tendo em vista a ausência de interesse atual pela informação e o risco que a repetição traria à ressocialização do autor¹²⁹.

    O resultado do sopesamento é justamente a regra de direito fundamental atribuída, isto é, as condições sob as quais um princípio tem precedência em face de outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a consequência jurídica do princípio que tem precedência¹³⁰. Dessa maneira, Alexy afasta-se da ideia do Juiz Hércules, pois considera impossível estabelecer uma única lista de prioridades, diante da grande dificuldade em se encontrar o consenso¹³¹.

    Apesar de negar a ideia da única resposta correta de Dworkin, Alexy não repudia a ideia de correção de uma resposta e que esta, normalmente, não é única. A correção da resposta é uma finalidade a se aspirar e ele admite que os participantes em um discurso prático formulam a pretensão partindo da ideia de que sua resposta é a única correta¹³².

    Alexy reconhece as limitações de todo discurso prático, dentre eles especialmente o Direito, todavia, investe todos os seus esforços na busca de se estabelecer as premissas para propor o que seria uma resposta controlável envolvendo direitos fundamentais¹³³. Entende que a explicação do conceito de argumentação jurídica racional se dá mediante a descrição de uma série de regras a serem seguidas e de formas que devem ser adotadas para se satisfazer a pretensão de correção do discurso jurídico¹³⁴.

    Com isso, Alexy propõe uma teoria do discurso voltada para a redução da irracionalidade ou, porque não dizer, da discricionariedade judicial no ato de interpretar. Sua teoria parte de algumas premissas: (a) as afirmações jurídicas e decisões judiciais somente podem ser consideradas corretas de acordo com a ordem jurídica vigente, levando-se em conta o precedente, a lei e a dogmática¹³⁵; (b) a racionalidade discursiva não pode determinar o conteúdo da decisão, mas pode apontar o motivo de sua incorreção e a medida da sua crítica¹³⁶. (c) o discurso jurídico tem várias limitações,¹³⁷ todavia, elas não afetam a ideia de que o discurso jurídico é uma espécie de discurso prático, e, como tal, o próprio êxito do pedido tem relação com a pretensão de correção. (d) a interpretação com pretensão de correção é resultado de um procedimento definido por meio de regras do discurso¹³⁸.

    De uma maneira geral, as ideias de Alexy, especialmente de princípios como mandados de otimização implicam não propriamente a busca da única resposta correta, mas sim a exclusão de medidas inadequadas e a vedação de sacrifícios desnecessários. Para alcançar tais objetivos, a argumentação funciona como orientadora da otimização e do sopesamento como limite à discricionariedade judicial.

    Kelsen, Hart, Dworkin e Alexy são autores tradicionais que auxiliam na compreensão da tradição jurídico brasileira. Suas ideias foram estudadas por autores nacionais, com a finalidade de aplicá-las ou adequá-las no cenário jurídico brasileiro e, da pesquisa realizada, três autores se destacaram: Marcelo Neves, Lênio Luiz Streck e, em especial, Inocêncio Mártires Coelho.

    Marcelo Neves é autor de livro voltado especificamente para a discussão a propósito da distinção entre regras e princípios¹³⁹. Já Lênio Luiz Streck utiliza a Hermenêutica Filosófica de Gadamer como marco teórico da análise da atividade judicial brasileira¹⁴⁰. Ambos fornecem importantes subsídios para melhor estabelecer os contornos de como deve ser compreendida a atividade interpretativa dos juízes no Brasil, além do que ambos tratam especificamente da questão relativa à discricionariedade judicial.

    No livro Entre Hidra e Hércules, Marcelo Neves¹⁴¹ estuda os critérios tradicionais de distinção entre regras e princípios, analisando, especialmente, as ideias de Ronald Dworkin e Robert Alexy com a finalidade de construir o seu próprio parâmetro. De uma maneira geral, conclui que a propostas de Dworkin e Alexy são muito simples diante da complexidade da sociedade contemporânea, pois são tantas as variáveis sociais e jurídicas que levam a determinação da solução dos casos difíceis que não se pode contar com qualquer critério rígido ou outro que conte com o convencimento do auditório universal ou da persuasão do auditório particular dos envolvidos diretamente com a discussão¹⁴².

    Marcelo Neves entende que Dworkin desenvolveu sua teoria dentro de uma tradição tipicamente estadunidense¹⁴³ e que ele não apresenta com clareza a distinção entre Moral e Direito, o que torna a teoria não verificável e, por isso, insuficiente para compor uma teoria geral do direito¹⁴⁴. Censura ainda a figura do Juiz Hércules, por ele considerado um ser monológico, solipsista, simplista e um normativista idealista, que não reconhece seus próprios limites. Especialmente, em relação aos casos difíceis, o problema não residiria na discricionariedade exercida pelos Juízes e sim na forma seletiva da estruturação da complexidade¹⁴⁵.

    Quanto à Alexy, Marcelo Neves compartilha com ele a ideia de que a ponderação e o sopesamento se apresentam como método adequado para resolver a colisão entre princípios ou mesmo entre normas em geral¹⁴⁶, todavia, ele entende que a relação regra-regra e regra-exceção também comportaria uma dimensão de peso¹⁴⁷. Ele entende que a ponderação não deve se limitar a análise dos interesses individuais envolvidos, bem como não deve negligenciar seus impactos na relação entre esferas sociais e os efeitos da decisão em longo prazo ou mesmo a incomensurabilidade das perspectivas dentro do processo de argumentação jurídica¹⁴⁸.

    Especificamente em relação a distinção entre regras e princípios, Marcelo Neves considera ser demasiadamente singelo estabelecer que sua distinção decorra diretamente do texto previsto na Constituição ou em leis esparsas. Para a classificação da norma, o intérprete muitas vezes precisa recorrer a mais de um enunciado normativo além do que o próprio texto isolado pode conter duas ou mais normas¹⁴⁹. Ele também não considera adequada a diferenciação a partir do caráter teleológico ou valorativo dos princípios, uma vez que tanto há princípios quanto regras que se referem imediata, direta e explicitamente a valores e fins, como há princípios que não se caracterizam por essa maneira de referência a eles¹⁵⁰. Conclui ser difícil diferenciar, abstratamente, uma regra de um princípio, o que será possível apenas no momento da concretização/aplicação da norma¹⁵¹.

    Marcelo Neves entende que a distinção entre regra e princípio não causa maiores discussões em problemas cotidianos, como na aplicação burocrática ou no exercício corriqueiro da autonomia privada. Em tais ocasiões as normas são seguidas por hábito, por terem sido internalizadas ou mesmo porque respeitadas diante de um cálculo racional de custos e benefícios orientado pelo peso da sanção em caso de descumprimento¹⁵².

    A definição da espécie normativa ganha importância nas hipóteses em que se faz necessário recorrer à argumentação para construção da melhor decisão em caso de conflitos, pois não há norma pronta e previamente acabada a ser aplicada como regra ou princípio. Aquilo que se conhece como princípios ou regras nos textos normativos¹⁵³ não correspondem necessariamente à diferença entre princípios e regras na cadeia argumentativa¹⁵⁴.

    Marcelo Neves propõe a superação do debate, muitas vezes estéril, sobre a diferença entre princípios e regras e sugere que os esforços sejam envidados na construção de uma teoria das normas constitucionais que sirva a uma concretização, juridicamente consistente e socialmente adequada, dos respectivos princípios, regras e híbridos normativos no contexto brasileiro¹⁵⁵. Para ele, os princípios devem ser considerados como normas no plano reflexivo e que viabilizam o balizamento, a construção ou reconstrução de regras, enquanto as regras são condições de aplicação dos princípios à solução dos casos¹⁵⁶.

    Reconhece, por sua vez, que há uma grande dificuldade prática na aplicação imediata de decisões atribuídas diretamente a dispositivos constitucionais, diante de sua excessiva falibilidade ao deixar largo espaço para que regras constitucionais desenvolvidas sejam superadas pela indicação de outros princípios aplicáveis¹⁵⁷. Adverte para a constatação de que a argumentação principiológica confere maior liberdade para o cometimento de abusos no processo de concretização da norma¹⁵⁸, pois a cada argumento baseado em princípio surge uma nova cabeça em Hidra¹⁵⁹, o que contradiz a ideia de única resposta correta a ser estabelecida pelo Juiz Hércules de Dworkin¹⁶⁰.

    Diante da única resposta correta do Juiz Hércules e as várias respostas possíveis do Juiz Hidra, Marcelo Neves indica ser necessário um juiz capaz de desparadoxizar o enlace circular entre princípios e regras nos casos constitucionais de maior complexidade, o Juiz Iolau¹⁶¹. Ele não se subordina desorientadamente ao incontrolável poder de regeneração do poder dos princípios e também não se deixa impressionar pela retórica principiológica e pelos interesses individuais vinculados ao poder, dinheiro, religião, parentesco, amizades, boas relações etc. Iolau também não se prende rigidamente a regras, bem como não isola o direito do contexto social. Sabe que deve recorrer, em certos casos, à técnica da ponderação, a ser utilizada com bastante parcimônia, diante do risco da sua trivialização nos casos de sua utilização ad hoc¹⁶².

    Iolau é

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