Mulher de palavra: encantada, mal dita, bem dita
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Mulher de palavra - Eliane de Christo
PREFÁCIO
Neste livro, fala-se da mulher, ou melhor, de mulheres e de um modo muito particular. Ele não é, posso adiantar, um tratado sobre mulheres, mas mergulha no feminino através dos transbordamentos de seus corpos e de seus ditos... bem ditos, benditos; mal ditos, malditos. Eliane de Christo pode escutá-los e soube costurar, com fineza bem traçada, figuras e falas carregadas das vivências de vidas vividas na noite das ruas sem teto e sem piedade; nas encenações que cercam o cenário íntimo das rezas de benzedeiras, que transportam pessoas para uma outra cena. É como psicanalista que Eliane de Christo escreve sobre mulheres que conheceu de perto e as aproxima daquelas que estão imortalizadas na fundação da Psicanálise, as histéricas, que foram decifradas por Freud.
O elo de passagem da intimidade que circunda as confissões e esperanças de cura, recebidas pelas benzedeiras, para a intimidade das histéricas, retida em palavras caladas, escavadas pela escuta de Freud para o não-dito no que é dito, que o corpo diz, é feito pelo fulgurante texto de Lévi-Strauss que faz trabalhar o poder da linguagem nos efeitos da palavra nos rituais xamânicos. É mesmo Lévi-Strauss que indica a aproximação entre estes rituais e a eficácia simbólica
que ocorre nos consultórios psicanalíticos.
Para Eliane de Christo, é a palavra falada ou calada das mulheres que contam, que sempre contaram muito desde a infância, quando, fascinada, assistia calada as rimas das rezas cadenciadas e ritmadas da avó benzedeira, que mudava de modos ao deixar para trás o jeito compenetrado da dona de casa e assumia a postura teatral de quem empresta o corpo e a voz ao iniciar as benzeduras. Eliane em Mulher de palavra: encantada, mal dita, bem dita afirma: minha avó, com sua voz postada nas rezas de seus benzimentos, abriu meus ouvidos para a beleza das palavras encantadas
– beleza das palavras que é trabalhada no livro pela função poética de Jakobson, um linguista que afetou Lacan e deixou rastro no pensamento deste psicanalista, que aproxima, no seminário O Ato Analítico, a intervenção do analista à ordem da poesia.
A menina virou escritora de contos para crianças e escreve sobre mulheres, sobre meninas de rua, com quem conviveu como jornalista, registrando dores de seus corpos sofridos e suas falas distorcidas, estranhas, usadas para segredar. Por vezes, estas falas mal ditas eram entrecortadas por sinais de alerta sobre perigos. Nesse tempo estruturou-se na autora uma posição ética e política de compromisso com aqueles com vozes silenciadas.
Esta trilha a leva a um mestrado sobre Anália Franco, jornalista e escritora, mas também uma educadora profundamente envolvida com o problema de mulheres e com presença pública ativa na busca de sustentação de seus direitos: deu voz a mães trabalhadoras, viúvas, mulheres separadas carentes, prostitutas desamparadas. O feminino ganha extensão e peso neste encontro e se aprofunda em outro, desta vez com Clarice Lispector, que, como ela diz soube se debruçar sobre a alma humana e soube tratar a insuficiência de respostas objetivas para a dor de ser mulher
. Com Clarice, refaz-se o elo com a palavra encantada da avó, e faz-se o elo com a Psicanálise.
Estes encontros de Eliane de Christo com as mulheres e suas palavras: encantadas, mal ditas, bem ditas, costuram passo a passo reflexões que não se restringem a discussões acadêmicas já que impregnadas pelas vivências da autora e, como mencionado acima, por uma posição ética frente a questão da mulher. Gostaria de reiterar que este livro enlaça de maneira consequente a problemática do feminino na linguagem, como seu título indica, e o faz num jogo delicado que coloca em relação Psicanálise e Linguística de modo cuidadoso e eficiente. Quero, contudo, dizer, que este trabalho é complexo: nem autobiográfico, nem sociológico, nem estritamente acadêmico. A escuta da psicanalista faz-se notar de maneira forte e sutil neste livro. Gostaria de dizer, finalmente, sobre a oportunidade de sua publicação nestes tempos em que a misoginia ganha força.
MARIA FRANCISCA LIER-DEVITTO
LINHAS
PRELIMINARES
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem
a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
MANOEL DE BARROS
A terapia literária de Manoel de Barros bem poderia ser lugar de escuta para esta fala de Clarice Lispector: Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que te falo nunca é o que te falo e, sim, outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e, no entanto, vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão
. Dentro de mim, Freud participaria do diálogo acrescentando: diga tudo o que lhe vier à mente. Aja como se, por exemplo, você fosse um viajante sentado à janela de um vagão ferroviário, a descrever para alguém que se encontra dentro as vistas cambiantes que vê lá fora
.
Criação literária e psicanálise, eis aqui o que sustém meu desejo. Quando me aproximei da ideia de fazer o doutorado, tinha como proposta inicial trabalhar os efeitos que uma análise provoca no sujeito e sustentava a ideia de que um processo analítico é também um modo de fazer poesia. Ali tomei de empréstimo matéria de poesia
de Manoel de Barros, como um desdobramento do que chamei (Divã)*neando. Nessa perspectiva, analisar-se é entregar-se à poesia de ser, de modo que o que é dito no divã pode ser recolhido como matéria de poesia
.
Do desarrumar a linguagem da terapia literária de Manoel de Barros nasceu o título do meu projeto para o ingresso no doutorado, que passou a se chamar Sobre desarranjos na linguagem: linguística e psicanálise, e se propunha a pesquisar e refletir sobre a relação entre linguagem e psicanálise, que, como se sabe, é o campo da palavra
. Não de uma palavra qualquer, mas daquela que vem carregada de desejo. Daí se depreende o interesse que um psicanalista possa ter pela linguagem poética e um estudioso da linguagem, pela psicanálise.
Entre impasses e derivas desta pesquisa, me deparei com a dificuldade em se chegar a uma pergunta plena que pudesse dar pistas sobre uma direção precisa do trabalho. Fui atravessada pela angústia quando, finalmente, me dei conta da impossibilidade de fugir do meu desejo: poder discutir a palavra como matéria-prima
comum ao ofício do poeta, do escritor e do psicanalista. É preciso dizer que comum é a relação com a palavra, mas distinto é o destino dessa relação.
Se a pergunta fundante da minha pesquisa levou tempo para ser construída, a palavra do poeta e a musicalidade da prosa perseveraram em mim. E é a PALAVRA que me dá a continência necessária, suporte de existência, muito provavelmente pelo lugar de afeto em que a guardo. Nos primeiros anos de infância, não fui apresentada a livros em função da vida precária no sítio. A casa era bem simples, foi meu avô quem a construiu; esse era seu ofício. Eu nasci ali, de parto natural, tendo como parteira minha avó. Nasci ao lado de um poço artesiano. Era desse poço a água para beber, cozinhar, tomar banho, lavar roupa. Também vinha dele a água para regar as plantas e flores cultivadas pela minha avó, assim como aquela usada nas benzeduras. Este sítio ficava num lugar chamado Marmeleiro. Não havia luz, os vagalumes eram os postes
a iluminar a noite.
Mas tive a sorte de ter essa avó que, para além de benzedeira, era uma exímia contadora de histórias, de causos e de folclores. Projetadas na parede pela luz produzida pelo lampião a gás, as sombras davam mais emoção às histórias que vinham da voz da minha avó. O seu dizer nas histórias e nas rezas no ato do benzimento, tinham sabor de cuidado e produziam em mim uma espécie de comoção, sobretudo os benzimentos, que eu testemunhava com frequência. Minha avó, ainda que articulasse palavras que não eram suas, mitigava a dor que podia ser mitigada, reduzindo um sofrimento.
Olhando para trás, só me dou conta agora de que fui testemunha de uma eficácia simbólica* desses ritos, nos quais, como está descrita por Lévi-Strauss, o xamã fornece à sua paciente uma linguagem na qual podem ser imediatamente expressos estados não-formulados, e de outro modo informuláveis
.¹
Um desses benzimentos era a costura
. Com pedaço de pano, agulha e linha nova nas mãos, o bem dizer da minha avó iniciava com o nome da pessoa doente, seguido da pergunta; o que é que eu coso?
. Esse pano era colocado na parte do corpo da qual o doente se queixava. Após a pergunta, a pessoa recitava três vezes: carne rendida, osso quebrado, nervo torcido
. Na sequência, minha avó continuava: Esse mesmo eu benzo e coso, carne quebrada que se solda, nervo torto que se endireita, osso rendido que volte ao seu lugar
. O pano, simulando a parte do corpo na qual o doente sentia dor, ia sendo marcado pela linha e pela fala proferida. A linha com a agulha escrevia
no pano. Essa escrita
era constituída por mais ou menos nós, a depender da gravidade do caso. Ao final de três dias de benzimento, os nós ganhavam caráter de alinhavo e a pessoa dizia sentir-se bem novamente. No segundo capítulo discuto mais essa questão.
Esse é um exemplo de tantos outros que me recordo. Nesse sentido, a cura xamânica, diz Lévi-Strauss, se situa a meio caminho entre a medicina orgânica e as terapêuticas psicológicas como a psicanálise. Sua originalidade, está em aplicar a desordens orgânicas um método muito próximo da psicanálise
, atesta.
____________
Mais tarde, aos seis anos, quando entrei escondida pelo portão da escola durante o recreio e me deparei, na sala de aula, com um quadro negro repleto de inscrições desconhecidas até então, encontrei um mundo novo, pleno de letras desenhadas. Esse ato subversivo me proporcionou o contato com as palavras escritas. Primeiro a minha avó, com a sua transmissão oral e a recorrente repetição das rezas; e depois as professoras, na alfabetização, foram figuras que escreveram em mim o gosto pelas muitas dimensões nas quais a palavra se insere.
O jornalismo veio como profissão, na qual permaneci por cerca de vinte anos – em paralelo, estive envolvida em movimentos sociais, particularmente aqueles voltados para meninos e meninas em situação de rua –, e a palavra e as histórias de pessoas sempre foram meu foco de interesse, seja nas entrevistas jornalísticas, seja no convívio com as crianças e adolescentes. Muito provavelmente porque o silenciamento me dói, tomei gosto por abrir palavras e fazê-las circular.
DÉCADA DE 1990 –
MENINOS SÃO EXTERMINADOS
E MENINAS SÃO PROSTITUÍDAS
Um dos movimentos dos quais participei de forma mais ativa foi o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, durante a década de 1990, ainda em Curitiba. O MNMMR surgiu em 1985, idealizado por um grupo de educadores, políticos, ativistas e religiosos que defendem os direitos das crianças e dos adolescentes marginalizados, vítimas de violência de todo tipo, física ou psíquica. Em 1991, o movimento se engajou nos esforços para a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a investigar extermínio de crianças e adolescentes no Brasil
.
O fenômeno do extermínio de meninos de rua no Brasil estava acentuado naquele momento. Vinha ocorrendo desde 1985 e se estenderia. Por cerca de dez anos, grupos de extermínio agiram num cenário em que o Estado se omitia e a sociedade civil era indiferente. Essas práticas criminosas não disfarçavam a presença de um higienismo à paisana. Como jornalista, fazia matérias e convivia com essas pautas; como militante do MNMMR, me embrenhava pelas ruas junto a outros colegas e batia à