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Autismo.S: Olhares e Questões
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Autismo.S: Olhares e Questões

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About this ebook

Esta obra discute as possibilidades de compreensão do autismo, precisando seus aspectos históricos e teóricos e, principalmente, a importância de o autismo ser dimensionado como uma pluralidade de possibilidades. Parte das contribuições de Leo Kanner e Hans Asperger e traça um panorama que, no século XX, centra os diagnósticos em critérios genéricos — classificações diagnósticas como a Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS), e o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), da American Psychological Association (APA). Esta primeira análise chega até a CID 11, adotada mundialmente em 2022. Em seguida, a partir da Psicanálise, a obra apresenta reflexões sobre aspectos teóricos e metapsicológicos que sustentam a possibilidade de se repensar o autismo como uma outra forma de ser para si e estar com o outro que indica desde a transição contemporânea de humanização até os limites da escuta e do cuidado com as condições particulares de ser autista. Nessa particularidade, introduz ao leitor o Projeto OLHAR, que, na avaliação de bebês, a partir do Protocolo PREAUT, contabilizou 4.745 atendimentos em três cidades do sul de Minas Gerais e suas microrregiões (Poços de Caldas, Três Pontas e Varginha). Desse estudo, uma indicação da importância de se pensar no caso a caso para compreender os riscos que se colocam em momentos de impasses na humanização; mas sem a pressa diagnóstica. Acerca das questões do autismo, apresentam-se debates, discussões e reflexões de profissionais que atuam no atendimento clínico e psiquiátrico de crianças diagnosticadas como autistas. Sobre a situação atual das crianças, problematizando o diagnóstico de crianças pandemizadas, tal discussão é essencial.
LanguagePortuguês
Release dateJun 23, 2022
ISBN9786525020808
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    Autismo.S - Roberta Ecleide de Oliveira Gomes Kelly

    14094_Roberta_Ecleide_capa.jpg

    AUTISMO.S

    Olhares e questões

    Editora Appris Ltda.

    1.ª Edição - Copyright© 2022 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis n.os 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.

    Catalogação na Fonte

    Elaborado por: Josefina A. S. Guedes

    Bibliotecária CRB 9/870

    Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT

    Editora e Livraria Appris Ltda.

    Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês

    Curitiba/PR – CEP: 80810-002

    Tel. (41) 3156 - 4731

    www.editoraappris.com.br

    Printed in Brazil

    Impresso no Brasil

    Roberta Ecleide de Oliveira Gomes Kelly

    (org.)

    AUTISMO.S

    olhares e questões

    AGRADECIMENTOS

    Um trabalho como este não se faz sem muitas leituras, muitas parcerias e, principalmente, a articulação de várias ideias que divergem, conflitam e se confrontam. Nesse sentido, o primeiro agradecimento é para cada autor: Alessandra, Carolina, Isabela Garcia, Isabela Sâmia, João, Júlio, Laís e Wericson. Parceiros de longa data ou mais próxima, trouxeram seus pensamentos para a possibilidade de uma construção conjunta.

    Na medida do possível, tentamos reunir estes pensamentos em torno do eixo de uma reflexão comum: não se pode diagnosticar o autismo de forma genérica. São muitos os autismos: na apresentação clínica, na interação com os tratamentos, nas diretrizes dos resultados. Sendo assim, os olhares devem ser muitos também.

    Todavia, partimos da Psicanálise. Isso implica em uma ética, a de que o sujeito (do discurso) se apresente mesmo nas situações de autistas não verbais. Agradeço aos autistas e suas famílias que, em nossa clínica, obrigaram-nos a uma escuta outra.

    Agradeço, finalmente, a uma parceira que está sempre a meu lado nas discussões e nos estudos: Lucimara Bacetti. Como sabe, foi com ela que meus estudos sobre o autismo começaram.

    E essa aventura só começou…

    sindelar

    em cada versão,

    uma história se equivoca.

    e também se perde.

    tornado indistinto,

    o registro se corrompe

    pelo manuseio.

    então, numa fímbria,

    um pesquisador descobre

    a lição do tempo:

    a grandeza se resume

    numa imagem ou num nome.

    Memória Alheia

    Márcio Cenzi (2018)

    Apresentação

    Este livro apresenta discussões atuais sobre o autismo que congregam vários saberes. Baseia-se em propostas e reflexões que testemunham a importância de se trazer o tema à luz da perspectiva psicanalítica de ser o autismo uma possibilidade de estar com o outro e ser para si mesmo.

    Os problemas, as dificuldades e os impasses na humanização do autismo não podem excluir o que viabiliza sua existência, assim como para todos: aprender a cuidar de si e do outro, ter autonomia e conquistar a independência, que, no extremo, pode até se fazer com limites. Todavia, é necessário que o processo ensinativo-educativo sustente chances de uma existência que, no âmbito das diferenças, traga sustentabilidade ao autista.

    Escuta, inclusão, diferenças são temas que perpassam esta obra com o viés psicanalítico. E são apresentados na proximidade das práticas e dos pensamentos dos autores de forma autoral e de relato. Por isso, que não se espante o leitor com o tom coloquial em muitos momentos; estratégia para trazer quem lê para bem perto do que cada um dos autores vê, articula, escuta e trabalha.

    O livro começa com a breve apresentação da história do autismo, Adoecimento psíquico na infância e na adolescência – e o autismo, com definições clínico-diagnósticas a partir de Leo Kanner e Hans Asperger e a atualidade do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Também, a reflexão acerca do autismo como transtorno (doença) ou como neurodiversidade – na busca de delimitação que cada uma dá às intervenções.

    O capítulo 1, "Psicanálise e autismo", perpassa os conceitos que delimitam o encontro do ser humano com a alteridade desde o início da vida, permeado pela linguagem, trama da subjetivação e a constituição do sujeito. Ainda nesse capítulo, discute-se o que a Psicanálise, como teoria e prática clínica, pode trazer em reflexões, questionamentos e ações. Com base nessa teoria, pensam-se as possibilidades clínicas que sustentam as chances de socialização e interação, com independência e autonomia para o autista, da forma como ele é e pode ser.

    O capítulo 2, na esteira das propostas psicanalíticas, "Projeto OLHAR: o percurso de um serviço de avaliação da primeiríssima infância", apresenta um projeto de avaliação, orientação e intervenção com bebês e suas famílias. Partindo do Protocolo PREAUT, já validado na França (onde foi criado) e no Brasil, como uma das ferramentas para identificação de sinais de risco em bebês (aos 4 e 9 meses), as fundadoras do Projeto OLHAR, Isabela Garcia Andrade, Isabela Ulisses Sâmia e Laís Helena Boson Mota, realizaram 4.745 avaliações nas cidades e microrregiões de Varginha, Poços de Caldas e Três Pontas. Contaram com o apoio inicial da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de Três Pontas e com a subvenção por meio de editais do estado de Minas Gerais e do Ministério da Saúde, o que tornou o projeto gratuito e aberto a todo público interessado. Suas observações e conclusões trazem importantes saídas para se entender a questão do autismo como algo que, fundamentalmente, deve ser manejado dentro do processo de humanização, caso a caso, fora dos temas de culpabilização ou mesmo de determinismo biológico.

    No capítulo 3, Questões teóricas sobre o autismo, trazemos apresentações de trabalhos em eventos do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Educação (Nepe) sobre a infância e a adolescência, em articulação prioritariamente teórica. Em todos, traz-se a possibilidade de abordagem psicanalítica em aspectos teóricos e clínicos. A apresentação se fez em ordem cronológica, começando com Lucimara Bacetti e Roberta Ecleide de Oliveira Gomes Kelly, Palavras a dizer: a aquisição da linguagem em crianças ‘aquém’ do discurso. Em seguida, Wericson Miguel Martins, Muito se fala, pouco se ouve: o autismo e suas representações. E, finalmente, Alessandra Cardoso Marques e João Carlos Ferreira Franceschi, com Das Unheimliche: o diagnóstico da infância – um estranho em nosso tempo. Tais textos não foram publicados pelos anais desses eventos e se apresentam mais enriquecidos nesta publicação.

    No capítulo 4, Questões práticas sobre o autismo, há três palestras de Roberta Ecleide de Oliveira Gomes Kelly (Autismo e bem-estar: é possível estar bem com o autismo), Carolina de Siqueira Coutinho (Todas as crianças vão crescer! Quem cuidará dos adultos?) e Júlio Santa Rosa da Silveira (Autismo: Aspectos diagnósticos e terapêuticos na medicina atual), que aconteceram por ocasião da Semana de Conscientização sobre Autismo, de 1º a 5 de abril de 2019, evento promovido pelo Instituto A. Essas palestras não foram publicadas e abrem discussões importantes sobre a medicação, o autista, a autonomia e a independência a serem conquistadas.

    No capítulo 5, já sob o impacto da situação da pandemia, põe-se em pauta o diagnóstico, nem tão cedo e nem tão tarde. Por causa da situação de retirada das crianças das escolas e do convívio com outras crianças e outros adultos cuidadores, indícios de atraso do neurodesenvolvimento se apresentam e fazem emergir proposições diagnósticas precipitadas. Por outro lado, o capítulo indica a importância de um diagnóstico que respeite o contexto e a singularidade de cada caso, escutando, cuidando e criando junto aos pares da criança (adultos e instituições), com vistas às alterações na constituição do sujeito, bricolando saídas para além dos diagnósticos.

    Ao final… Bom, afinal, o texto se encerra. Não porque o assunto acaba, mas porque, como em todo livro, o final é a certeza dos novos começos.

    Prefaciando…

    Estamos sempre à procura das nossas grandes crianças.

    Essas que começamos por ser e que se tornam paulatinamente inacessíveis,

    como irreais e até proibidas…

    Contra mim, Valter Hugo Mãe

    A presente publicação deve ser situada como uma importante referência para aqueles que se interessam pelo estudo do autismo, tema de primeira ordem na atualidade. O autismo dá o que falar!

    Tal posição, naturalmente, não é por acaso. Cada vez mais, os que se abrem para esse tema reconhecem sua relevância como direção de avanço a ser ampliada, não somente no que diz respeito ao campo específico do autismo, mas também ao conhecimento da estrutura psíquica do ser falante e seus desdobramentos em diversos campos do saber.

    Se, antes, esse campo de estudos pertencia a um horizonte sombrio e oculto, hoje nos deparamos com um autismo que esclarece, para nós, perspectivas do ser e dizeres que surgem por meio de um silêncio.

    Os autistas dizem!

    E os escutamos, perpassando um real que traz enigmas, interrogações, desconstruções, ou seja, o não saber.

    Neste livro, estamos diante de um dedicado e árduo trabalho clínico e de estudo, de pesquisa e de investigação que compõe interessantes direções para nos aventurarmos a seguir.

    É imprescindível, como bem registrado pelos autores, a atenção aos movimentos singulares de cada sujeito, do cada um em seu sofrimento, e de seu percurso particular. Assim, podemos possibilitar que cada um consiga bricolar — termo usado por Jean-Michel Vives — sua própria solução, na conquista de um estilo, que pode tornar o sujeito semelhante aos outros e, ao mesmo tempo, um ser único.

    Aprendemos a escutar sinais antes inalcançáveis e nos revigoramos com descobertas efetivas e afetivas. Sim, o autismo nos afeta e nos convoca a enfrentar o Estranho familiar, fenômeno evidenciado por Freud quando destaca tudo aquilo que causa horror, mas que revela algo de familiar.

    Nesse contexto, do estranho familiar em cena, recorro a um filme, bilheteria memorável, que, até hoje, provoca emoções em pessoas de diferentes gerações: E.T., o extraterrestre, do diretor Steven Spielberg. Ressoa a pergunta sobre a razão de tanto sucesso e de seu personagem principal ter se tornado um ícone, causador de grande atração, mas também de enorme medo.

    E.T. é um ser vivo estranho aos seres humanos, visto que apresenta corpo e habilidades desconhecidas, que abalam o campo de certezas e convicções e causam curiosidade e espanto. Na trama, uma criança — Elliot — depara-se, em sua própria casa, com um ser extraterrestre perdido da espaçonave que o trouxera — aí, inicia-se um laço com o menino, que também vivencia um estar perdido naquele momento de sua vida.

    Esse seria um viés para o filme ter se tornado, poderíamos dizer, um clássico do cinema? O longa-metragem teria tocado em pontos da estrutura psíquica do ser falante, a qual abriga questões a respeito do estranho, que, por sua vez, também está em cada um? Para além de uma filmagem com inovadores efeitos especiais, as pessoas testemunham especiais efeitos e emoções em si mesmas.

    Como narra Valter Hugo Mãe, estamos sempre à procura de nossas crianças, mesmo que irreais, inacessíveis, caducas, familiares, mas sob a linha do horror, da proibição e da estranheza.

    Esse cenário parece não diferir da estranheza de muitos diante de um autista, ao não entender seu jeito com o corpo, seu modo de ser e suas potencialidades. No filme, quando se encontram pela primeira vez, ambos os personagens — Elliot e E.T. —, um em frente ao outro, gritam ante a perplexidade do encontro, até que, passo a passo, aos poucos, conseguem se olhar e se escutar, descobrindo sinais, lalíngua, letra, tempos lógicos diferenciados da linguagem.

    Freud recorre ao termo alemão Ratlosigkeit — de início, traduzido como desamparo, posteriormente retraduzido como perplexidade — para explicar a existência de uma marca. Na leitura do mencionado filme, curiosamente, podemos considerar ambas as traduções acertadas: perplexidade e desamparo enlaçados em uma dinâmica de estranheza.

    E.T., em desamparo, quer voltar para minha casa e constrói sua solução para realizar o que deseja, em cenas que capturam a identificação dos espectadores na perspectiva do encontro, pós-separação.

    Em seu artigo Das Unheimlich, cujo título foi traduzido para o português como O Estranho, Freud (1980b, p. 155) afirma:

    […] esse lugar unheimlich, no entanto, é a entrada para o antigo Heim (lar) de todos os seres humanos, para o lugar onde cada um de nós viveu certa vez, no princípio. […] Nesse caso, também, o unheimlich é o que uma vez foi heimlich, familiar; o prefixo un (in-) é o sinal do recalque.

    Podemos refletir, então, sobre o que a entrada de uma criança estranha — uma criança com risco de autismo, com alguma síndrome, com alguma anormalidade orgânica, ou várias outras questões — causa nas pessoas de seu entorno. Desde antes de uma criança nascer, estão presentes expectativas, idealizações, sonhos e desejos a serem realizados por meio dela. Em seu testemunho de jovem autista, Donna Williams (2021, p. 28) nos diz: Não eram tanto as palavras das pessoas que me traziam problemas, mas as suas expectativas quanto às minhas respostas. Isso exigiria que eu compreendesse o que elas diziam.

    A perda da criança idealizada exige uma elaboração do desapontamento, do desencanto, do luto aí inscrito. No entanto, caído o ideal, pode aparecer um ser único, com sua singularidade e diferença. Nas palavras de Vitor Franco (2017, p. 117): é a desilusão que permite lidar com a subjetividade do outro.

    O trabalho com crianças que trazem o enigma do autismo, indispensavelmente, é conjunto com os pais e seus sofrimentos. A pretensão de tal parceria de trabalho, longe de corrigir a posição do autista, busca acompanhá-lo para que ele possa construir sua própria solução. Se ele for escutado, sem exigência de respostas ou de comportamento programado, nossa aposta é de que produzirá invenções e construções próprias.

    Rosely Gazire Melgaço

    Psicanalista

    Sumário

    Prólogo

    1 - Psicanálise e autismo

    Roberta Ecleide de Oliveira Gomes Kelly

    2 - Projeto OLHAR: o percurso de um serviço de avaliação da primeiríssima infância

    Isabela Garcia Andrade

    Isabela Ulisses SâmiaLaís Helena Boson Mota

    3 - Questões teóricas sobre o autismo

    Lucimara Bacetti

    Roberta Ecleide de Oliveira Gomes Kelly

    4 - Questões práticas sobre o autismo

    Roberta Ecleide de Oliveira Gomes Kelly

    Júlio Santa Rosa da Silveira

    Carolina de Siqueira Coutinho

    5 - Nem tão cedo, nem tão tarde: diagnóstico de autismo?

    Roberta Ecleide de Oliveira Gomes Kelly

    Ao final…

    REFERÊNCIAS

    PROTOCOLO PREAUT

    SOBRE OS AUTORES

    Prólogo

    Adoecimento psíquico na infância e na adolescência – e o autismo

    Roberta Ecleide de Oliveira Gomes Kelly

    Não é simples pensar sobre o autismo. Não há consenso sobre o tema. Isso faz com que o imaginário social o defina com características que não são universais.

    Indico, por exemplo, a ideia de que autistas não têm sentimentos, ou nunca fazem contato visual ou que só aprendem por estratégias de imagem visual. Em minha prática, já encontrei muitos estilos e possibilidades.

    Notadamente, quanto à questão de não ter sentimentos, esta é uma visão reducionista que não considera que há outras formas de expressão das emoções e das afetações, principalmente quando se encontram os autistas não verbais. E há os que olham intensamente, que se aproximam, que são carinhosos, os que têm mais dificuldades de processamento sensorial (ora precisando de determinadas sensações como estímulo constante, ora evitando outras sensações com intensa aversão).

    Há os que precisam do movimento para manter a atenção, os que se apoiam visualmente e outros em que o apoio tátil é mais procurado. Ou seja, há de tudo e de todas as formas. Por isso, dizer de autismos…

    O excesso de informações, em variadas línguas, advindas de muitas perspectivas, não auxilia na compreensão do quadro psicopatológico, considerações que aventam ser da ordem da neurodiversidade e outras tantas que levantam a hipótese de causa por agrotóxicos, vacinas e mesmo remédios ou anestesias.

    É tal a confusão que, mesmo entre os profissionais, existem muitos posicionamentos. Alguns que se opõem, outros que se complementam, mas com várias indicações de divergências, distanciando-se as chances de benefícios para os autistas.

    Mais que dar um diagnóstico, importa estudar o autismo para:

    – Permitir melhor precisão no diagnóstico, desde a observação clínica até o estabelecimento de diagnósticos diferenciais.

    – Conhecer o quadro clínico do autismo, pensando estratégias conceituais que se colocam como saídas para as dificuldades cotidianas.

    – Entender a alteração dos critérios diagnósticos desde a sua primeira formulação, que acarretou o aumento dos casos, com prejuízo de algumas condições clínicas e alteração de outras.

    As classificações e propostas diagnósticas estão relacionadas aos momentos históricos que retroativamente as determinam. Assim, algumas questões se fazem presentes: o que se está classificando? Como se fazem as classificações?

    Comecemos, pois, pela história.

    1 Antes de Leo Kanner e Hans Asperger

    Em primeiro lugar, é preciso entender que, em psicopatologia da infância e da adolescência, e também no autismo, a questão não começa na concepção de Leo Kanner (1943, 1997), mas em um processo que também é histórico. A Idade Moderna, a partir da ideia de indivíduo, faz emergir a criança como tal, desde o início da vida; portanto, objeto do processo de humanização — imagem diversa daquela nas idades Média e Antiga, em que a criança era menos enfatizada ou tratada como miniadulto (ARIÈS, 1980).

    Sentimento de infância, sentimento de família e amor romântico são elementos que, para a Modernidade, fundam as bases da educação como atrelada à capacidade produtiva. Isto é, educa-se, humaniza-se como parte de um processo, cujo percurso se direciona para determinada forma de ser, na perspectiva do trabalho; na Pós-Modernidade, acrescente-se o consumismo.

    A forma, pois, como as pessoas educam crianças e adolescentes é, sem que o saibam, com vistas a isto: produzir pessoas úteis, dóceis e consumistas. Paralelo a essa produção, a noção de normalidade já se faz parâmetro, já que, fora dessa condição, não dá para obedecer, concordar e se deixar levar por todo e qualquer objeto.

    Nesse sentido, a forma como se vê e se cuida de uma criança e como se especializam modos de acesso a ela foram discriminando e estabelecendo o próprio adoecimento psíquico de crianças e adolescentes. Alterações ou comportamentos que, na Antiguidade e na Idade Média não seriam notados (ou seja, inomeados) e foram tomando proporções de diagnóstico em que não se percebe sua arbitrariedade. Por outro lado, simultaneamente a esses diagnósticos, emerge uma normalidade idealizada impossível de cumprir.

    Chegando ao século XXI, no extremo disso, qualquer alteração que uma criança apresente em nossos tempos é pensada, antes, como patológica. Inúmeros acessos são fornecidos aos pais, aos profissionais e aos educadores que não permitem que se pense, antes, na criança comum; logo se equaliza o comportamento da criança e do adolescente em relação a essa pretensa normalidade.

    Isso impacta como nomeação diagnóstica antes da própria clínica (observação e investigação) e pode desencadear, como saída, a medicalização (uso da medicação como única estratégica terapêutica). Tal ato desconecta a criança e o adolescente de seu contexto, de sua história e de sua possibilidade de sentido.

    Ranña (2020) indica que a palavra medicalização deve ser tomada além da ideia de medicamento como estratégia terapêutica, que, nessa proposição conceitual, acontecem: como já indicamos anteriormente, a patologização da vida (definição de comportamentos e características como doenças ou transtornos) e o uso do paradigma biomédico para explicar as manifestações do sujeito e seus sofrimentos psíquicos (redução do sujeito ao seu cérebro — funcionamento, genética e desenvolvimento).

    Assim, seguindo a reflexão desse autor, a medicação se tornaria a melhor estratégia para o sujeito lidar com seu sofrimento. Ou seja, a medicação é consequência inevitável da medicalização e não a definição mesma do termo.

    Em termos históricos, na Modernidade, gradativamente se instala a invasão dos temas de saúde na educação de crianças e adolescentes, pedagogizando-se a ação dos pais e, simultaneamente, psicologizando-se as práticas pedagógicas. Nesse percurso, começam a ser identificados, primeiramente, os que seriam anormais¹.

    Até 1875, Esquirol definia patologia da infância como causa da idiotia no adulto, quadro de déficit global e definitivo; para Séguin, tal quadro seria parcial e transitório. Nessa compreensão, crianças enlouqueceriam por falta de constituição da consistência do eu. Para dar conta disso, existiriam instituições para anormais, na lógica do asilamento.

    De 1880 a 1930, foram se estabelecendo síndromes psiquiátricas de adultos nas crianças, como a demência precocíssima, quadro referenciado para o adulto como demência precoce (posteriormente, nomeada por Bleuler como esquizofrenia²). Influem nesse estabelecimento, como elementos da pedopsiquiatria e das discussões sobre adoecimento mental, a ideia de que a criança seria um adulto

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