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Uma Visita Inesperada
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Uma Visita Inesperada

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O livro Reflexões : Bem-estar social
LanguagePortuguês
Release dateJun 7, 2022
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    Uma Visita Inesperada - Marco Antonio Burigo

    SUMÁRIO

    UMA INESPERADA VISITA

    Madrugada ainda escura deste outono seco, ventoso, esturricado e infectado de 2020. Chimarrão, uma leitura e o noturno de Chopin ao piano com Brigitte Engerer. Uma delícia.

    De repente, ouvi um ruído discreto e delicado na janela de minha caverna, na casa onde vivo no Balneário Morro dos Conventos, neste tempo de pandemia.

    Retomei à minha leitura por mais algum tempo e voltei a ouvir o mesmo ruído delicado, como se fosse uma ranhura no vidro de minha janela. O que será isso, pensei. Um inseto? Um pássaro? Se for um pássaro deve ser muito pequeno. Um beija-flor pedindo socorro, quem sabe? De vez em quando um desses pequenos e charmosos pássaros resolve passear dentro de nossa casa. Outras vezes, e já aconteceu, bater na vidraça e cair tonto no parapeito ou numa varanda, de onde o recolhemos e recuperamos com gotas de água na cabeça, até ele voar de novo. Assustado, mas feliz, de uma felicidade que não sabemos avaliar.

    Intrigado, levantei-me, abri a janela, olhei para todos os lados e nada, nem pássaro, nem inseto. Deve ser impressão, pensei comigo, voltando para meu livro, meu chimarrão e minha música.

    Passado algum tempo, não sei quanto, ouvi o seguinte:

    - Psiu! Ei! Ô cara!

    - Ué! - Pensei comigo, olhando para todos os lados - Ei Cara! Que cara? - Levantando-me assustado da mesa para acender a luz. Aí, ouvi novamente aquela voz misteriosa.

    - Calma, fique tranquilo, não se assuste.

    - Calma! Calma como? Ouço alguém falando comigo a essa hora, tudo escuro, neste tempo complicado que estamos vivendo e não vou me assustar? Pode ser um ladrão ou o quê?

    - Calma cara, – ouvi de novo – não é ladrão nada. Soou por acaso o alarme de sua casa? Não soou, então fique tranquilo e não adianta acender a luz que com esta visãozinha limitada que vocês têm, você não vai me enxergar, mesmo.

    - Como não vou enxergar? – Pensei – Por acaso estou falando com um fantasma, uma alma de outro mundo? Ou delirando, ficando maluco com essa peste, o isolamento, tantas informações desencontradas, tantos achismos e incertezas?

    - Puta merda! Será que estou delirando? - Falei.

    - Nada cara. Não é fantasma, nem delírio nem nada. Sou eu mesmo.

    - Eu quem porra?

    - Sou o Corona, cara. Fique tranquilo. Você não me enxerga, mas nem por isso sou um fantasma, um delírio ou uma alma de outro mundo.

    - Fique tranquilo... – falei – Por via das dúvidas vou pegar minha máscara. Só faltava agora ter que andar mascarado dentro de minha própria casa.

    - Que nada rapaz, fique bem. Só vim lhe fazer uma visita, bater um papo. Estou muito chateado e entediado também. Ninguém conversa comigo ou quer realmente saber quem sou. Medo, preconceito, isolamento... Querem me exterminar sem se darem conta de que só conseguirão efetivamente quando me conhecerem de fato. Assim, tudo isso vai demorar muito mais.

    Até entendo, pois vocês têm muita dificuldade para ouvir uns aos outros, imagine para dar atenção a um vírus invisível, falando como se fosse um fantasma que está aterrorizando todo mundo por aí a fora. Uma coisa que fala e não se enxerga.

    Outro dia estive visitando um Argentino em sua casa e o encontrei escutando música como você agora. Dei-lhe buenas noches, senhor peronista, e ele se levantou meio apavorado, olhando para todos os lados com os olhos arregalados, e como não viu ninguém, colocou seu Gardel a todo volume. O ambiente ficou insuportável e impossível de se ouvir qualquer conversa. Então vazei. Não pelo Gardel, mas pela altura do som, pelo ruído. A música que você ouve é mais leve, menos ruidosa, e permitiu até começarmos esta conversa. Espero que a gente se entenda.

    - Caramba! Conhecendo ou não a vocês vírus, pelo que se ouve por aí, dentro de 2 a 3 meses tudo estará resolvido. Vocês terão ido e nós teremos retomado nossa vida normal.

    - Pura ilusão. Só para variar, pura ilusão. Como vocês gostam de fantasias. Fantasias, ansiedades, precipitação. Nunca ouvi tanta besteira sobre quem somos nós e como nos combater. As únicas medidas que dão algum resultado por enquanto são o isolamento e as máscaras. Mesmo assim, somente para reduzir o contágio e as internações hospitalares.

    - Sim, vírus de merda, como você veio parar aqui?

    - Por puro tédio. Por puro tédio, cara. Já não suportava mais ficar andando para lá e para cá com minha turma, que vocês chamam de colônia. Então, passando aqui pela tua rua, meio mal iluminada por sinal, aproveitei um local um pouco mais escuro, me desloquei para o lado e saí da fila. Abandonei a colônia quieto, sem proselitismo. Ninguém notou, a não ser um parceiro que fez a seguinte observação: Tu tá ficando louco! - A fila continuou, o parceiro que me chamou de louco também, e eu vim parar em sua janela. Muito prazer. Eu sou o coronavírus.

    - Era só o que me faltava. Um coronavírus desertor em minha casa. Que confusão fui arrumar.

    - Desertor... O que é isso?

    - Desertor, aqui pra nós, é o indivíduo que abandona os parceiros, sorrateiramente, como você o fez, por seja lá qual for o motivo. Discordâncias, medo e até por coisas não explícitas contidas em uma desculpa corriqueira e aparentemente banal, mas muito profunda e abrangente, que usamos a toda hora para abandonar nossos projetos de vida: ESTOU DE SACO CHEIO.

    - Saco cheio? O que é isso?

    Muito curioso este vírus, pensei e respondi:

    - Não vou nem me dar ao trabalho de lhe explicar, porque além de não ter saco, você não saberia o que é uma metáfora.

    TUDO SOB CONTROLE

    E pensei comigo: Que merda. Interrompi minhas atividades, assumi definitivamente minha aposentadoria, e embora me ache bastante jovem ainda, ser considerado vulnerável. Isolei-me no Morro dos Conventos para me proteger de uma contaminação e aparece essa praga desse vírus em minha casa. Instala-se em meu escritório e, invisível, fica me dando bom dia, boa tarde, boa noite, conforme a ocasião. Invisível e zoador. Fala e ri da minha cara. É hi, hi, hi, ora num canto, ora noutro do escritório e não consigo atingi-lo com meu borrifador de álcool. Quanto mais borrifo mais ri. Não sei não, se já não andou passando pelo bar Grenal aí em cima na vila.

    Você pensa que acomodou as coisas nos seus devidos lugares, estabeleceu uma rotina, e aparece uma pedra no meio do caminho. Oh poeta... O que mais eu queria agora era fazer caminhadas, cultivar meu agronegócio orgânico, limpar a grama, ler algumas coisas, tomar um bom vinho, escutar uma boa música e escrever algo se tiver inspiração. Quando for necessário, de máscara, sempre abanando de longe para os vizinhos e pessoas conhecidas que passam aí pela rua, ultimamente vistos como inimigos, possíveis contaminadores.

    Inclusive com os vizinhos, as coisas estão difíceis. Às vezes penso até que não gostam mais da gente, ou que falamos algo de que não gostaram. Chegam quietos, se instalam e vão embora sem se despedirem. O vizinho da frente, de Caxias do Sul, sempre que chegava, atravessava a rua, vinha me dar um abraço e com aquela sua vós alta, carregada de sotaque italiano dizia: Como está Marrrcos? Como está o agronegócio? Vamos tomar um vinho?

    O vizinho da direita, colorado de paixão, deixa permanentemente uma bandeira do glorioso estendida em sua varanda, tremulando, tremulando, tremulando, quando sopra um vento nesta praia. É uma de nossas referências quando alguém pede o nosso endereço: Fica no único trecho de rua asfaltada do Morro, ao lado da casa que tem a bandeira do glorioso campeão de tudo. Não tem erro. Já faz parte da paisagem, juntamente com o verde do gramado, os Jasmins, as Margaridas, as Hortênsias e todas as folhagens da vizinhança. Balança ao vento no mesmo ritmo das folhas das palmeiras. Maravilha. Não pode mais ser retirada, sob pena de os proprietários correrem o risco de serem denunciados à FAMA. Em que pese às boas intenções, as vezes falta bom-senso a alguns defensores da natureza e ensacadores de vento que andam por aí.

    Noutro fim de semana, domingo bem cedo, um sol maravilhoso, uma brisa suave, vi meu vizinho, amuado, cabisbaixo, com máscara, colocando a bagagem de fim de semana no porta-malas do carro. Pareceu-me contrariado, embarcando e saindo sem olhar para os lados e se despedir de ninguém. Pensei comigo: Que será que houve? A janta fez mal ou bebeu demais ontem? Ele estava de boa e o Inter nem jogou. Não discutimos política. Que será que aconteceu?

    Uns dias depois voltaram e me falou:

    - Pois é, estava mesmo um dia maravilhoso, mas a esposa queria visitar a mãe dela. Com essa pandemia aí, fazia horas que não a víamos. E sogra, sabe como é né... - Sabe como é o quê!?, ouvimos ali perto.

    - Nada não querida, - falou o vizinho - foi até muito bom. Foi legal.

    CONFINAMENTO

    Sábado pela manhã, caminhando na praia, eu e minha esposa com nossas cachorras, fomos abordados por uma baita camionete da Polícia Civil do Estado. De dentro desta camionete, parada a uma distância razoável, naturalmente, ouvimos a voz de uma policial mascarada nos exortando: Vocês não viram o decreto do governador ontem determinando confinamento, proibindo praias e qualquer atividade que provoque aglomeração?

    A bem da verdade, não sabíamos do decreto do governador e, olhando para todos os lados, não vimos viva alma humana além das nossas. Pouco mais adiante, enxergamos um aglomerado de gaivotas que logo debandou, indo pousar mais adiante, onde continuaram bicando a areia à beira mar, em busca de alimento.

    Decretos-lei, são decretos-lei e devem ser obedecidos, ainda mais numa emergência como esta que vivemos. Caminhada interrompida, voltamos para casa, e daí em diante, por pelo menos quinze dias, realizamos caminhadas diárias em torno de nossa casa, nos limites do terreno, o que convencionamos denominar de maratona junto à cerca.

    Mas o que me preocupa agora é aquele intruso no meu escritório. Desertor, traidor, insolente. Eu vim só bater um papo, diz ele, como se tudo fosse assim tão simples. Estão espalhados por aí, pelo mundo todo matando gente adoidado sem dó nem piedade, convulsionando, criando e acentuando medos, desestruturando tudo, a economia, o convívio social, o equilíbrio psíquico, pela contaminação e provocando mortes indiscriminadamente por todo o planeta. E mortes sem a perspectiva de um ritual de despedida e de uma lágrima.

    - Hi, hi, hi! - Riu o covid - Aí está a primeira lição. Invisíveis, infectantes, contaminando e matando gente indiscriminadamente. Aí está a primeira lição.

    - Mas que porra de lição é essa? Insolente! E rindo do quê? Espalhando medo, ansiedades, incertezas, doença, morte e ainda afirmando estar nos dando uma lição. Contudo, seja lá qual for esta lição, vocês não têm uma forma menos caótica e dolorosa de ensiná-la às pobres criaturas deste planeta?

    - Não que eu conheça, pobres criaturas... Hi, hi! Não que eu conheça. Somos apenas vírus, umas coisas acelulares, invisíveis, insignificantes. Que sabemos nós sobre medo, ansiedade, dó e piedade? Que sabemos nós de como vocês aprendem suas lições? Somos o que somos e fazemos o que fazemos. Simplesmente fazemos. Fomos postos aqui, não sabemos por quem, e se intencionalmente ou não. E vocês? Vocês não são os bichos-gente? Dotados de inteligência, conhecimentos, afetos, sentimentos. Vocês que acham que sabem tudo, o que é bom e o que é ruim, certo e errado (Homo sapiens sapiens), talvez descubram uma forma menos traumática de aprender essa lição. Vocês existem há milênios e milênios, já foram à lua, já chegaram a Marte, e ainda não aprenderam. Vocês não sabem que nada sabem.

    - Pô, covid. Assim não dá, né. Abandona sua colônia, invade a minha casa, põe em risco a mim e minha família e ainda fica me sacaneando, fazendo insinuações.

    - Calma, sapiens, sapiens. Sei que no fundo, com medo, mas bem no fundo, você ficou curioso e quer também bater uns papos comigo. Se concordar, teremos muito tempo, porque isto que está aí não acaba muito cedo não. Quanto à lição, fique pensando no significado das palavras e na sua importância. Sapiens, sapiens. Hehe!

    - Não sei não, Covid. Minha esposa é muito ciosa e exigente quanto ao cumprimento dos protocolos de prevenção contra vocês. Se ela sonhar comigo conversando com um coronavírus aqui no meu escritório, quem vai pra rua sou eu. Além do mais, amanhã teremos faxina geral nesta casa. A senhora Claudete e sua equipe vão passar e borrifar álcool por todo canto. Você e os de sua turma irão correr sério risco, que eu sei.

    - Bah! Este tal de álcool. Onde vocês arranjaram isto. Outro dia, levamos uma puta borrifada deste tal de álcool e alguns dos meus parceiros até gostaram, ficaram alegres pra caramba. Outros, após algum tempo e múltiplas borrifadas até criaram gosto, se acostumaram e começaram a sentir falta. Ficavam malucos, não faziam mais nada direito, começavam a criar confusão na colônia, até ficarem inativos.

    - Bom para nós que fiquem inativos. É isso mesmo que queremos com os borrifos de álcool. Alcoólatras avançados se tornaram estes seus parceiros, já com sintomas de abstinência. Conheço uma sala chamada AA, aqui perto, onde pessoas com essa doença se reúnem duas vezes por semana, para se apoiarem mutuamente e darem consistência à sua recuperação. Mas não vou dar o endereço porque nosso negócio é manter vocês vírus afastados e acabar mesmo com sua raça. E essa tal de primeira lição, covid. O que é esta tal de primeira lição?

    - Hi, hi! Ferrooou. E esse tal de AA? Sem endereço do AA, não vou decifrar a primeira lição. Em todos os casos, quanto a primeira lição, vou lhe dar uma dica. Leia os textos de seu amigo Frederico, que provavelmente num deles vai achar a chave do enigma, homo sapiens. Boa noite e se cuide, cara. Não chegue perto de ninguém sem essa máscara de pano.

    - Homo sapiens? De onde você tirou isso aí? Está tirando com a minha cara?

    - Ué! Não é o que vocês se dizem? Homo sapiens sapiens?

    MÁSCARA

    - Olááá! Boa tarde, homo sapiens. Onde você andava?

    - Boa tarde. Mas é um vírus bem cara de pau. Você não se acha muito à

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